Por Giovanni Alves.
A violência é
um velho diabo. Ela representa o cerne essencial da relação-capital ou
relação de Poder. A violência é o próprio modo de ser do capital como
sociometabolismo estranhado, onde propriedade privada – divisão
hierárquica do trabalho são determinações reflexivas. O capital engendra
e engendrou historicamente um rol de violências (no plural) que compõem
o quadro das opressões cotidianas e dominação social de classe. O
assédio moral é um modo de violência do capital que possui
características próprias que iremos tentar desvelar neste pequeno
artigo.
A violência
desde as priscas eras da história da humanidade caracterizou a
relação-capital. Mas o termo “assédio moral” e suas múltiplas
configurações contingentes é bastante recente. Por exemplo, o assédio
moral no trabalho é um modo de violência que não se confunde meramente
com o despotismo fabril salientado por Marx no século XIX. Talvez
possamos dizer que o assédio moral no trabalho seja um novo modo de
despotismo laboral que possui características muito peculiares que não
se confundem com a violência explicita, pura e simples.
O que o
conceito de “assédio moral” no trabalho nos diz, além daquilo que já
sabíamos, com respeito às violências explícitas, próprias da
relação-capital, que ocorrem nos locais de trabalho em nossos dias? Como
o assédio moral se distingue, por exemplo, do dano moral no trabalho,
ou mesmo das múltiplas violências explicitas que permeiam a
cotidianidade alienada da relação salarial há séculos?
Perguntemos: qual a novidade que o conceito de “assédio moral” – no trabalho ou na vida cotidiana – anuncia no século XXI?
Primeiro,
podemos dizer que o conceito de “assédio moral” desvela, em si e para
si, que o capital é hoje, mais do que nunca, e acima de tudo, uma
relação social de fundo moral. Por isso, o adjetivo “moral”
possui um sentido profundo ao qualificar o substantivo “assédio”. Não se
trata de simples assédio, mas sim assédio moral. Precisamos entender,
com mais perspicácia, o que é “assédio” e por que ele é “moral”. A
violência do capital assume hoje um caráter de violência implícita, isto
é, ela é sutil e silenciosa, envolvente e perversa. Eis o sentido
profundo do assédio moral – na vida cotidiana ou no trabalho. Na
verdade, no plano da aparência, a nova violência do capital assedia, mas
não violenta. Um assédio moral não é meramente um dano (ou ofensa)
moral, ou mesmo uma agressão peremptória contra a
pessoa-humana-que-trabalha. Ameaçar, constranger, impor, reprimir homens
e mulheres que trabalham, não se configuram propriamente como assédio
moral. Tudo isso representa violências explícitas do capital, mas não
são, a rigor, assédio moral propriamente dito. Por exemplo, escravos não
sofrem assédio moral, mas apenas trabalhadores assalariados, que são
trabalhadores livres que serem explorados no mercado de trabalho e que
hoje são sujeitos de direitos. A liberdade na ordem burguesa, a própria
contradição em termos, é capaz de nos iludir sobre a nossa condição
existencial. Apenas homens livres são capazes de serem assediados
moralmente, pois eles acreditam que são livres e donos de si, quando não
o são efetivamente.
Segundo, o
assédio moral como novo modo de ser da violência do capital como modo
estranhado de controle sociometabolico, adquire um caráter efetivamente
real. Trata-se de uma violência simbólica que desmonta – por dentro – a
pessoa-humana-que-trabalha como subjetividade complexa. O
desmonte “violento” da personalidade humana é, efetivamente, no caso do
assédio moral, um desmonte ideológico que corrói o núcleo moral da
genericidade humana ideológico, tendo em vista que é operado por meio de
valores-fetiches (o que explica seu caráter sutil e envolvente). O
sujeito moral é intimado a consentir com sua própria degradação
humano-genérica. Portanto, podemos dizer que o assédio moral é o veículo
da “captura” da subjetividade do trabalho. “Captura” da subjetividade
(“captura” entre aspas) não significa “seqüestro” da subjetividade, pois
o termo “seqüestro” sugere violência explicita e peremptória. Por isso,
podemos dizer que, efetivamente, nas novas formas de gestão de cariz
toyotista não existe seqüestro, mas sim “captura”, muito embora,
articulada com a “captura” possa existir formas despóticas – ou
explicitamente violenta – do capital que configuram um “sequestro” ou
manipulação insidiosa. Um sequestro não poderia ser sutil, envolvente e
consentido, como ocorre com a “captura”, que implica resistência e
coerções envolventes.
