Ecos da ditadura
Oswaldo Lourenço relembra a trajetória do movimento sindical paulista durante a ditadura
No prefácio do primeiro volume de meu livro, Companheiros de Viagem,
a grande amiga companheira de lutas contra a ditadura Rose Nogueira
escreve o seguinte trecho: “Podemos acompanhar a história e a evolução
de movimento sindical feito de muitas lutas, tantas prisões e tantas
vidas sacrificadas. Vemos claramente que os movimentos operários do ABC
no final dos anos 70 devem muito a quem veio antes.”
No grande ato realizado no teatro Cacilda Becker de São Bernardo do
Campo (SP), em 1º de fevereiro de 2014, durante o Encontro das Centrais
Sindicais ligadas à Comissão Nacional da Verdade, a companheira Rosa
Cardoso teve as seguintes palavras: “A gente só expande a democracia,
minimiza a violência, e faz com que ela não se repita, se tivermos
consciência de que aconteceu no passado”.
Em 22 de outubro do ano passado, convidado pela Câmara Municipal de
Santos para participar da Comissão da Verdade, integrada por vereadores
daquela cidade, tive a grande surpresa e honra de receber do companheiro
Mauricio Valente, do Comitê Popular de Santos, um documento elaborado
pela Delegacia de Ordem Política e Social, com muitas anotações sobre
minhas atividades e reuniões políticas sindicais de 1957 a 1970 (eu
sabia que era seguido por policiais, mas não tanto).
Obviamente, é muito difícil resumir mais de 70 anos de lutas, pois
participei de minha primeira greve em 1943, quando tinha 18 anos e fora
recentemente contratado para trabalhar nas grandes oficinas da Companhia
das Docas do Porto, como ajudante de caldeireiro. De lá para cá foram
tantas as greves que seria fastidioso enumerar.
Após dois anos nas oficinas, juntamente com mais três companheiros,
prestei concurso e passei a trabalhar como funcionário da administração
da Cia. Docas e me filiei ao Sindicato dos Empregados na Administração
dos Serviços Portuários de Santos, de cuja diretoria viria a fazer parte
a partir de 1945. No inicio da década de 1950, foi me passada, por
parte dos operários ativistas, incumbência de montar as chapas
concorrentes à direção da entidade com elementos fiéis às nossas lutas.
Os anos seguintes, até 1964, foram marcados por intensa atividade em
toda a Baixada Santista. Fundávamos o Fórum Sindical de Debates e
elegemos uma diretoria presidida pelo metalúrgico Vitelbino Ferreira de
Souza, ligado ao PCB. Com o aumento dos portuários e o desenvolvimento
industrial de Cubatão passamos a ter 52 sindicatos na região, todos
ligados ao Fórum Sindical de Debates.
Muitas das greves que se sucediam iam além de um objetivo meramente
economicista. Cito como exemplo a recusa dos estivadores e portuários em
descarregar um navio espanhol, em solidariedade aos trabalhadores da
Espanha que lutavam contra a ditadura fascista de Franco. Em outra
ocasião, ameaçamos com uma greve geral na Baixada, caso a empresa do
Moinho Santista levasse adiante o seu plano de mandar para uma unidade
no Paraná três operários, contra a vontade deles, pois seriam separados
de suas esposas e filhos. A ameaça de greve geral assustou a empresa,
que resolveu desistir da medida.
O povo da Baixada Santista sempre aprovou e respeitou o Fórum
Sindical de Debates e participava das grandes concentrações da Praça
Mauá em frente à Prefeitura e à Câmara Municipal. Havia também as
grandes passeatas por melhores condições de vida, pela defesa de nossas
riquezas minerais, pela empresa estatal de petróleo etc...
A mim cabiam as múltiplas tarefas de dirigente do nosso sindicato, do
Fórum Sindical e responsável pelo movimento operário camponês do
PCB. Na chamada "Cidade Vermelha" de Santos, e no País, o movimento
operário adquiriu vigor com a criação do Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT) e o Pacto de Unidade e Ação (PUA). Em paralelo, cresciam também as atividades dos órgãos de repressão como o DEOPS e, especialmente em Santos, a famigerada Polícia Marítima.
Era um período de intensa repressão contra o movimento sindical.
Na renúncia de Jânio Quadros (1961), ao pressentir que os golpistas preparavam seu
bote, organizamos vigorosas manifestações. Fomos presos e levados para o
Forte do Itaipu, onde alguns militares faziam gestos simulando
fuzilamento. Naquela ocasião, eu já estava com duas prisões preventivas
decretadas e dirigia o movimento na clandestinidade.
Quando ocorreu o golpe de 1º de abril de 1964, as forças da
repressão invadiram o sindicato espalhando os documentos e colocando
armas para nos acusarem de sua posse. Os diretores do sindicato nos
reunimos numa casa para prepararmos um plano de fuga. Ficamos sabendo
que a ordem não era prender e sim matar, uns cinco líderes do movimento
sindical santista, sendo eu um deles. Mesmo assim, ousei ir à
maternidade para ver Cecilia, minha filha recém-nascida. Tive a
solidariedade de uma enfermeira do Hospital de Santa Casa de Santos, que
me chamou e me levou para os fundos do hospital dizendo que a polícia
já estava na frente do hospital me esperando. Teve início, então, a
minha rocambolesca fuga, que conto em pormenores no livro Companheiros de Viagem 1 .
Refugiei-me numa pequena chácara no ABC. Após 30 dias,
trouxeram minha esposa com minha filha Cecília, que havia visto apenas
quando nasceu.
Em 1966, precisei ir a Santos com o advogado para prestar um
depoimento. Segundo ele não haveria problema, mas houve. Foi ali a minha
primeira prisão. Fui levado algemado, com dois policias armados de
metralhadoras um de cada lado para me humilhar. Como eu era conhecido,
entretanto, as pessoas passavam, olhavam para mim para me cumprimentar.
Eu, então, levantava as mãos algemadas saudando e gritando “fé
companheiros”. Consegui fugir daquele lugar, mas passei outras vezes
pela prisão e fui torturado.
Deste período de 70 anos de lutas são muitas as lembranças. Em
especial, a convivência com “companheiros de viagem” como Vitelbino
Ferreira, João Alberto Costa Pinto, Joaquinzão, Ubiraci Dantas e
Aparecida Malavaze, a maior sindicalista mulher que conheci. À memória
de dois deles, deixo uma homenagem especial. Joaquinzão lamentavelmente
não teve seu trabalho reconhecido por parte da esquerda, apesar de este
incluir o primeiro ato em favor dos anistiados. Morreu pobre, sem
dinheiro para tratar de sua saúde. Costa Pinto, por sua vez, foi
torturado pela polícia, uma crueldade que causou danos a suas faculdades
mentais. São histórias que me orgulho de ter relatado em Companheiros de Viagem.
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