Nascido há 130 anos, escritor checo abordou impotência do
indivíduo diante de poderes anônimos. Sua “Colônia Penal” parece
antecipar Guantánamo
Na Agência Deutsche Welle
Gregor Samsa está deitado na cama, totalmente indefeso. Suas costas
são duras como uma couraça. Erguendo a cabeça, ele vê um ventre marrom e
suas perninhas finas e descontroladas, agitando-se diante de seus
olhos. É este o corpo de um ser humano? Não, é um gigantesco inseto
daninho, uma espécie de besouro repulsivo, que na noite anterior ainda
era um homem.
O conto A metamorfose, de 1912, é o texto narrativo mais
famoso de Franz Kafka. Uma história macabra, angustiante, sobre a
vulnerabilidade do ser humano e sua precária condição no mundo, que da
noite para o dia pode transformá-lo em pária.
Manuscrito original de “O processo” está preservado em Marbach
Mas por que o autor “empacotou” sua metáfora numa forma tão
enigmática? Ele não podia tê-la apresentado de um modo mais “realista”,
“verossímil”? Isso é o que pergunta em carta a Kafka um certo Dr.
Siegfried Wolff, que lera o conto logo após seu lançamento.
“Prezado Senhor: o senhor me fez muito infeliz. Comprei a sua Metamorfose e
a presenteei à minha prima. Mas ela não sabe como explicar a história.
Minha prima a deu à mãe dela, que também não encontra explicação. Só o
senhor pode me ajudar. O senhor tem que me ajudar, pois foi quem me
meteu nisso. Portanto, me diga o que a minha prima deve pensar da Metamorfose.”
O ser humano como engrenagem
Por que Kafka escrevia de forma assim tão soturna, submetendo suas
personagens a situações que não ocorrem na realidade, pelo menos no
sentido literal? Pois essa foi uma opção que também lhe dificultou a
trajetória, impedindo que, ainda em vida, ele se tornasse um escritor
aclamado pelo público.
O germanista Thomas Anz, docente da Universidade de Marburg e autor
de um estudo sobre a vida e obra de Franz Kafka (1883-1924), o considera
um fantástico poeta do absurdo. Sua literatura introvertida, cifrada,
é, possivelmente, o equivalente formal a todas as repartições jurídicas e
homens honoráveis com que suas personagens se confrontam.
Isso, prossegue Anz, aplica-se em especial às instâncias estatais, como as descritas no romance O processo, ou, em versão ainda mais implacável, no conto A colônia penal – ambos textos que refletem a impotência do indivíduo diante de poderes anônimos.
Um tribunal civil no primeiro caso, uma corte militar, no segundo,
levantam imputações totalmente arbitrárias, cuja verdadeira motivação o
acusado não consegue sequer vislumbrar. Por que os réus se tornaram
culpados? Eles não sabem. Tal situação de indefensibilidade, uma
vivência central nas sociedades de massa modernas, é o que se denomina
“kafkiana”.
Essa vivência, Charles Chaplin traduziu numa imagem eloquente em seu filme Tempos modernos,
quando, inteiramente indefeso, o protagonista, um operário de fábrica,
se vê entalado entre as gigantescas engrenagens de uma máquina em
funcionamento. Um símbolo visual com que Kafka certamente teria se
identificado.
Profeta dos terrores da vida moderna
Os textos kafkianos expressam o nervosismo de sua época diante do
fenômeno da modernização, então em curso, define Michael Braun, diretor
do departamento de literatura da Fundação Konrad Adenauer.
O crescimento das cidades, novos meios de transporte como o trem e,
acima de tudo, o automóvel, novas técnicas de produção e um Estado que
se alastrava, dominante – tudo isso era novo e preocupante. E essa
intranquilidade perdura até nossos dias.
“Por isso costuma-se evocar Kafka como profeta, como alguém que, por
volta de 1900, já antecipava aquilo que se tornaria realidade em meados
do século passado e mais além, ou seja: o ser humano inteiramente
controlado e também torturado”, explica Braun. Assim, por exemplo, é
válido traçar uma ligação direta entre a colônia penal de Kafka e o
campo de prisioneiros de Guantánamo, hoje.
Patchwork de identidades
A sensação de impotência descrita pelo autor judeu de língua alemã,
natural de Praga, persiste até hoje, pelo menos em parte.
Paradoxalmente, as sociedades cujos cidadãos gozam de grandes liberdades
também trazem em si um certo temor. Uma causa possível para isso é a
perda das instâncias tradicionais de autoridade: esse fenômeno, que
ocupou Kafka sem cessar, inquieta as pessoas até hoje, afirma Anz.
“As autoridades são percebidas como algo ameaçador, mas em parte são
também alvo de zombaria. Tudo isso produz uma certa desorientação. Essas
são vivências da era moderna que subsistem até hoje, e que um autor
como Kafka representou de forma brilhante e exemplar.”
Quanto à ambivalência que permeia os textos de Franz Kafka, esta
também se origina na identidade multifacetada do autor – a qual, por sua
vez, é mais um fenômeno típico da modernidade, ressalta Braun.
“Kafka era judeu, era advogado, era escritor, nasceu em Praga, era
tcheco e alemão. E, em meio a essa convivência e confusão de identidades
distintas, buscar um Kafka que fale palavras claras será sempre um
problema.” Entretanto, ressalva o germanista da Fundação Adenauer, “é
justamente esse problema que constitui a atratividade dos textos de
Kafka. Pois, se esse problema não existisse, qual seria a graça de se
ler Kafka?”.
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