Assim, a
nova violência do capital – o assédio moral que permeia o mundo do
trabalho e a totalidade social, é deveras sutil, envolvente e
silenciosa. Como “captura” da subjetividade ela é uma escolha moral
do sujeito que trabalha, assediado pelos valores-fetiches do
capital. Por ser livre, o sujeito que trabalha na ordem burguesa,
escolhe moralmente ser escravo. Ao dizermos “escolha moral” significa
que o sujeito assediado é o sujeito que colabora “voluntariamente”
(entre aspas porque o “voluntariado” é expressão de consentimento
espúrio, agenciado pelo medo e operado pelo inconsciente estendido – no nosso livro Trabalho e subjetividade (Editorial Boitempo, 2011) discutimos os mecanismos psicológicos que operam a “captura” da subjetividade).
Existe uma
violência condensada na prática do assédio moral, mas o modo de ser (a
violência sutil e perversa), e o sujeito-objeto da sua efetividade
(personalidades humanas complexas), são radicalmente outros. Nesse caso,
no caso do assédio moral, a violência implícita oculta-se como
violência propriamente dita, assumindo ideologicamente um caráter de
consentimento perverso (auto-alienação do homem que trabalha). O caráter
cínico e farsesco da ordem burguesa hipertardia propicia a violência
implícita no discurso da Exploração auto-consentida. No assédio moral, a
própria pessoa escolhe sua desefetivação humano-genérica (o tema da
“servidão voluntária”, de La Boetie, que emergiu na época da “acumulação
primitiva” do capital é reposto, deste modo, nas condições históricas
do capitalismo global, que repõem a acumulação por espoliação, como
diria David Harvey).
Enfim, o assédio moral é um modo específico de manipulação: a manipulação reflexiva
(o que significa que, o adjetivo “reflexiva” qualifica radicalmente o
substantivo, do mesmo modo que “moral” qualificou o substantivo
“assédio”). A reflexividade significa ação ideológica sobre o
Outro-como-proximo, visando convence-lo e induzi-lo a colaborar, aceitar
e assumir os valores do capital. A vida cotidiana e os novos locais de
trabalho reestruturado estão permeados de valores-fetiches –formas
ideológicas – operados por múltiplos veículos de comunicação (livros,
artigos em jornais e revistas, imagens-fetiches que permeiam telas,
cursos e treinamentos de fundo moral, discursos, filmes, etc). Essa
prática reflexiva (e comunicativa) – densamente ideológica –
configura-se como sendo um modo de ser do “assédio moral”. Na verdade,
nas condições do capitalismo manipulatório onde viceja o espírito do
toyotismo, o assédio moral tornou-se o próprio metabolismo social. A
violência implícita permeia não apenas locais de trabalho, mas relações
sociais cotidianas, onde o outro-como-próximo torna-se apenas meio para
nossas satisfações egoístas.
