Por Miguel Pereira.
Sob o
pretexto de regulamentar a terceirização no Brasil, forma triangular de
se estabelecer relações de produção e de trabalho envolvendo uma empresa
contratante, outra contratada e o trabalhador, a Câmara dos Deputados
está prestes a aplicar o maior golpe nos direitos trabalhistas e sociais
desde a aprovação da CLT, em 1943, com gravíssimos impactos para todos
os trabalhadores, rurais e urbanos, públicos e privados, e por
consequente desestruturar toda a organização social vigente.
Está marcada
para o próximo dia 7 de abril a votação em plenário do Projeto de Lei
(PL) nº 4330/2004, do ex-deputado Sandro Mabel, empresário do setor
alimentício, cujo relatório a ser apreciado nem sequer foi votado na CCJ
da Câmara. A proposta tem como relator o deputado Artur Maia,
atualmente no recém-criado partido “Solidariedade”.
Obviamente
que tal PL, no mínimo polêmico e controverso, é colocado tão rapidamente
na pauta desta legislatura, com apenas dois meses desde o seu início,
pelo presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), como uma
exigência do grande capital nacional e internacional, financiadores das
campanhas eleitorais. Agora cobram o seu preço, para colocar a classe
trabalhadora brasileira novamente de joelhos, implodindo a sua
capacidade de organização e resistência, dentre outros terríveis
malefícios, pulverizando inclusive sua capacidade de representação
política enquanto classe, aniquiland o com as categorias atualmente
organizadas e as suas negociações coletivas, rebaixando os patamares
alcançados em décadas de lutas, e que possibilitou, dentre outras
conquistas organizativas e de expressão política, que foi a construção
do Partido dos Trabalhadores.
Aproveitando-se
da intencionalmente construída crise política atual, com as suas
repercussões econômicas, o que se coloca na berlinda são as
possibilidades reais de maior emancipação futura da classe trabalhadora
brasileira, que no momento experimenta uma incipiente, mas gradativa
participação de seus salários na renda nacional, com a recuperação de
seu poder de compra, particularmente com o incremento de uma política de
valorização do salário mínimo e aumentos reais de salários , já com
expressiva repercussão nas demais esferas de organização social.
Estarrecedor
e contraditório é o momento político escolhido para tal votação, caso
não fosse a questão dos financiamentos da campanha eleitoral, uma vez
que a sociedade acompanha estupefata a chamada “Operação Lava Jato”,
justamente envolvendo a apuração de um grande caso de corrupção de
bilhões de reais na maior empresa brasileira, a Petrobras, cujo teor das
denúncias são as relações promíscuas entre empresas prestadoras de
serviços terceirizadas, formação de caixa 2 para partidos e campanhas,
propinas e todo tipo de corrupção, comprometendo a imagem do Congresso
Nacional, com denúncias inclusive contra o próprio Eduardo Cunha de ter
se b eneficiado com esse esquema fraudulento. Curioso e sintomático é o
silêncio da mídia em geral, que, apesar de espetaculizar as
investigações da Polícia Federal, se silencia diante da tentativa de
legalização desse tipo de risco que incorrermos.
Muito tem se
falado da necessidade de se regulamentar a terceirização no Brasil, o
que tem a nossa total concordância. Mas, diferentemente do que propõe o
PL 4330, é preciso impedir efetivamente a prática da intermediação
ilegal de mão de obra, a discriminação de toda ordem que sofrem os mais
de 12 milhões de trabalhadores terceirizados hoje no País, socialmente e
de trato nos ambientes de trabalho, com a utilização de vestiários,
banheiros, refeitórios e transportes apartados, mas principalmente as
graves distorções salariais e de jornadas de trabalho.
Precisamos
assegurar salários dignos e iguais aos que são diretamente contratados.
Impedir que o adoecimento, os acidentes e as mortes vitimizem de maneira
endêmica esses trabalhadores. Os salários dos terceirizados são, em
média, menores em cerca de 25% e as jornadas semanais têm acréscimos de
três horas. Mas no caso dos bancários, por exemplo, essa diferença chega
a salários menores em 75% e jornadas acrescidas em 14 horas semanais,
comparando-se com os correspondentes bancários. De cada 10 mortes no
trabalho, 8 envolvem trabalhadores terceirizados. Por quê? São menos
capazes, produtivos? Claro que não.
É que como
medida de economia menos se investe em cursos de treinamento e
capacitação, em equipamentos de segurança, expondo os trabalhadores a
maior grau de riscos. Apurações recentes das inspeções do trabalho,
realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), apontam que
praticamente a totalidade das centenas de casos identificados como
trabalho análogo a escravo tratava-se de alguma forma de contrato
terceirizado. Onde estão os direitos humanos desses trabalhadores? Que
sociedade é essa que marcha nas ruas cobrando por moralidade pública,
fim da corrupção etc. e admite que esse tipo de crime ocorra
impunemente?
