Pedro Estevam Serrano
Em
Honduras, o presidente Manoel Zelaya foi deposto por uma decisão do
Parlamento, onde não lhe foi oferecido qualquer direito de defesa, e por
uma ordem liminar da Corte Suprema daquele país que determinou sua
prisão sem prévia oitiva.
Tal ordem judicial poderia até ser aceita como compatível com a
Constituição não fosse o presidente preso pelas Forças Armadas e não
pela força de segurança pública, como ordenado pela Carta Magna
hondurenha, e não tivesse sido expulso do país, em flagrante desrespeito
a dispositivo específico da referida Constituição que impede a expulsão
de cidadão hondurenho. A nulidade da ordem judicial só foi reconhecida
pela Corte Suprema após o término do que deveria ter sido seu mandato.
No Paraguai, o desrespeito cometido pela sala
constitucional da Corte Suprema de Justiça à Carta Magna foi ainda mais
grosseiro. A Corte negou vigência ao artigo 17 da Constituição, que
garante defesa “no processo penal, ou em qualquer outro que possa
derivar pena ou sanção”. Obviamente, a cassação de mandato eletivo é uma
sanção grave, mesmo se realizada em processo político. É bizarro
juridicamente imaginar como adequado ao Estado de Direito a realização
de um processo político de impedimento sem direito a ampla defesa, como
ocorreu no caso de Fernando Lugo.
Tais casos evidenciam um fenômeno político e jurídico, ou, como disse
Fontana, na “franja ambígua e incerta, na intersecção entre o jurídico e
o político”, bastante incomum. A jurisdição torna-se fonte da exceção e
não do Direito.
Como bem observou Giorgio Agamben, a exceção não se localiza na
contemporaneidade apenas no âmbito da crise política ou na situação
excepcional e temporária imaginada por Karl Schimitt, em que surge o
estado de necessidade estatal como razão para a submissão do direito ao
poder soberano do governo. Ela ocorre também no interior da rotina de
nossas sociedades democráticas, como espaço de soberania absolutista,
suspensivo do direito e dos direitos.
Os exemplos são vários e em quase todas as sociedades democráticas
ocidentais: a prisão de Guantánamo e o “Patriot Act” nos EUA, o trato
não humano destinado a estrangeiros em países europeus, as façanhas do
Bope e o excesso de medidas provisórias no Brasil.
Agamben aponta a falta de uma teoria da exceção no Direito público,
talvez porque grande parte dos juristas a considerem mais uma questão
própria do território da política do que um verdadeiro problema
jurídico.
De qualquer forma, quando se passa a vislumbrar o Judiciário de
países de constituições democráticas como fonte da exceção, não há como
não pensar o tema no âmbito do Direito, pois tais decisões repousam em
fundamentações pretensamente jurídicas que servem de roupagem
fraudulenta à decisão soberana absolutista. Essa crítica e denúncia da
fraude é dever ético do operador do Direito, pois ele é quem tem o
instrumental técnico apropriado para evidenciar o embuste. É seu ônus
social, deontologia de sua profissão.
Sem pretensão de esgotar ou sequer ensaiar de forma
científica o tema num texto jornalístico, creio que de plano, entendida a
exceção como decisão ocorrente na rotina democrática ou mesmo como
técnica ocasional de exercício do poder político no interior da
democracia, podemos verificar duas categorias de exceção nos Estados
contemporâneos, inclusive no Brasil.
Há um tipo de exceção meramente aparente, estabelecida de forma
autorizada e regulada pelo Direito. Neste caso, a suspensão de direitos
se concretiza em uma forma de “direito especial”, próprio a ser aplicado
em situações de guerra ou grave conflito interno, como é o estado de
necessidade alemão, os decretos de urgência e Estado de sítio italianos e
franceses, as leis marciais e poderes de emergência da doutrina
anglo-saxônica e o estado de defesa e o estado de sitio dos artigos 136 a
141 de nossa Constituição.
E há o segundo tipo, a exceção verdadeira ou real, em que por vontade
política soberana, decisionista, há a suspensão do Direito, implicando a
submissão do jurídico ao politico, sem qualquer racionalidade
transversal entre essas dimensões da vida social.
A lógica do lícito-ilícito, própria do Direito, é superada pela
lógica do poder própria da política, mesmo dentro de um tribunal. Neste
caso, na jurisdição, o poder político da toga supera faticamente a força
da lei.
Tal nefasto tipo de exceção se caracteriza pela simplificação da
decisão a si mesma, sem qualquer mediação real pelo direito, por uma
provisoriedade inerente, pois não trata de extinguir o direito, mas de
suspendê-lo em situações específicas, por seu fim eminentemente
político-soberano, em que o poder se apresenta de forma bruta e, por
consequência, por sua não autolimitação, nem mesmo por qualquer regra de
coerência ou racionalidade. Nesse último aspecto, a decisão judicial de
real exceção não produz “jurisprudência” para situações semelhantes
juridicamente, mas diferentes politicamente. Mudando-se os atores
envolvidos ou o fim político, muda-se a decisão, retornando-se ao
Direito ou produzindo nova exceção.
Em nossa conjuntura, a questão é clara: o caso do “mensalão” trata-se
de exceção real ou de mera mudança ocasional em postulados
jurisprudenciais da Corte?
Efetivamente é cedo para uma avaliação terminativa.
Sinais existem de que a exceção pode estar acontecendo, mas não há
ainda condições de certeza. Mesmo em um eventual erro judiciário, este
não significa necessariamente exceção, pois nem sempre se dá por fins
políticos, embora sempre ocorra em agressão ao Direito.
A influência poderosa da mídia sobre nossa Corte
Suprema no caso, por evidente, não se prende à mera lógica noticiosa.
Parece claro que a mídia brasileira, cujos veículos de formas diferentes
compartilham do apoio explícito ou quase explícito ao bloco de oposição
ao governo e da repulsa irracional de nossas elites ao petismo e ao
lulismo, busca um fim político e não noticioso ou moral, qual seja,
produzir uma mácula na imagem histórica do governo Lula e do PT, matar
politicamente o inimigo.
O processo transcorre já se sabendo, aparentemente, do seu resultado,
característica típica de juízos autoritários ou de exceção. A Corte tem
adotado posições de constitucionalidade duvidosa e de mudança evidente
em sua recente, mas incisiva jurisprudência garantista no âmbito penal.
Além da forma pouco “ortodoxa” como o julgamento se desenrola, conforme
reconheceu o próprio ministro Ricardo Lewandowski.
A conclusão definitiva do caráter ou não de juízo de exceção no caso
só será verificado após não apenas a decisão final, mas também pela
coerência ou não de futuras decisões em casos semelhantes, mas que
tenham atores diversos, como o do chamado mensalão mineiro, do “mensalão
do DEM do Distrito Federal”, dos crimes do bicheiro Cachoeira, que
envolvem o governador de Goiás, e aqueles do banqueiro Daniel Dantas.
Para ficar em poucos exemplos.
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