No plano
objetivo, a adoção dos valores-fetiches que compõem o universo
ideológico da ordem burguesa, degradam a personalidade humana. Por
exemplo, a linguagem oriunda do discurso gerencialista degrada o núcleo
moral da genericidade humana. Na era da barbárie social, podemos nos
desumanizar pela linguagem. Os valores-fetiches do capital que permeiam,
por exemplo, o discurso do Pensamento Único neoliberal, disseminado
pela mídia hegemônica, revolvem a subjetividade complexa das
personalidades humanas hoje. Este é o caráter da violência do capital,
que na dimensão jurídico-institucional, pode ser contestada como
ilicitude na medida em que forem elaboradas provas materiais que
comprovem o nexo primordial entre, por exemplo, o discurso da gestão
– que permeia a vida cotidiana e os locais do trabalho reestruturados
– e a degradação da pessoa humana que trabalha, manifestada pelas
pressões cotidianas – sutis, envolvente e silenciosa – pelo cumprimento
de metas abusivas, no dia-a-dia do labor alienado – pressões verticais e
horizontais que, pouco a pouco, conduz personalidades humanas mais
sensíveis, à depressão e adoecimentos laborais como expressão das
múltiplas formas de desefetivação humano-genérica.
É claro que a
luta juridico-politica (e sindical) é uma das frentes candentes de luta
contra o assédio moral no trabalho. Mas como o assédio moral é um
recurso ideológico, a ação efetiva de luta deve adquirir também
predominantemente um caráter ideológico. O assédio moral é a nova
violência do capital na era do poder da ideologia. Deste modo, a
proliferação do assédio moral em nossos dias decorre, em parte, da
renuncia da esquerda em geral, principalmente da esquerda
social-democrata, em levar a cabo a luta ideológica contra o capital.
Aceitamos que o Verbo neoliberal adquirisse corpo e alma, assediando
moralmente as pessoas que trabalham, subvertendo referenciais
ético-morais de resistência e luta contra a lógica do mercado. Por
exemplo, é assédio moral atribuir à pessoa que trabalha a denominação de
“colaboradores” ao invés de “trabalhadores” ou disseminar por meio de
perspectivas epistemológicas nas universidades, que a categoria trabalho
não constitui mais categoria ontológica fundante e fundamental do ser
social. Enfim, a corrosão do universo locucional da classe é o modo de
violência sociometabólica do capital na era da manipulação reflexa.
Podemos
dizer que o assédio moral configura-se como uma ação predominantemente
ideológica que opera, em si e para si, o fenômeno do estranhamento
que, na perspectiva lukacsiana, significa a degradação da pessoa humana
que trabalha (vide capítulo “O estranhamento”, volume II, do livro Para uma ontologia do ser social,
de Georg Lukács, Editorial Boitempo, 2014). Na era do capitalismo
global manipula-se reflexivamente, pessoas humanas mais desenvolvidas em
suas relações sociais, personalidades humanas complexas, portanto, mais
ricas, prenhes de possibilidades de desenvolvimento omnilateral (o que
distingue as individualidades pessoais de classe dos séculos
passados). O capital como processo de desenvolvimento civilizatório,
expande e reduz, ao mesmo tempo, as possibilidades de desenvolvimento
humano. Esta é a “contradição viva” que cria subjetividades complexas e,
ao mesmo tempo, as reduz no plano das relações humanas
instrumentalizadas. Por isso, o assédio moral é sintoma do processo
sistemático – e não meramente casual ou contingente – que reduz a
genericidade humana. O assédio moral no trabalho e na vida cotidiana é
um traço da crise de civilização intrínseca à própria lógica do capital global. Enfim, vivemos na civilização do assédio moral.
O assédio
moral como fenômeno social – e que se diferencia de outras formas de
violências do capital, apesar de estar articuladas com elas (como o dano
moral, discriminação racial e sexual, despotismo laboral, etc) – diz
respeito, deste modo, a um sistema social e a um processo de
subjetivação. Por exemplo, fala-se hoje em assédio moral organizacional.