O PL 4330,
ao propor a liberalização geral da terceirização para qualquer área,
atividade ou setor produtivo das empresas, desde que tenham alguma
especialização, altera não apenas as relações laborais, mas as próprias
regras de direito empresarial, porque coloca em xeque o próprio estatuto
social das empresas, onde se define para qual objeto social foram
constituídas, uma vez que poderá repassar todas as suas atividades para
terceiros. Teremos empresas sem empregados? E isso certamente trará
graves consequências do ponto de vista concorrencial e também
relacionadas à qualidade dos produtos e serviços, uma vez que as
empresas no Brasil terceirizam para reduzir seus custos, conforme revela
a própria pesquisa da CNI, a confederação patronal da indústria.
É um projeto
de lei muito mais maléfico para os trabalhadores. Nele também se
estabelecem possibilidades infinitas de subcontratações de empresas,
inclusive a legalização da figura dos PJs, empresas de uma pessoa só,
sem qualquer direito trabalhista, porque nessa modalidade o trabalhador
vira pessoa jurídica. E empresas não adoecem, nem tiram férias e
licenças, ou se aposentam. Ou seja, na terceirização ilimitada todos os
riscos são transferidos para os trabalhadores. A escolha política de
reorganizar a produção é das empresas, mas os riscos totais são
transferidos para os trabalhadores, que ainda por cima sofrem com os
constantes calotes. Como se não bastasse, esse projeto ainda define a
responsabilidade entre contratadas e contratantes apenas como
subsidiária.
Outra
falácia no tocante à exigência da especialização como único critério
para abrir de vez a porteira da substituição dos atuais trabalhadores
por terceirizados é que no PL 4330 consta expressamente a inobservância
dessa exigência aos correspondentes bancários, forma ilegal de
terceirização aplicada pelos bancos para precarizar a sua relação de
consumo com clientes e usuários, mas que nem de longe possuem as
condições exigidas pelo próprio Banco Central às demais instituições
financeiras para atuarem no Brasil.
Na
realidade, precisamos sim ter uma legislação que impeça a
mercantilização da mão de obra no Brasil e efetivamente assegure
direitos iguais para os trabalhadores que exerçam a mesma atividade ou
função, seja dentro ou fora das empresas. Ou seja, nas possibilidades
legais que caibam algum tipo de prestação de serviços por terceiros, não
pode haver qualquer espaço para nenhum tipo de precarização do
trabalho.
Não é
verdade, portanto, que estamos preocupados em proteger apenas os demais
34 milhões de trabalhadores que compõem o mercado formal de trabalho no
Brasil, que serão alçados rapidamente à condição de terceirizados ou
prestadores de serviços precários, na forma da nova lei, caso seja
aprovada. O que, aliás, já seria suficiente para lutarmos para barrar a
sua aprovação. E também não é verdade que estamos apenas divergindo
sobre a representação desse segmento terceirizado, como maldosamente
alguns parlamentares e empresários vêm afirmando.
Queremos sim
assegurar a melhor forma de organização e representação, que permita
manter e ampliar a unidade da classe trabalhadora, única possibilidade
de conquistas, e não a sua pulverização e enfraquecimento como consta no
PL 4330. Se há alguém interessado apenas em representar trabalhadores
precarizados, esse não é o nosso caso.
Enquanto as
empresas estão preocupadas com o chamado risco jurídico, que na verdade
nada mais é do que a tentativa de se livrarem dos passivos trabalhistas
conscientemente construídos por elas ao longo dos anos, precisamos ter
uma lei que impeça o risco de morte, pois a terceirização está matando
nossos trabalhadores.
E
efetivamente para nenhuma dessas questões apresentadas o PL 4330 traz
soluções. Ao contrário, só aprofunda as distorções e ainda por cima
aumentará a concentração da renda no país. Menores salários, maiores
lucros.
Dessa forma,
queremos de fato que a Constituição Federal de 1988 ao estabelecer como
princípio fundante da sociedade brasileira o valor social do trabalho
como um dos pilares da organização social seja respeitada e em nome de
uma sociedade de fato mais justa, fraterna e solidária. Queremos que o
PL 4330 seja arquivado e se inicie um novo processo negocial, envolvendo
todos os atores sociais para a construção de uma legislação que
signifique um avanço social e não um retrocesso histórico para esse
nosso país, que é a sétima maior economia capitalista global, feita dia a
dia por homens e mulheres trabalhadoras.
Não ao PL 4330.
Nenhum comentário:
Postar um comentário