“Não sou obrigado a apresentá-lo...” – Celso Russomanno, candidato à Prefeito da capital do estado de São Paulo, referindo-se ao seu plano administrativo.
Na verdade, não é de hoje que nada acontece no meu coração a respeito da cidade de São Paulo.
Já há umas duas décadas a poluição daquela capital me provocou um
escarro em plena Ipiranga com São João, justo no pico do horário de
rush. Ao contrário de Augusto dos Anjos, senti-me sem um único abismo
para filosofar sobre a queda daquela secreção. Acuado por tantos pés
céleres a atravessar a esquina, segui até à Avenida Consolação onde,
enfim, encontrei um canteiro para me livrar do horrível gosto de
fuligem.
Fui em frente considerando a impossibilidade de voltar a viver numa
cidade onde a sucessão de representantes dos interesses capitalistas,
por puro descaso e desleixo amontoam as pessoas em tão densa
concentração,
Terceira ou segunda maior cidade do mundo, São Paulo é o mais acabado
exemplo da ausência de humanismo do sistema político/econômico em
vertiginosa evolução desde os anos 50, quando ali fui educado pela
família e pelo Instituto de Educação Caetano de Campos.
A família me ensinava a ser cordial com os mais velhos e às mulheres,
proceder civilizadamente com todas as pessoas independente de gênero ou
faixa etária. Por isso planejei a caminhada da São João à Consolação,
evitando cuspir nos pés dos apressados transeuntes das 18 horas da Av.
Ipiranga.
Já o Caetano de Campos me ensinou outras coisas, entre elas a
importância histórica de São Paulo desde quando os Bandeirantes
planejavam incursões pelos interiores, reunidos no ponto de partida lá
na antiga bica do Largo da Memória. Os objetivos das Bandeiras eram dos
mais deploráveis: prear indígenas e descobrir riquezas minerais a serem
espoliadas pelos colonizadores. Mas no século XIX, já com o nome de
Largo do Piques, atraindo moradores pela água da nascente, o local
testemunhou os moradores do então pequeno vilarejo a planejar o
cotidiano e viajantes a projetar o prosseguimento pelas longas trilhas
ao sul, ao norte ou a oeste do país.
Ainda no começo daquele mesmo século se criou a Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco que junto com a de Olinda é a mais antiga do
Brasil e onde se planejou muitos dos principais versos da literatura
romântica brasileira, como os de Castro Alves. Em São Paulo, ali se
planejou a abolição da escravatura no país! A grande maioria das leis
que hoje regulamentam a civilidade de toda a nação.
Até o sanduíche nacionalmente conhecido como “Bauru”, foi planejado
por um estudante das Arcadas de São Francisco. Era diferente do que hoje
se serve, mas quem for ao Ponto Chic, lá no Largo do Paissandu, poderá
conhecer a versão original projetada por Casimiro Pinto Neto, natural da
interiorana cidade que deu nome ao indevido pão com tomate, presunto e
queijo. Projetado para se constituir em uma refeição, o verdadeiro bauru
leva rosbife, queijo branco em pedaço grosso e dilatado no calor da
chapa e, além do tomate, vem com rodelas de pepino.
As falsidades exportadas de São Paulo para o resto do país não se
resumiram ao bauru. O mato-grossense Jânio Quadros, que renunciou aos 7
meses de presidência, foi outro. Mas o Ponto Chic chegou a ser
frequentado pelos que planejaram a promoção da real cultura brasileira: a
Semana de Arte Moderna de 1922.
Graças àquele movimento o Brasil descobriu-se em Oswald e Mário de
Andrade, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho e tantos outros.
Nasci em São Paulo, mas só tomei consciência da importância da cidade
nos anos 60. Apesar de um dos mais corruptos políticos paulistas ter
criado a Marcha de Deus com a Família que apoiou o mais longo e triste
período da história da república, o da ditadura militar, naquele tempo
planejava-se ali a resistência à opressão do país. Fosse pela UNE de
Dirceu e Travassos, fosse pela luta armada de Lamarca ou Marighela.
Mesmo depois de deixar a cidade nos 70, o meu coração continuou
batendo pela São Paulo que também resistia planejando muito do que
melhor aconteceu no país na década através de Gianfrancesco Guarnieri,
Augusto Boal, José Martinez Correa, Plínio Marcos e tantos outros do
teatro, como os muitos dos festivais de música: Chico Buarque, Geraldo
Vandré, Sérgio Ricardo. E de todas as artes: Leny Dale, Wesley Duke Lee,
Rogério Sganzerla.
Foi em São Paulo que Caetano Veloso e Gilberto Gil, unidos aos
Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam e o Maestro Rogério Duprat
planejaram o Tropicalismo.
Também em São Paulo se planejou o lançamento de fenômenos como Elis
Regina e Milton Nascimento. Se algo batia no coração do Brasil é porque
começara a pulsar em São Paulo.
Ainda no inicio dos anos 80, a cada vez que ia a São Paulo, um novo
latejar, uma nova vertente: Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e tantos
outros que planejaram o movimento dos artistas independentes.
Mas, então, a cada retorno a cidade me parecia mais mofina em uma
suntuosidade de pouco conteúdo e total falta de planejamento a soterrar o
sorriso por seu humor de Adoniran Barbosa e o lamento por suas
tragédias cotidianas de um Paulo Vanzolini.
Sofrendo decepções com a cidade onde nasci, cansei-me dela ao
perceber que por pura falta de planejamento, falta de qualquer cuidado
com as vidas humanas que a ocupam, tornou-se um lugar sem espaço sequer
para cuspir,
Muitos shoppings, grandes restaurantes, casas de espetáculos, templos
de consumo, mas tudo tão frio e artificial quanto à sobrevida em uma
UTI onde se esqueceu de planejar a recuperação dos pacientes. Pacientes
mantidos por sensação de vida, mas já sem reais emoções, sem real
vontade, sem qualquer percepção e possibilidade de futuro, sem nenhum
outro plano se não o de ir de lá pra cá, correndo atrás do que há muito
perderam e já nem se recordam o que seja.
Tenho muita saudade dos amigos e das mulheres que ali amei, mas hoje,
quando vou a São Paulo, fico tentando perceber o que planejam as
pessoas além desse eterno e apressado ir e vir sem chegar a lugar algum.
Fico tentando senti-los, mas, talvez com medo de que me cuspam nos pés,
nada acontece no meu coração.
Contribuição do escritor Raul Longo. Email: pousopoesia@gmail.com
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