Entretanto, o “organizacional” apenas compõem uma totalidade social,
cujo sociometabolismo incorporou práticas de assédio moral. Pode-se
falar assim, com maior precisão conceitual, em assedio moral sistêmico,
que se confunde com a própria vigência da ideologia dominante do
capital. Enfim, o assedio moral sistêmico é o eufemismo para o poder da
ideologia do capital. O discurso da Ordem interpela – e assedia – cada
vez mais as pessoas que trabalham como sujeitos morais. É claro que o
capital atua nos locais de trabalho reestruturados, moldando a gestão e a
nova organização do trabalho. Mas é importante perceber o assédio moral
como sendo elemento compositivo intrínseco do modo de controle
estranhado do capital global, articulando, mais do que nunca, vida e
trabalho. Ele pode manifestar-se com vigor nos locais de trabalho –
afinal, como diria Antonio Gramsci, a hegemonia nasce da fábrica.
Entretanto, constitui-se hoje todo um processo de subjetivação baseado
no assedio moral com suas características perversas e manipulatórias dos
sujeitos humanos.
Tem havido
hoje uma ampla discussão na sociedade sobre assédio moral –
principalmente assédio moral no trabalho. Na verdade, trata-se de algo
sintomático: ao constituir-se o conceito de “assédio moral”,
explicita-se o reconhecimento politico e social da nova violência do
capital no plano categorial. É a nominação da nova miséria humana
silenciosa e sutil que expõe o espectro da barbárie social. A nova
violência do capital é, ao mesmo tempo, um velho diabo e um novo demônio
que explicita, como traço orgânico da nova ordem do capital global, o
fenômeno do estranhamento na acepção lukacsiana. Como dissemos acima, o
assédio moral opera em si e para si, o fenômeno do estranhamento que
explicita uma densa e profunda contradição social: o desenvolvimento das
capacidades humanas por conta do desenvolvimento das forças produtivas
do trabalho social, não se traduz em desenvolvimento
pleno da personalidade humana. Pelo contrário, o sistema social do
capital, incubador de personalidades humanas perversas, provoca o
desmonte e degradação de personalidades humanas complexas. O assédio
moral como metabolismo social e processo de subjetivação estranhada cria
personalidades humanas perversas que operam no trabalho e na vida
cotidiana a degradação da pessoa que trabalha. O assédio moral contém a
lógica da reificação e instrumentalização do Outro-como-próximo que se
interverte em mero objeto de manipulação dos desejos egoístas. Trata-se
de uma forma sofisticada – sutil, perversa e envolvente – de relações
humanas alienadas que permeiam a sociedade burguesa.
É claro que a
lógica da instrumentalização do outro é a lógica da produção
capitalista em si e para si, desde sua constituição originaria. O
capitalismo nasce reificando o trabalho vivo, transformando-o em força
de trabalho como mercadoria. Mas o que diferencia o assédio moral das
formas de violência primitiva, exposta e brutal, que caracteriza a
exploração/espoliação, opressão e dominação do capital desde as priscas
eras históricas até os dias de hoje, é seu caráter de instrumentalização moral,
sutil, envolvente e consentida. Enfim, instrumentalização perversa onde
o eu torna-se carrasco de si mesmo (a auto-alienação dos
empreendedores) e, ao mesmo tempo, sujeito de fruição de sua própria
desefetivação humano-genérica.
A vigência
do “assédio moral” como a forma dominante da violência do capital no
trabalho e na vida cotidiana é, de certo modo, a proclamação daquilo que
poderíamos denominar a “vigência de Sade”. No alvorecer da ordem
burguesa, nos fins do século XVIII, o literato libertino Marques de Sade
explicitou em seus romances, as consequências (des)humanas da nova
lógica do liberalismo clássico imbuído do individualismo possessivo. Na
ótica sadeana, o liberalismo clássico levado às últimas conseqüências,
constituiria o outro meramente como um meio para minha fruição perversa.
É de seu nome que surge o termo “sadismo”, que define a perversão
sexual de ter prazer na dor física ou moral do parceiro ou parceiros.
