Por Graça Druck.[1]
O debate
acerca da terceirização no Brasil está na ordem do dia há pelo menos 20
anos. Fruto de pesquisas acadêmicas e de informações sistematizadas por
instituições públicas e sindicatos, o binômio terceirização-precarização
do trabalho é evidenciado por todos. Trata-se de uma verdadeira
epidemia. Em investigações desenvolvidas há mais de duas décadas[2],
sobre a indústria petroquímica, bancários, petroleiros e, mais
recentemente, instituições públicas, a exemplo de universidades
federais, os resultados indicam, invariavelmente, que a terceirização
tem levado a um elevado grau de precarização das condições de trabalho,
dos níveis de remuneração, da saúde, dos direitos sociais e trabalhistas
e das lutas sindicais.
No caso do
setor público, aqui compreendido como a administração pública e empresas
estatais, a expansão da terceirização tem um marco importante: os
programas de privatização de empresas e de serviços públicos
implementados nos anos 1990 e a reforma do Estado iniciada em 1995,
através do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado, de
responsabilidade do Ministério da Reforma do Estado (Mare).
Uma reforma
condizente com as políticas neoliberais, que definiu três áreas de
atuação: i) as atividades exclusivas do Estado, constituídas pelo núcleo
estratégico, ii) os serviços científicos do Estado (escolas,
universidades, centros de pesquisa científica e tecnológica, creches,
ambulatórios, hospitais, entidades de assistência aos carentes, museus,
orquestras sinfônicas, dentre outras) que deveriam ser publicizadas e a
iii) a produção de bens e serviços para o mercado (Retirada do Estado
através dos programas de privatização e desestatização). Fora das
atividades principais, estão as “atividades ou serviços auxiliares”
(limpeza, vigilância, transporte, serviços técnicos de informática e
processamento de dados, entre outras), que deveriam ser terceirizados,
submetidos à licitação pública. (DIEESE, 2008).
Na linha da
reforma do Estado, a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), cujo
objetivo é reduzir as despesas com o funcionalismo público, inibiu a
realização de concursos públicos e incentivou a terceirização, pois as
despesas com a subcontratação de empresas, a contratação temporária,
emergencial e de comissionados não são computadas como pessoal.
Com isso,
criou-se e ampliou-se a diversidade de modalidades de terceirização na
esfera pública, a exemplo de: concessão, permissão, parcerias,
cooperativas, ONGs, Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público. Um quadro em que parte dos serviços
públicos é realizada não mais pelo “servidor público”, profissional
concursado, mas pelos mais diferentes tipos de trabalhadores, em geral
empregados de forma precária, com contratos por tempo determinado, por
projetos, sem os mesmos direitos que o funcionário público e com
salários mais baixos.
Os serviços
de saúde que, embora tenham adotado o Sistema Único de Saúde (SUS),
considerado um dos mais avançados do mundo, incorporou a flexibilização
de sua gestão, através da adoção da terceirização.
Pesquisas
setoriais e regionais têm demonstrado que em hospitais públicos e
privados cresce fortemente a terceirização dos diferentes setores e
laboratórios, constituindo verdadeiros “loteamentos” no interior destas
instituições. Além disso, revela-se também que a terceirização de
serviços de médicos e outras profissões em áreas essenciais do
atendimento hospitalar e da saúde pública, vem ocorrendo através de
cooperativas, empresas médicas (PJs) e empresas de intermediação de
contratos (GIRARDI; CARVALHO; GIRARDI JR., 2000; SOUZA, 2010).
