Com argumentos inconsistentes e sem visão de futuro, Ocidente
constroi um Estado de Mal-estar. Para enfrentá-lo, novas alianças serão
indispensáveis
Por Manuel Castells | Tradução: Daniela Frabasile
O que estamos vivendo em todo o mundo, no contexto da crise
financeira, é uma transição – do Estado de Bem-estar social para um
Estado de Mal-estar. Na convenção do Partido Republicano, nos Estados
Unidos, realizada em Tampa, semana passada, aclamou-se um programa
baseado na proposta de Orçamento apresentada por Paul Ryan, o líder mais
carismático da direita. Implica cortar serviços públicos; reduzir
maciçamente os impostos pagos pelos endinheirados e grandes empresas;
manter os que são exigidos dos setores médios e baixos. Alega-se que,
assim, será possível reduzir o déficit orçamentário (principalmente
através dos cortes de despesas) e estimular o investimento (porque os
ricos supostamente investiriam com o dinheiro disponível, o que
contraria a evidência empírica dos últimos vinte anos…).
Quem se importa? Há economistas que constroem gráficos para
justificar qualquer coisa. O importante é ter o poder de fazer. Os
republicanos controlam a Câmara, graças à ingenuidade de Obama. E se
Romney e Ryan chegarem à Casa Branca, a castigada sociedade
estadunidense deverá chorar e ranger os dentes – com o apoio da maioria
de homens brancos, que são tão racistas quanto são antigoverno por
ideologia. O mais espantoso é o projeto de liquidar gradualmente a
Medicare, programa de saúde pública dos Estados Unidos para os idosos. É
possível imaginar uma política mais abertamente antissocial, que retira
a cobertura médica dos idosos aposentados? Era impensável – mas em
tempos de crise financeira, tudo é possível. Inclusive a perspectiva de
que uma crise causada pela liderança financeira resulte no salvamento
das instituições financeiras e na recompensa milionária seus executivos
(com salários e cortes de impostos), para penalizar os mais vulneráveis
com a remoção de elementos essenciais de proteção social.
Não se trata, como sabemos, apenas de uma questão da política
norte-americana. A estratégia de Angela Merkel e dos demais governantes
europeus – com o premiê espanhol Mariano Rajoy pedindo que salvem o país
(e a si mesmo) – não é diferente. Trata-se de aproveitar o medo dos
cidadãos para chegar ao poder; fazê-los acreditar que precisam escolher
entre austeridade e caos; e acabar – com o apoio do empresariado sem
visão de longo prazo – com algo que era marca da sociedade europeia: o
Estado de Bem-estar social.
É agora ou nunca. É preciso parar de gastar com seguro-desemprego,
porque beneficia jovens vagabundos, sem respeito pela autoridade. Com os
pacientes, porque consomem remédios demais (e como as empresas
farmacêuticas poderiam prosperar?). Com os professores, que não desistem
de ser educadores – em vez de meros gestores de depósitos de crianças. E
inclusive com funcionários públicos considerados heróis da sociedade:
bombeiros, policiais e demais agentes de segurança, mal-pagos,
maltratados e obrigados às vezes a prender pessoas com quem se
solidarizam.
Argumenta-se que em tempos de crise não se pode manter esses luxos.
Esquece-se que só é possível sair da crise com produtividade e
competitividade, o que requer educação, pesquisa, serviços públicos
eficientes. As contas de dona-de-casa do premiê Rajoy não servem a uma
economia moderna. O problema não é gastar mais do que se recebe, mas
gastar mal, ao invés de investir em recursos humanos e empreendedorismo
que pode melhorar a economia real e criar mais riqueza. Uma estupidez
percorre a Europa: a ideia de que o Estado de Bem-estar social é caro e
insustentável, porque o envelhecimento populacional significa menos
trabalhadores ativos e maior número de inativos (que estão mais caros,
porque não têm a decência de morrer quando devem…). No fundo, trata-se
do triunfo de uma mentalidade segundo a qual a vida é produzir e
consumir. Sustento que se trata de um absurdo, tanto em termos humanos
quanto estritamente técnicos.
O Estado de Bem-estar é a base da produtividade e da solidariedade
social. No livro que publiquei alguns anos atrás, com Pekka Himanen,
sobre o modelo finlandês, mostramos como a produtividade e
competitividade da Finlândia – uma das mais altas na Europa, e superior à
alemã – baseava-se na qualidade de capital humano, da educação, das
universidades, da pesquisa. E também da saúde pública (sem corpore sano
não há mens sana).
Nestas condições, surge um círculo virtuoso: o Estado de Bem-estar
social gera capital humano de qualidade, que gera produtividade, que
permite financiar sobre bases não inflacionárias o Estado de Bem-estar.
Se as partes se desconectam, o sistema afunda. Porque o argumento do
suposto desencontro entre trabalhadores ativos e inativos, que
inviabilizaria uma Previdência digna não leva em contam fatores
essenciais. Por exemplo: o importante não é o número de pessoas que
sustentam o sistema, mas a produtividade gerada por eles para custear o
apoio aos aposentados. Se, além disso, os benefícios sociais forem
oferecidos por um Estado de Bem-estar dinâmico, apoiado nas tercnologias
de informação, os custos são reduzidos. De modo que é os benefícios são
perfeitamente sustentáveis, desde que ampliem a produtividade da
economia, e diminuam a ineficiência no Estado não por meio do desemprego
– mas de uma modernização organizativa e tecnológica do setor público.
Mas há algo ainda mais importante. O Estado de Bem-estar social não
foi um presente de governos ou empresas. Resultou, entre 1930 e 1970, de
potentes lutas sociais, que conseguiram renegociar as condições de
repartição da riqueza. Estabeleceu, como resultado, uma paz social que
permitiu concentrar esforços em produzir, consumir, viver e conviver.
Agora, questionam-se as bases desta convivência. Péssimo cálculo.
Porque a destruição deliberada do Estado de Bem-estar social conduzirá
ao surgimento de um Estado de mal-estar de perfis sinistros. E isso não
acaba assim. Novos movimentos estão se gestando, unindo indignados e
sindicatos. Daí poderão surgir um novo Estado e um novo Bem-estar
Nenhum comentário:
Postar um comentário