Sujeitos sem predicado, ocultos, formam o MSJ, aqueles que teimam
em sobreviver, começam a pensar seriamente o porquê de a corda
arrebentar sempre do mesmo lado, e anunciam em alto e bom som que a
direção está mudando, e que ‘o jeito’ que o mundo precisa somente poderá
partir daqueles que nasceram com tudo para serem nada na vida...
E, então, eis que a chuva voltou a São Paulo depois de quase 70 dias
da segunda maior estiagem da história, quando uma desconcertante
regularidade de incêndios pipocou em suas 1.650 favelas, habitadas por
quase 1,5 milhão de pessoas.
E mais de 40 arderam desde janeiro; 70, incluídos os focos menores.
O descaso das “autoridades” com os “sem jeito”, que são aqueles que
teimam em sobreviver, morando em condições precárias, distantes dos
benefícios urbanos, de sistemas de água e esgoto, de segurança para suas
moradias, de acesso a alimentos para suas famílias, migra da crônica
urbana para se transmutar em impressionante evidência de descaso
governamental, criminoso e francamente delinquente.
E enquanto não ganha as ruas o Movimento dos Sem Jeito, ou
simplesmente MSJ, começo a pensar seriamente sobre o porquê de a corda
continuar arrebentando sempre do lado mais fraco.
Os miseráveis, deserdados dos bens, que não dispõem de dinheiro em
banco, teimosos como mulas, insistentes em não entregar os pontos da
vida, renitentes e perseverantes na arte de viver, são os grandes
sujeitos da história humana.
Sujeitos de deveres e privados de direitos. Eles são os Sem Jeito,
mesmo não sendo assim reconhecidos, assim continuam tratados. São Sem
Jeito porque não se conformam em ter a miséria como sua riqueza, nem a
pobreza como seu estigma, a doença como sua marca, a fome como punição
diária, exterminando geração a geração.
Sujeitos sem predicados. Geralmente entram na história oficial pela
porta dos fundos. Não são de ostentação: nem diplomas, nem feitos, nem
terras, nem sobrenomes bimestrais quanto mais quatrocentões. São
anônimos em um sociedade que preza o reino dos nomes, das alcunhas
valiosas, dos pomposos pronomes de tratamento.
Sujeitos ocultos. Normalmente engrossam estatísticas nada
lisonjeiras: freqüentam listas de desempregados, alimentam filas
intermináveis de postos de saúde periféricos, são assíduos do velho
hábito de caminhar e, muitas vezes, passageiros habituais de transportes
públicos superlotados.
Sujeitos invisíveis. São encontrados em shows ao ar livre, “de
grátis”, associados a alguma data comemorativa da nacionalidade ou
apenas da cidade ou rincão onde vivem. A invisibilidade lhes cai bem
como roupa feita sob medida. Não são encontrados em mesas onde se
discutem o futuro do município, o desenvolvimento da cidade, o progresso
do Estado, e muito menos onde se lança o olhar em direção ao futuro do
país. É uma invisibilidade social, porque só se verifica em uma
sociedade em que o valor está intimamente associado à propriedade de
bens móveis e imóveis, à conquista de bens culturais, à sorte de
ostentar algum sobrenome luminoso. Na estrada da vida, há muito lhe
subtraíram a condição humana, deixando-lhes ostentar apenas a condição
de sinal de trânsito, árvore plantada à margem da estrada, imenso
outdoor anunciando a nova promoção da semana. Estão ali, e também por
toda a parte. Mas, no fundo, se confundem facilmente com a paisagem: são
placas, são postes, são semáforos, são árvores.
Menos gente, seres
humanos.
Sujeitos teimosos. Têm tudo para não existir e nem mesmo deixar
rastros de suas existências. Mantém aquela fé inabalável digna de um
Moisés retirante abrindo mares e caminhando avante por toda a trajetória
da vida rumo à terra prometida. Renitentes, são alvos prediletos das
forças de segurança. Praticam tudo o que estiver à margem da lei para
conseguir se evadir da realidade insuportável e sufocante.
É quando começa a tomar forma o Movimento dos Sem Jeito, o movimento
que abarcará essa massa desfocada para os velhos cabeças-de-planilha,
todos herdeiros do pensamento expresso em tabelas Excel. Os velhos
antagonistas de sempre, estes mesmos que disfarçados de protagonistas
enfermaram a maioria da população, perdem seu chão, se confundem na
noção do tempo em que vivem.
Os que chegam ao MSJ sabem que chegou a sua vez. A vez de freqüentar
escolas, a vez de ter alimento sobre a mesa, a vez de se alvo de
cuidados médicos. A vez de conduzir consigo uma sempre adiada carteira
profissional, a vez de planejar seu futuro e o futuro dos seus
descendentes.
O MSJ começa a anunciar aos quatro ventos que os muros seculares
separando as casas grandes das grandes senzalas começaram a ser
derrubados. O cimento da hipocrisia social já não mais mantém os tijolos
da discriminação e do preconceito ordenados em forma de muros,
fronteiras imaginárias que resistem a desaparecer nos horizontes da
cidadania plena, total e abarcadora.
O MSJ entende que o que não tem jeito ajeitado está – assim como o
que não tem remédio, remediado está. E percebe que os tempos mudaram de
direção – as pressões que vinham de cima para baixo agora se levantam
com força e rara intensidade no sentido baixo para cima.
O MSJ não se informa pelos meios de comunicação tradicionais,
monopólios midiáticos que se mantém às custas da desinformação e da
informação intencionalmente truncada, notícias plantadas e fatos
divulgados pela metade. Agindo assim, o MSJ lhes subtrai legitimidade
para falar em nome deles, cassando seu autoconferido direito de usar a
surrada expressão “opinião pública”.
O MSJ declara em alto e bom som que chegou a hora da abolição da
escravatura mental, a libertação das amarras do pensamento único,
exclusivo e excludente. E sua palavra de ordem é um libelo contra toda
forma de colonização de um pensamento sobre os demais pensamentos.
O MSJ surge no horizonte auriverde não como miragem, nem utopia, nem
sonho de velhas noites de verão, encharcados de perdidas esperanças.
Surge sim como os primeiros raios de sol emitidos após tenebrosa noite
de privações e suplícios. Noite que ultrapassando contadas horas se
espraiam por anos, décadas e séculos, interrompendo vidas aos milhões,
encerrando na degradação inteiras gerações de seres humanos.
É porque ‘o jeito’ que o mundo precisa somente poderá partir daqueles que nasceram com tudo para serem na vida… sem jeito.
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