Por Lincoln Secco
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Em julho de
1919 Filip Mironov ousou escrever uma carta aberta a Lenin onde
reportava que os camponeses da região do Dom gritavam “Queremos
sovietes, fora os comunistas”. Claro que se referiam aos “comunistas”
que oportunamente aderiram depois de 1917. Mironov tinha sido o
responsável pela resistência ao avanço das tropas brancas do General
Krasnov. Em 1920 foi preso e assassinado pelo governo bolchevique. Em
1960 o Exército Soviético o reabilitou.
O dilema
daquele cossaco pobre que se fizera chefe militar foi o da esquerda
histórica desde a Revolução Francesa. Jacobinos sob Napoleão, comunistas
sob Stalin e anarquistas na Rússia ou na Espanha tinham que escolher
entre o déspota progressivo ou a derrota para inimigos muito piores.
Longe
estamos de situação parecida no Brasil. Nenhum grupo de esquerda tem
aquelas qualidades que só o momento histórico e as escolhas humanas
podem forjar. Ainda assim, vivemos uma situação política muito grave.
Desde 1964 a Direita não saía às ruas. O governo caminhou tanto à
direita que perdeu parte do apoio que tinha nos movimentos sociais e não
recebeu nenhum alívio de seus opositores do mundo oficial da política.
O que deveriam fazer os novíssimos movimentos populares diante de uma ameaça de impeachment da presidenta eleita?
TRABALHO DE BASE
Antes de
mais nada cabe dizer que, individualmente, ninguém deveria permanecer
indiferente à cassação de um mandato legítimo. O atual governo tem o
direito de cumprir seu mandato, ainda que o atual governo seja
conciliador e não tenha percebido que o pacto social rentista que
outrora o sustentava se quebrou.
Mas a pergunta não se refere a indivíduos e sim a coletivos.
Os
novíssimos movimentos fazem aquilo que o PT abandonou faz muito tempo:
trabalho de base. Por isso, a ascensão do Movimento Passe Livre no
período de junho de 2013 a janeiro de 2015 só surpreendeu quem estava
preso ao país oficial. Desde 2005 ele operava longe dos gabinetes da
esquerda bem empregada.
Como ele,
muitos coletivos e movimentos fazem seu trabalho silencioso nas
periferias. Se despontarem aqui ou ali na cena política não será por
obra das redes sociais. Na maioria dos casos não atuam com pautas
amplas, concentram-se numa única de grande capacidade de mobilização
local ou até nacional. Sua organização horizontal e sua utopia não
acorrentam seus membros. Eles e elas formam ali esculturas sociais fora
do circuito dos partidos de esquerda. A política oficial está numa
frequência, eles e elas em outra.
COBRANÇAS
Constantemente tais movimentos são cobrados à direita e à esquerda. E os black blocs?
Irão à marcha antifascista? São contra a Copa do Mundo? Ao atacar a
prefeitura deste partido não colaboram com o governador daquele outro?
Por que não se engajam na campanha pela água? Por que abriram a porta do
inferno em junho de 2013? O que pensam do programa Mais Médicos? Por
que não dão mais entrevistas?
A mais nova
pergunta, caso a luta política venha a se acirrar será: são a favor do
governo federal ou ficarão passiva e objetivamente ao lado dos
fascistas?
A resposta
mais óbvia é manter a autonomia. É que esses movimentos, diferentemente
daqueles tradicionais da esquerda (sindicalismo, MST, MTST etc) não têm
nenhuma relação orgânica com os governos petistas. Os movimentos sociais
citados são parte importante de nossa história e têm todo o direito
(talvez, o dever) de lutar pelo governo que ajudaram a construir.
Mas os
novíssimos movimentos podem dizer tranquilamente que quem criou a crise
política atual e tem que enfrentá-la é o próprio PT. Portanto, é
incabível que eles se associem a um partido e a um governo cuja maioria
condenou as manifestações populares dos últimos anos e, em alguns casos,
apoiou a repressão a elas.
Muitos
neopetistas defendem abertamente a prisão de “vândalos”. Não deixa de
ser sugestivo que o único aspecto positivo que a grande imprensa
destacou ao mesmo tempo nos dois protestos de 13 e 15 de março foi o
caráter “pacífico”. Embora as selfies com a tropa de choque e a
apologia da Ditadura Militar não deixem de causar dúvidas… Apenas no
dia 15 foram presos em São Paulo alguns “carecas” fascistas, logo
soltos. Nenhuma palavra sobre Rafael Braga, o preso símbolo de junho de
2013.
RECUO ESTRATÉGICO
Apesar
disso, os novos movimentos não deveriam ficar indiferentes à conjuntura.
O ciclo recessivo de uma economia estruturalmente semi-estagnada, a
nova estratificação social e as tensões políticas nas ruas também
atingem o trabalho de base.
O lutador de
rua é preso como criminoso comum, vândalo, associação criminosa e,
possivelmente no futuro por terrorismo. Se até dirigentes petistas são
selecionados entre a totalidade dos políticos corruptos do país para
serem exemplarmente julgados, o que esperar para quem não possui a rede
de apoio jurídico e parlamentar dos partidos estabelecidos?
A combinação
de economias exportadoras de matérias-primas, demanda mundial crescente
por elas e governos de centro-esquerda entrou em crise no Brasil,
Argentina, Equador, Venezuela e talvez até na Bolívia. Em Honduras e
Paraguai, extremamente periféricos, nem chegou a funcionar. A demanda
dos países ricos pelas commodities esbarra, todavia, no fato de
que aqueles governos latinoamericanos eram permeáveis também à
mobilização popular por maiores compromissos do Estado com saúde,
educação, transporte, agricultura familiar e livre de transgênicos e
contra grandes obras destinadas à geração de energia para a economia
primária exportadora e à construção de corredores de escoamento dos
produtos exportáveis. Ainda que tais governos mantivessem intacto o
grande capital.
Diante
disso, o trabalho de base enfrentará maior hostilidade policial quando
levar a protestos públicos, ocupações e manifestações nas ruas. O que
fazer? A resposta não pode estar neste texto e sim na própria dinâmica
dos novíssimos movimentos sociais. Eles continuarão seu trabalho
silencioso na infraestrutura da sociedade civil. A aposta é que depois
de junho vivemos um novo ciclo político no Brasil. A luta dos partidos
continuará e alguns deles, se souberem fazer um aggiornamento à esquerda, continuarão importantes na superfície, mas como um corpo sem alma.
Mas no subterrâneo da política, há um espírito vibrante, ainda sem um corpo social.
Como um espectro que nos ronda.
***
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.
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