No caso de
empresas estatais, o destaque maior é a Petrobrás, que tem sido autuada e
condenada por irregularidades na terceirização[3]. Em 2012, a estatal contava com 85.065 empregados e 360.372 terceirizados, uma relação de 4 terceirizados para 1 concursado. [4]
É também na Petrobrás que os acidentes de trabalho confirmam a maior
vulnerabilidade dos terceirizados, segundo dados da Federação Única dos
Petroleiros, de 1995 a 2010, houve 283 mortes por acidentes de trabalho
na empresa, das quais 228 eram terceirizados. O crescimento da
terceirização na Eletrobrás também é alarmante, em 2011 haviam 8248
terceirizados e em 2012 subiram para 12815, 55% em um ano, enquanto o
número de empregados cresceu apenas 13%.[5]
As
Universidades públicas são exemplo da perversidade das formas legais de
subcontratação. No caso dos serviços de vigilância e limpeza, têm sido
recorrentes as greves de trabalhadores terceirizados, contra o atraso de
salários, não pagamento de 13º e de férias. Momento em que esses
trabalhadores formais, sob a proteção da CLT, mas com seus direitos
sistematicamente desrespeitados, se tornam visíveis para a sociedade e
para as próprias universidades. Isto porque a falta de limpeza e ou de
vigilância inviabiliza a prestação de qualquer serviço público, seja na
educação ou na saúde, levando à paralização dessas instituições,
demonstrando o quanto são essenciais e que, portanto, deveriam fazer
parte do corpo do funcionalismo, como era antigamente. As empresas
contratadas pelo menor preço, conforme a lei de licitações, em geral não
possuem situação financeira estável, e para garantir o seu preço,
economizam no pagamento dos direitos e dos salários dos trabalhadores,
aqueles que sofrem as penalidades que as universidades exercem,
suspendendo os contratos e pagamentos, ao descobrirem a inadimplência
das terceiras. É o círculo vicioso da precarização do trabalho dos
terceirizados no serviço público em instituições onde estão os mais
importantes intelectuais do país, onde se produz ciência e pesquisa e
onde se preparam novas gerações de profissionais de todas as áreas.[6]
Em síntese,
considero que o serviço público no país está gravemente prejudicado pela
falta de investimento e valorização do funcionalismo, expressa nas
reformulações dos planos de carreira e na previdência social, nos
salários defasados (especialmente nas áreas de educação e saúde), ao
lado da prática da terceirização, que se constitui numa das formas mais
precárias de trabalho e de privatização do estado, fragilizando a
própria função e identidade do “servidor público”, o que atinge
diretamente o conjunto da sociedade brasileira. No âmbito das empresas
estatais, a gravidade reside no desrespeito ao seu estatuto, no uso
ilimitado da terceirização com custos sociais altos, revelados pelo
número de acidentes de trabalho, dadas as condições precárias de
trabalho, de treinamento e de qualificação, criando trabalhadores de
primeira e segunda categorias em atividades essenciais de empresas de
porte multinacional.
Para agravar
esse quadro, está em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei
4330, de autoria do deputado Sandro Mabel, empresário do setor de
alimentação, que propõe a liberação total da terceirização para todas as
atividades (fim e meio), em redes de subcontratação, sem
responsabilidade solidária das empresas contratantes, dentre outras
proposições.
A
responsabilidade solidária – quando a contratante é corresponsável junto
com a empresa contratada pelas dívidas trabalhistas e pode ser acionada
conjuntamente ou individualmente pelos empregados, pois é a empregadora
maior –, defendida pela maioria dos sindicatos e agentes do direito do
trabalho, é negada pelo PL 4330 para as empresas contratantes, que a
defende para o caso das terceiras que subcontratarem outras empresas. Ou
seja, é válida para as empresas menores e subordinadas às contratantes.
Assim como propõe a responsabilidade solidária para o setor público.
Ou seja,
“dois pesos e duas medidas”. O que justifica essa diferenciação? Por que
não propor a responsabilidade solidária para instituições públicas e
privadas? Aqui se evidencia a quais interesses correspondem o PL 4330. É
a defesa da mais ampla “livre iniciativa” das (grandes) empresas
privadas, que não querem limites para o uso predatório da força de
trabalho, visando reduzir a remuneração e os direitos dos trabalhadores.
Os proponentes também deixam muito clara a natureza fortemente injusta
do PL, à medida que os agentes ou envolvidos – os trabalhadores, as
empresas menores, as grandes empresas e o serviço público – são tradados
de forma absolutamente desigual e a favor das maiores empresas.
Em resposta a
essa iniciativa patronal, representada pelo Deputado Sandro Mabel,
autor do PL 4330 e pelo Deputado Arthur Maia, relator favorável ao
projeto, vem ocorrendo uma ampla mobilização nacional contrária ao
Projeto. Através de cartas e manifestos, as principais instituições do
direito do trabalho no Brasil condenaram a proposta, considerando-a uma
das principais formas de precarização e de desrespeito aos direitos
trabalhistas. Manifestaram-se pela rejeição do PL 4330, a ANAMATRA
(Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho), ANPT (Associação
Nacional dos Procuradores do Trabalho), o Conselho Superior do
Ministério Público do Trabalho, o Conselho Federal da OAB, o Sindicato
Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho – SINAIT, o Fórum Permanente
em Defesa dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, que congrega
pesquisadores, estudiosos do tema, entidades representativas que atuam
no mundo do trabalho, a ALAL (Asociacion Latinoamericana del abogados
laboralistas), dentre outros. Além das mobilizações (dia nacional de
paralisação) chamadas pela maioria das centrais sindicais brasileiras,
do acampamento em frente ao Congresso Nacional e a tentativa de
participar da reunião da Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania da Câmara de Deputados, organizados pela Central única dos
Trabalhadores, cujos dirigentes foram violentamente reprimidos pela
polícia.
