Por Daniel Hirata, Adalton Marques, Gabriel Feltran e Karina Biondi |
As taxas de homicídios são atualmente o grande parâmetro de avaliação
das políticas de segurança em todo o mundo. Assim como a cotação do
dólar e a taxa de juros para a política monetária, as flutuações das
taxas de homicídios vêm sendo parâmetro de avaliação da gestão pública:
cidades que conseguem reduções expressivas são vistas como modelos de
”boas práticas” a replicar. São Paulo foi incluída recentemente, no
relatório de 2011 do Onudoc (United Nations Office on Drugs and Crime),
como um 'case' na redução da taxa de homicídios em comparação com outras
cidades latino americanas e brasileiras. Ao ser citada em um relatório
desse tipo, sobretudo com uma redução que posiciona a cidade abaixo da
linha imaginária do que é considerado um índice “epidêmico”, as
políticas governamentais de segurança ganham enorme respaldo nacional e
internacional.
Crédito Eleitoral
Sabe-se bem como esse ganho foi capitalizado rapidamente pelo governo
paulista durante a última década. Contudo, esse crédito eleitoral e,
acima de tudo, político-administrativo, não foi usufruído sem que, bem
longe das razões governamentais, se constituísse um lastro que sustenta
outra história acerca da redução das taxas de homicídios.
Mais:
Nossas pesquisas voltaram os olhos precisamente para esta versão,
levando a sério aquilo que se insiste em considerar anômico: o que dizem
presos e moradores das periferias de São Paulo sobre a violência, a
segurança e os homicídios. Nessa mesma direção, desde 2005, temos
registrado entre eles relatos da política de “paz” do PCC (Primeiro
Comando da Capital) em prisões e “quebradas”, e a importância dos seus
“debates” na redução dos homicídios por ali. Sabe-se que, nesses
territórios, desde a primeira metade dos anos 2000, “não se pode mais
matar” sem o aval do "Comando".
A emergência dessa forma de regulação torna complexa a deslegitimação
da “segurança pública” nas periferias, onde a repressão é sua única
face: seja pela política de encarceramento em massa, pela militarização
da gestão pública ou pelos achaques a que seus moradores são
constantemente submetidos. O impacto dessas políticas nas estatísticas é
evidente, embora silenciado ativamente e sistematicamente por governos e
imprensa e rejeitado por 'think tanks' que disputam o tema segurança
pública, assim como fora praticamente desconsiderado em nossas
universidades há poucos anos.
Fator PCC
Há uma razoável concordância entre os especialistas de que a
violência e o homicídio são fenômenos históricos e multidimensionais.
Nesse sentido, é claro que o PCC não é a única causa dessa redução. Mas
digamos francamente: é um absurdo fingir que o PCC não é central para
compreender esse fenômeno. Em São Paulo, há muito mais mistérios por
detrás da redução dos homicídios do que supõe nossa vã criminologia.
Mas, principalmente, há muito mais evidências ofuscadas sob o holofote
das suposições.
Afirmamos, portanto, que os sucessivos governos do PSDB em São Paulo
não são os únicos fiadores da redução da taxa de homicídios no Estado,
nem mesmo os majoritários. E, ao invés de atribuirmos a fiança
majoritária ao PCC, preferimos falar de sua centralidade, da importância
inegável de sua política de “paz entre os ladrões” para a queda dos
homicídios em São Paulo.
Etnografia
Nossa aferição não é sociométrica; antes, se trata de uma
problematização etnográfica. Além do que, sabe-se que os critérios de
construção dessas medidas são polêmicos e cheios de controvérsias. No
Rio de Janeiro, por exemplo, onde esse tipo de controvérsia emerge de
forma mais visível publicamente, uma pesquisa recente do Núcleo de
Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) sobre os
“autos de resistência” problematiza a leitura fácil sobre as taxas de
homicídio justamente quando volta a atenção para onde os olhos dos
governos insistem em não olhar: a atuação das polícias.
Ao largo das condecorações fáceis dos responsáveis pela miraculosa
queda dos homicídios, preferimos seguir os rastros das “guerras”
(categoria usada por “ladrões” e por policiais) que continuam a
aterrorizar a periferia – ainda que suas manifestações mais
espetaculares tenham se tornado cíclicas. É notório em nossas pesquisas
que parte das dinâmicas que produzem mortes na cidade estão relacionadas
aos jogos de poder entre coletivos criminais e corporações policiais,
em suas atividades oficiais e extra oficiais. A atual intensificação do
caráter repressivo e militar das políticas de segurança não apenas
acentua a “lógica da guerra” no controle oficial do crime, como também
aumenta os custos e os conflitos operantes nos mercados extra oficiais
de proteção, cujos desfechos letais são muito frequentes no cotidiano
dos alvos preferenciais desse controle.
Equilíbrios Instáveis
Neste momento, ao contrário do discurso oficial que insiste em negar a
existência do PCC e exibe a polícia de São Paulo como a mais eficaz do
Brasil, a cidade presencia diversos assassinatos em todas as regiões da
Grande São Paulo. O fato é que tanto a atuação do PCC como a das
polícias são feitas a partir de equilíbrios instáveis, construídos pelas
suas heterogeneidades internas e pelas relações entre ambos. Quando
algo desestabiliza esse encadeamento sensível os acordos se rompem e os
ciclos de mortes são detonados sem que nem mesmo seus participantes
consigam identificar os autores: guerras estancadas começam a correr
subterraneamente, acertos adiados passam a acontecer entre grupos com
interesses conflitantes sem declaração aberta, acordos são suspensos
secretamente, de modo que sempre é possível culpar o “outro lado” pela
morte que não se pode nomear o autor nem as razões.
Enquanto não escancararmos com pesquisa rigorosa a caixa de pandora
dessas relações para ao menos dar início ao debate, continuaremos sem
qualquer resposta pública, digna, para as dezenas de assassinatos que
voltaram a marcar a Grande São Paulo, bem como sem uma explicação
satisfatória que correlacione a política de “pacificação” do PCC com os
surtos de combate entre Estado e crime.
Daniel Hirata é pesquisador do Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana (NECVU) da UFRJ; Adalton Marques é
doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar
(PPGAS-UFSCar); Gabriel Feltran é sociólogo, docente da UFSCar e membro
do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da universidade e Karina Biondi
é doutoranda do PPGAS-UFSCar
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