No filme Saló ou os 120 dias de Sodoma,
de 1975, inspirado na obra homônima do Marques de Sade, adaptado para o
século XX, o cineasta visionário Pier Paolo Pasolini, vislumbrou a
miséria da sociabilidade instrumental do capitalismo global. No filme,
na Itália, durante o outono europeu de 1944, um grupo de jovens são
selecionados por quatro dirigentes fascistas (um presidente de um banco,
que representa o poder econômico; um bispo, representando a igreja; um
duque, que representa a nobreza; e um juiz, que representa o poder
judicial) para serem o objeto de uma série de torturas e experimentos
sádicos, ao longo de 120 dias.
A razão liberal, tal como a razão iluminista denunciada por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do esclarecimento,
continha sua própria miséria histórica: a degradação do
Outro-como-próximo. Na verdade, a lógica do liberalismo clássico – a
dominação do Outro como meio para a Exploração e produção da riqueza
abstrata; e a lógica do Iluminismo – a dominação da Natureza como
símbolo do Progresso e desenvolvimento da Tecnologia – compunham a
lógica sistêmica da razão instrumental que caracterizaria o capitalismo
histórico.
Na mesma
época histórica, o filósofo Immanuel Kant, aterrorizado pelas
consequências éticas da nova racionalidade instrumental do liberalismo
burguês, buscou em vão, fundamentar sua ética do imperativo categórico,
no corolário de que nenhum homem pode ser meio para o outro. Para ele, a
moralidade pode resumir-se num princípio fundamental – o “imperativo
categórico” – a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e
obrigações. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785)
exprimiu-o desta forma: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao
mesmo tempo desejar que se torne lei universal”. No entanto, Kant deu
igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na
mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral
essencial afirma o seguinte: “Age de tal forma que trates a humanidade,
na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas
como um meio”. Portanto, pare ele a moralidade exige que tratemos as
pessoas “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Kant foi o
primeiro a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor (preço),
devendo ser considerado como um fim em si mesmo e em função da sua
autonomia enquanto ser racional (o contrário da lógica do capital que se
constituía historicamente naquela época).
Entretanto, a
perspectiva do Marques de Sade foi deveras mais realista. A nova
civilização do capital, que nascia efusivamente no século XVIII, deixava
claro que a vigência do processo do trabalho como processo de
valorização, implicava que o homem seria, não apenas meio para
uma finalidade estranhada (a produção do valor), mas que, num segundo
momento, o próprio desenvolvimento do processo de valorização (com a
grande indústria), “negaria” o processo de trabalho, subsumindo realmente (e não apenas formalmente) o sujeito humano como força de trabalho tornado não apenas apêndice do sistema de máquina – no plano formal, mas realmente guardião e regulador do processo de produção (o que exige novo modo de manipulação do capital).
A subsunção real
do trabalho ao capital, ocorrido com a grande indústria, caracterizou o
século XX. Na era do fordismo-taylorismo, as dimensões perversas do
nexo psicofísico do capital não estavam postas de modo pleno. Como mero
apêndice da máquina, o homem que trabalha tinha apenas a função de
suporte da linha de montagem. É com o toyotismo como fordismo genuíno, e
a nova base técnica informacional, que instaura a nova forma de
produção do capital – a maquinofatura – que se explicita a radicalidade perversa
da exploração capitalista na medida em que se instaura, como diria Ruy
Fausto, a subordinação formal intelectual (ou espiritual) do trabalho ao
capital.
A lógica da gestão toyotista é a lógica do assédio moral. É o que salientamos no livro Trabalho e subjetividade
(Editora Boitempo, 2011). No plano da lógica da acumulação de valor, a
moral torna-se campo de disputa. A nova base técnica do sistema do
capital com a vigência da maquinofatura, alteram o modo de ser da
subsunção real do trabalho ao capital. Como salientou Ruy Fausto (ele
utiliza o termo pós-grande indústria e não maquinofatura), a subsunção
real torna-se subsunção formal intelectual (ou espiritual), onde a
“captura” da subjetividade – inclusive como “captura” da espiritualidade
– se impõe. É nesse novo campo de exploração do homem que trabalha, que
constitui-se o terreno fértil para o assédio moral. O
homem-que-trabalha torna-se implicado efetivamente, em sua dimensão moral
(ou espiritual) com a lógica do capital. Enfim, a proliferação do
assédio moral no trabalho e na vida cotidiana diz respeito a mudanças
estruturais na forma de produção do capital.
