É preciso remover obstáculos à ordem burguesa e seu afã de lucro – se no caminho estiverem alguns direitos, devem ser removidos.
Para
defender a “sociedade”, ataquemos a sociedade; para garantir a
“democracia”, vamos restringir a democracia.
O
governo da presidente Dilma, acossado e sem resposta ao funcionalismo
púbico e greve, a não ser a intransigência e prepotência de quem
escolheu direcionar o fundo público em auxílio ao capital privado em
detrimento do setor público, resolveu tirar do armário o arsenal de
projetos de lei que limitam o direito de greve.
Quando
realizávamos os debates na época da elaboração da atual constituição, um
jurista renomado aconselhava aos sindicalistas que a melhor redação
era: “a greve é um direito”. Alertava-nos que qualquer detalhamento ou
normatização seria, via de regra, uma manifestação dos interesses de
cercear e limitar este direito e nunca viria em favor dos trabalhadores.
Parece que tal conselho segue sábio e útil.
O que se
alega é a necessidade de “disciplinar”, “normatizar” a utilização do
recurso da greve em nome de defender os interesses da “sociedade”, daí
os dispositivos indicados de restringir tal utilização em setores
estratégicos, garantir o funcionamento mínimo de serviços essenciais,
limitação do exercício do direito em “épocas de eventos internacionais”,
a garantia de medidas de punição, como corte de ponto e substituição de
servidores.
Em
primeiro lugar é preciso que se diga que tais medidas, por trás do manto
enganoso e ideológico da suposta “defesa da sociedade”, visam defender o
governo e por trás dele os interesses de classe que representa da
reação dos funcionários públicos à desastrosa política implementada de
reforma do Estado e de desmonte de serviços públicos. A onda de greves
que vivenciamos tem suas raízes não na intolerância de funcionários
dispostos a abusar do direito de greve para garantir mesquinhos
interesses corporativos, pelo contrário, é a reação esperada de um setor
que em sua maioria (guardadas honradas exceções) deu um voto de
confiança ao governo e foi ludibriado.
A raiz
das greves que presenciamos pode ser encontrada no adiamento
injustificável do estabelecimento de uma data base para o funcionalismo,
no não cumprimento da promessa de reajustes anuais que corrigiriam a
inflação e do fracasso da mesa permanente de negociação que deveria ser
um canal de negociação permanente do governo com os diferentes setores
do funcionalismo. A Secretaria de Relações do Trabalho vinculada ao
Ministério do Planejamento e Gestão especializou-se nas manobras
protelatórias, engodos e escaramuças cuja única finalidade foi retardar o
atendimento das demandas apresentadas, como, por exemplo, a
reestruturação das carreiras, o enfretamento de distorções salariais e a
mera implantação de diretos adquiridos.
O que
nos espanta não é a força e o vigor da greve que vimos em 2012, mas
porque ela não ocorreu antes. De um lado, no caso de muitos setores do
funcionalismo, vimos a boa vontade e a aceitação da tese governista que
se estaria arrumando a casa através de uma macro política econômica
combinada com uma reforma do Estado que, garantindo um suposto e mítico
crescimento econômico sustentável, levaria na sequência a uma
valorização do serviço público. Essa “boa vontade” foi operada com o
apassivamento de representações sindicais através de métodos diretos e
indiretos de cooptação que foram desde a participação direta no governo,
passando pelo atendimento de demandas burocráticas no caso das centrais
sindicais, até a liberação de recursos no balcão de projetos e verbas
das diferentes áreas do governo.
Não
devemos menosprezar a estratégia do governo no sentido de criar uma
diferenciação profunda no governo entre carreiras que considerava de
estado e de ações e serviços que o governo implantou formas severas de
terceirização e precarização, dividindo o setor púbico.
No
entanto, a eficácia de tais medidas encontrou seu limite no agudizar da
crise do capital e do desmoronar do sonho de um capitalismo regulado e
sustentável. A crise cobra do governo a liberação do fundo público para
salvar o capital e os funcionários públicos se vem diante de uma
resposta que suas demandas serão novamente adiadas. Quando a economia
cresce os funcionários tem que dar a sua cota de sacrifício para manter a
política de superávits primários e estabilizar a economia para que ela
continue crescendo, quando entra em crise tem que ser sacrificados para
que a economia privada não caia tanto.
Com medo
de estabelecer uma data base e os ajustes anuais o governo operou com o
calendário orçamentário, o que lhe permitiu negociar em separado com os
diferentes setores do funcionalismo, dividindo para reinar como os
velhos romanos, e chantageando com as amarras orçamentárias e a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Este ano o tiro saiu pela culatra e o
calendário orçamentário virou a data base unificada do funcionalismo.