Ainda no
campo da resistência, vale destacar a carta assinada por 19 ministros do
total de 26 que compõem o Tribunal Superior do Trabalho – TST,
instituição máxima do poder da Justiça do Trabalho, que se posiciona
contrariamente ao PL 4330, apresentando as seguintes ponderações, dentre
outras:
(…) II. A
diretriz acolhida pelo PL nº 4.330-A/2004, ao permitir a generalização
da terceirização para toda a economia e a sociedade, certamente
provocará gravíssima lesão social de direitos sociais, trabalhistas e
previdenciários no País, com a potencialidade de provocar a migração
massiva de milhões de trabalhadores hoje enquadrados como efetivos das
empresas e instituições tomadoras de serviços em direção a um novo
enquadramento, como trabalhadores terceirizados, deflagrando
impressionante redução de valores, direitos e garantias trabalhistas e
sociais.
Neste sentido, o Projeto de Lei esvazia o conceito constitucional e legal de categoria, permitindo transformar a grande maioria de trabalhadores simplesmente em ´prestadores de serviços´ e não mais ´bancários´, ´metalúrgicos´, ´comerciários´, etc.
Como se
sabe que os direitos e garantias dos trabalhadores terceirizados são
manifestamente inferiores aos dos empregados efetivos, principalmente
pelos níveis de remuneração e contratação significativamente mais
modestos, o resultado será o profundo e rápido rebaixamento do valor
social do trabalho na vida econômica e social brasileira, envolvendo
potencialmente milhões de pessoas.
(…)
- O rebaixamento dramático da remuneração contratual de milhões de concidadãos, além de comprometer o bem estar individual e social de seres humanos e famílias brasileiras, afetará fortemente, de maneira negativa, o mercado interno de trabalho e de consumo, comprometendo um dos principais elementos de destaque no desenvolvimento do País. Com o decréscimo significativo da renda do trabalho ficará comprometida a pujança do mercado interno no Brasil.
- A generalização e o aprofundamento da terceirização trabalhista, estimulados pelo Projeto de Lei, provocarão também sobrecarga adicional e significativa ao Sistema Único de Saúde (SUS), já fortemente sobrecarregado. É que os trabalhadores terceirizados são vítimas de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais/profissionais em proporção muito superior aos empregados efetivos das empresas tomadoras de serviços. Com a explosão da terceirização – caso aprovado o PL nº 4.330-A/2004 -, automaticamente irão se multiplicar as demandas perante o SUS e o INSS.
[1] Artigo publicado no Jornal dos Economistas, Corecon e Sindicon , RJ, nº 291, out 2013.
[2]
Pelo Grupo de pesquisa Trabalho, Precarização e Resistências, sediado
no Centro de Recursos Humanos da UFBa e no Programa de Pós-graduação em
C. Sociais da Universidade Federal da Bahia, apoiado pelo CNPq e pela
Capes.[3] Recentemente, O MPT (região Campinas) multou a Petrobras em 3 milhões de reais, porque terceirizados em cinco empresas contratadas, exerciam funções idênticas às dos empregados da Petrobrás, sem terem sido admitidos por concurso público, uma exigência constitucional para empresa de capital misto, configurando intermediação de mão de obra. Em outubro de 2012, o TCU (Tribunal de Contas da União) pediu que a empresa entregasse um plano detalhado de substituição de terceirizados irregulares.
[4] Segundo Relatório de Sustentabilidade, Petrobras, 2012, p. 160.
[5] Segundo Relatório Anual e de Sustentabilidade, Eletrobrás, 2012, p.184.
[6] Ver dissertação de mestrado que pesquisou os trabalhadores de limpeza da UFBa, de Elaine Souza. Sobre a greve de trabalhadores de limpeza da USP, ver Carta de Jorge Souto Maior, 2012.
***

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Graça Druck é
professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e C.
Humanas da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora do CRH/UFBa e do
CNPq, estudiosa na área de sociologia do trabalho, autora do livro Terceirização: desfordizando a fábrica (Boitempo e Edufba) e co-organizadora do livro A Perda da Razão Social do Trabalho: terceirização e precarização (Boitempo), além de colaborar com a coletânea Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II, organizada por Ricardo Antunes. Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o Dossiê Terceirização
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