Como
contradição viva em processo, o capital opera movimentos contraditórios:
primeiro nega, com a grande indústria, o homem como sujeito moral, que
torna-se mero apêndice da máquina. Depois de negar o homem como sujeito
moral, volta a “resgata-lo” – no interior da nova materialidade de
exploração do capital – como subjetividade (e espiritualidade) com a
dita “pós-grande indústria” ou maquinofatura. Na “sociedade de
serviços”, onde predomina o que denominamos de “trabalho ideológico”, o
homem aparece não apenas como força de trabalho, mas também como
trabalho vivo, com a dimensão moral sendo restaurada, para logo a
seguir, ser “capturada” pelo capital – como exige a nova materialidade
“espiritual” do capital. Nesse caso, constitui-se o campo ideológico
propicio para o assédio moral, principalmente nos locais de trabalho
reestruturados – tanto do setor privado quanto do setor público da
totalidade viva do trabalho.
A
contradição candente implícita do “assédio moral” é que a “negação” da
personalidade humana – que assume uma dimensão perversa – ocorre no
momento em que o desenvolvimento civilizatório, posto como redução das
barreiras naturais, produz, de forma intensa e extensa, personalidades humanas complexas.
Temos novamente outro “nó contraditório” do capital: o resgate da
subjetividade ocorre para que se possa disputa-la e “captura-la” em prol
dos valores-fetiches do capital (o que implica sua deformação perversa
– ou perversidade narcísicas). Ao “resgatar” a subjetividade, o capital
da pós-grande indústria/maquinofatura busca – no sentido literal –
espoliar a riqueza de personalidades humanas complexas que se
constituíram com o processo civilizatório do capital.
Ao dizermos
“processo civilizatório do capital” expomos outro “nó contraditório” do
capital, isto é, na medida em que ocorre o desenvolvimento das forças
produtivas do trabalho social, ocorre a redução das barreiras naturais
(embora, ao mesmo tempo, em virtude do fetichismo social, imponha-se uma
“segunda natureza” cada vez mais social). É para lidar com
personalidades humanas complexas, resultado do processo civilizatório, e
prenhe – de modo contraditório – por novas possibilidades de
desenvolvimento humano, que o sistema social do capital altera a forma
de ser da sua violência ancestral. Para operar de modo hegemônico em
sociedades complexas, o capital constitui-se como capitalismo
manipulatório. É por isso que o “assédio moral” emerge como categoria
política e social candente para expor a miséria da normalidade burguesa.
Como diria Horácio, em Hamlet (de William Shakespeare), “há algo de podre no reino da Dinamarca”.
É como personalidades humanas complexas,
que nós dizemos hoje “não” à violência sutil do capital que assume a
forma de manipulação reflexiva. De certo modo, a luta contra o “assédio
moral” é quase como a vingança do filosofo Kant, que em sua ética da
razão prática, condenava qualquer um que utilizasse o outro como meio
para fins egoístas. Como perversidade, o “assédio moral” representa a
prática ideológica sistêmica de dispor o outro – de modo instrumental –
como sujeito perverso da barbárie social do capital. Com o assédio moral
ocorre a instrumentalização do outro para as finalidades alienadas – particularistas e ensimesmadas – das “personas” do capital.