Puxados pela greve nacional dos professores universitários, os demais
setores, inclusive organizados pelo sindicalismo governista, não tiveram
outra forma de pressão que não a greve para enfrentar a intransigência
do governo.
Diante
do movimento legítimo dos funcionários o governo, ao contrário do que
seria sensato, ou sejam, negociar, resolveu manter a arrogância, não
recebeu as entidades, de fato não negociou, o que foi decisivo para que
algumas greves se mantivessem por tanto tempo. Os professores, por
exemplo, entraram em greve em 17 de maio e só foram recebidos no dia 13
de julho para depois de duas rodadas de uma farsa de negociação o
governo encerrar a farsa assinando um suposto acordo com uma entidade
que com dificuldade dizia representar cinco das ciquenta e nove IFES em
greve.
Como
resolver este problema? Negociando com entidades realmente
representativas, cedendo no que for possível, reconhecendo que a
dimensão do movimento é proporcional à protelação e adiamento
injustificável no atendimento das demandas que se acumularam? Não, o
governo resolve enfrentar a questão da forma como os governos
autoritários agem: cerceando o direito de greve!
A raiz
de todo autoritarismo pode ser encontrada no medo que os governantes que
representam interesses de uma minoria tem de seu povo. A verdadeira
universalidade por traz destas medidas temerárias que se anunciam não
pode ser encontrada no recurso de evocar os abstratos “interesses da
maioria da sociedade”, pelo contrário. Trata-se de uma universalidade
particularista tornada possível diante de uma suposta ameaça que vem
daqueles que lutam e resistem na defesa de seus direitos. Como nos
ensinou Leandro Konder ao tratar da ideologia de direita:
O
próprio sistema em cuja defesa as classes dominantes se acumpliciam – um
sistema que gravita em torno da competição pelo lucro privado – impede
que as forças sociais em que consiste a direita sejam profundamente
solidárias: elas só se unem para os objetivos limitados da luta contra o
inimigo comum (Leandro Konder, Introdução ao Fascismo, 2009, São Paulo, Expressão Popular, pg. 28).
No caso
presente o inimigo comum somos nós que lutamos, através dos meios
democráticos conquistados – como o direito de greve – na defesa das
demandas mais elementares como salários, condições de trabalho e
carreira. Não é a defesa da sociedade, mas a garantia para que o governo
a serviço do capital siga seu trabalho e que o capital tenha as
condições de continuar acumulando, condições necessárias para restringir
direitos, flexibilizar conquistas e precarizar a vida.
É
preciso restringir o direito de greve para que o Brasil receba os
eventos internacionais e seu mar de recursos para saciar a fome de lucro
das grandes empreiteiras. Se o direito à moradia estiver no caminho,
façamos como se tem feito nas remoções no Rio de Janeiro: removamos este
obstáculo com retroescavadeiras acompanhadas por batalhões da polícia
militar. Se o direito de propriedade estiver ameaçado, a justiça garante
a remoção de milhares de famílias, como no Pinheiriho em São José dos
Campos. É preciso remover obstáculos à ordem burguesa e seu afã de lucro
– se no caminho estiverem alguns direitos, devem ser removidos.
Para
defender a “sociedade”, ataquemos a sociedade; para garantir a
“democracia”, vamos restringir a democracia. Não, estamos diante de algo
muito mais simples de ser entendido: a lógica que beneficie uma parte
bem pequena da sociedade, a burguesia e seus negócios, se choca com os
interesses diretos daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho.
Para o bem da ordem os instrumentos da burguesia precisam ser
glorificados e mantidos, como seu governo, enquanto os instrumentos dos
trabalhadores precisam ser restringidos, como o direito de greve.
A
formalidade democrática, cedo ou tarde, abre um paradoxo: ou os
trabalhadores no exercício de direitos formais cobram a substancialidade
de um novo patamar de direitos que digam respeito às suas reais
demandas, ou o capital incomodado com tal possibilidade começa a cercear
mesmo os direitos formais.
Mas os
poderosos se enganam. Existe um elemento no direito que vai além da
forma legal que por ventura o reveste. Houve um tempo em que a greve,
assim como a organização sindical, era ilegal no Brasil – e nós fizemos
greves e conquistamos o direito de ter nossas organizações sindicais.
Eles que tornem a greve ilegal, isso não nos intimidará e nós faremos
greves. Então que cassem nossas organizações e nós as reconstruiremos,
contra a ordem e por cima das amarras das leis que tentarão em vão
revestir nossos direitos.
***
Mauro Iasi
é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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