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sexta-feira, 3 de abril de 2015

O trabalho de base

Por Lincoln Secco 

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Em julho de 1919 Filip Mironov ousou escrever uma carta aberta a Lenin onde reportava que os camponeses da região do Dom gritavam “Queremos sovietes, fora os comunistas”. Claro que se referiam aos “comunistas” que oportunamente aderiram depois de 1917. Mironov tinha sido o responsável pela resistência ao avanço das tropas brancas do General Krasnov. Em 1920 foi preso e assassinado pelo governo bolchevique. Em 1960 o Exército Soviético o reabilitou.

O dilema daquele cossaco pobre que se fizera chefe militar foi o da esquerda histórica desde a Revolução Francesa. Jacobinos sob Napoleão, comunistas sob Stalin e anarquistas na Rússia ou na Espanha tinham que escolher entre o déspota progressivo ou a derrota para inimigos muito piores.

Longe estamos de situação parecida no Brasil. Nenhum grupo de esquerda tem aquelas qualidades que só o momento histórico e as escolhas humanas podem forjar. Ainda assim, vivemos uma situação política muito grave. Desde 1964 a Direita não saía às ruas. O governo caminhou tanto à direita que perdeu parte do apoio que tinha nos movimentos sociais e não recebeu nenhum alívio de seus opositores do mundo oficial da política.

O que deveriam fazer os novíssimos movimentos populares diante de uma ameaça de impeachment da presidenta eleita?

TRABALHO DE BASE

Antes de mais nada cabe dizer que, individualmente, ninguém deveria permanecer indiferente à cassação de um mandato legítimo. O atual governo tem o direito de cumprir seu mandato, ainda que o atual governo seja conciliador e não tenha percebido que o pacto social rentista que outrora o sustentava se quebrou.

Mas a pergunta não se refere a indivíduos e sim a coletivos.

Os novíssimos movimentos fazem aquilo que o PT abandonou faz muito tempo: trabalho de base. Por isso, a ascensão do Movimento Passe Livre no período de junho de 2013 a janeiro de 2015 só surpreendeu quem estava preso ao país oficial. Desde 2005 ele operava longe dos gabinetes da esquerda bem empregada.

Como ele, muitos coletivos e movimentos fazem seu trabalho silencioso nas periferias. Se despontarem aqui ou ali na cena política não será por obra das redes sociais. Na maioria dos casos não atuam com pautas amplas, concentram-se numa única de grande capacidade de mobilização local ou até nacional. Sua organização horizontal e sua utopia não acorrentam seus membros. Eles e elas formam ali esculturas sociais fora do circuito dos partidos de esquerda. A política oficial está numa frequência, eles e elas em outra.

COBRANÇAS

Constantemente tais movimentos são cobrados à direita e à esquerda. E os black blocs? Irão à marcha antifascista? São contra a Copa do Mundo? Ao atacar a prefeitura deste partido não colaboram com o governador daquele outro? Por que não se engajam na campanha pela água? Por que abriram a porta do inferno em junho de 2013? O que pensam do programa Mais Médicos? Por que não dão mais entrevistas?

A mais nova pergunta, caso a luta política venha a se acirrar será: são a favor do governo federal ou ficarão passiva e objetivamente ao lado dos fascistas?
A resposta mais óbvia é manter a autonomia. É que esses movimentos, diferentemente daqueles tradicionais da esquerda (sindicalismo, MST, MTST etc) não têm nenhuma relação orgânica com os governos petistas. Os movimentos sociais citados são parte importante de nossa história e têm todo o direito (talvez, o dever) de lutar pelo governo que ajudaram a construir.

Mas os novíssimos movimentos podem dizer tranquilamente que quem criou a crise política atual e tem que enfrentá-la é o próprio PT. Portanto, é incabível que eles se associem a um partido e a um governo cuja maioria condenou as manifestações populares dos últimos anos e, em alguns casos, apoiou a repressão a elas.

Muitos neopetistas defendem abertamente a prisão de “vândalos”. Não deixa de ser sugestivo que o único aspecto positivo que a grande imprensa destacou ao mesmo tempo nos dois protestos de 13 e 15 de março foi o caráter “pacífico”. Embora as selfies com a tropa de choque e a apologia da Ditadura Militar não deixem de causar dúvidas… Apenas no dia 15 foram presos em São Paulo alguns “carecas” fascistas, logo soltos. Nenhuma palavra sobre Rafael Braga, o preso símbolo de junho de 2013.

RECUO ESTRATÉGICO

Apesar disso, os novos movimentos não deveriam ficar indiferentes à conjuntura. O ciclo recessivo de uma economia estruturalmente semi-estagnada, a nova estratificação social e as tensões políticas nas ruas também atingem o trabalho de base.

O lutador de rua é preso como criminoso comum, vândalo, associação criminosa e, possivelmente no futuro por terrorismo. Se até dirigentes petistas são selecionados entre a totalidade dos políticos corruptos do país para serem exemplarmente julgados, o que esperar para quem não possui a rede de apoio jurídico e parlamentar dos partidos estabelecidos?

A combinação de economias exportadoras de matérias-primas, demanda mundial crescente por elas e governos de centro-esquerda entrou em crise no Brasil, Argentina, Equador, Venezuela e talvez até na Bolívia. Em Honduras e Paraguai, extremamente periféricos, nem chegou a funcionar. A demanda dos países ricos pelas commodities esbarra, todavia, no fato de que aqueles governos latinoamericanos eram permeáveis também à mobilização popular por maiores compromissos do Estado com saúde, educação, transporte, agricultura familiar e livre de transgênicos e contra grandes obras destinadas à geração de energia para a economia primária exportadora e à construção de corredores de escoamento dos produtos exportáveis. Ainda que tais governos mantivessem intacto o grande capital.

Diante disso, o trabalho de base enfrentará maior hostilidade policial quando levar a protestos públicos, ocupações e manifestações nas ruas. O que fazer? A resposta não pode estar neste texto e sim na própria dinâmica dos novíssimos movimentos sociais. Eles continuarão seu trabalho silencioso na infraestrutura da sociedade civil. A aposta é que depois de junho vivemos um novo ciclo político no Brasil. A luta dos partidos continuará e alguns deles, se souberem fazer um aggiornamento à esquerda, continuarão importantes na superfície, mas como um corpo sem alma.

Mas no subterrâneo da política, há um espírito vibrante, ainda sem um corpo social. 

Como um espectro que nos ronda.


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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.

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