Ester de
Freitas e Roberto Heloani definem assim o assédio moral no trabalho: “O
assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, freqüente e repetida,
que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar,
constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um
grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua
dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e
profissional”. Deste modo, o assédio moral possui um traço de
intencionalidade sistêmica na medida em que é freqüente e repetido e não
meramente casual. Na medida em que possui um caráter sistêmico, ele diz
respeito à própria lógica organizacional (e social) da exploração da
força de trabalho e do trabalho vivo. A degradação da personalidade
humana torna-se um meio para a satisfação de personas do
capital que visam com isso, obviamente, não apenas satisfazer
idiossincrasias de chefias (ou colegas de trabalho) perversas, mas
cumprir objetivos de gestão do negócio. O assédio moral torna-se
horizontal – entre colegas de trabalho – porque tornou-se efetivamente
assédio moral sistêmico, ideologia dominante do sociometabolismo do
capital.
Finalmente,
cabe tratar do nexo essencial entre assédio moral e capitalismo
necrófilo. O capitalismo global baseia-se numa dinâmica sociometabólica
que não contribui para o desenvolvimento. Pelo contrário, representa
aquilo que apresenta-se como o próprio resultado do assédio moral: a
diminuição, humilhação, vexame, constrangimento, desqualificação e
demolição psíquica do homem que trabalha. É que ocorre com o metabolismo
social do desemprego e precariedade do trabalho que tem se dissmeninado
nos últimos “trinta anos” perversos de capitalismo global. O conceito
candente de “assédio moral” sinaliza que vivemos hoje no tempo histórico
do perverso – perversidade que flerta com a morte. Por exemplo, fazendo
um paralelo com o filme Saló ou 120 dias de Sodoma, de Pier
Paolo Pasolini, diríamos que o vínculo orgânico entre assédio moral e
morte representa o último círculo que compõe a narrativa de Pasolini
baseada no livro de Sade – o Círculo de Sangue. A obra de Pasolini, tida
por muitos como uma das mais perturbadoras da história do cinema, é
dividida em 3 fases, chamadas de ‘círculos’, que são o Círculo das Manias, onde os fascistas satisfazem seus desejos sexuais; o Círculo das Fezes, repleto de escatologia, onde os jovens são obrigados a ingerir fezes; e o Círculo de Sangue,
onde os prisioneiros desobedientes são punidos através de mutilações,
torturas físicas e assassinato. Extrapolando a narrativa pasoliniana
para a lógica gerencialista diríamos que nas organizações sistêmicas
temos as Manias do Desempenho (ou Produtivismo), as Fezes da Resiliência
e o Sangue da degradação psíquica da pessoa que trabalha.
O psicologo
marxista Erich Fromm salientou a dimensão necrófila do capitalismo
tardio. O gozo da morte reverbera, por exemplo, na perversidade
explicita ou implícita das pequenas (e grandes) loucuras da
cotidianidade alienada. Na medida em que a produção do capital torna-se
totalidade social, o assédio moral torna-se assédio moral sistêmico.
É traço endêmico do metabolismo social. Na era da barbárie social, o
assédio moral é o veículo dos consentimentos espúrios que degradam a
personalidade humana como condição sine qua non da reprodução
social da ordem burguesa hipertardia. Portanto, da respiração ofegante
do co-piloto que, trancado na cabine, provocou a morte de 150
passageiros e tripulantes do avião da Germanwings (em março de
2015), às narrativas ficcionais de sexo e sado-masoquismo que seduzem
hoje multidões de jovens e adultos (do romance best-seller Cinquenta tons de cinza ao filme maldito Ninfomaníaca, de Lars von Trier), vivemos na era do perverso ou era do assédio moral como metabolismo social.
Na era do
perverso, onde o “apagão ético” se contrasta com a proliferação do
assédio moral, vivemos formas supremas de irracionalidades sociais. Em
pleno século XXI, personalidades humanas complexas são dilaceradas pelas
candentes contradições sociais ou “nós contraditórios” do capital. O
desvelamento do sentido ontológico do “assédio moral” é apenas a “ponta
do iceberg” da barbárie social que caracteriza a ordem sociometabólica
do capital global.
***
Giovanni Alves é
doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e
professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com
bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do
Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa
reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas
Nenhum comentário:
Postar um comentário