Duas estratégias: unir a esquerda para avançar as mobilizações ou para proteger o governo Dilma?
por Valério Arcary*
Todos juntos nessa luta pela unidade popular,
Mas, se estamos todos juntos,
contra quem vamos lutar?
Versos cantados por delegados da esquerda socialista
no Congresso da UNE, em resposta à moção que defendia a estratégia de
unidade de toda a oposição à ditadura militar, sob a liderança da
burguesia liberal que se expressava através do MDB de Tancredo e
Montoro, contra a unidade operário-estudantil.
O ataque dos fascistas contra a esquerda produziu uma reação
extraordinária durante a última semana. A defesa do direito da esquerda
de ir às ruas levantando suas bandeiras vermelhas uniu muitos milhares
de jovens nos últimos dias, por todo o país, em uma mobilização
unitária, entusiasmada e lúcida.
A unidade da esquerda nas ruas foi emocionante
As fotos da assembléia-monstro no Largo São Francisco, no Rio de
Janeiro, para preparar o dia 27 e a ida ao Maracanã no dia da final da
Copa das Confederações, emocionaram a esquerda, profundamente, em todo o
Brasil. Processos semelhantes se repetiram, em formas variadas, mas com
o mesmo conteúdo, em Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Belém, e
Recife, entre muitas outras cidades menores. Surgiu do enfrentamento do
dia 20 de junho com os fascistas um poderoso sentimento fraterno de que
precisamos nos unir para vencer. Isso foi magnífico.
Estamos diante da urgência da política. Os dias agora valem por
meses, as semanas por anos. Tudo se acelerou. O debate aberto na
esquerda pelas mobilizações das últimas três semanas coloca na ordem do
dia um dilema: a esquerda precisa se unir para poder ajudar o movimento
da juventude a avançar na direção de novas vitórias, sob pena de perder
uma oportunidade histórica de transformação do Brasil. Uma janela de
oportunidade que não se abre com facilidade. A divisão da esquerda
repercutirá de forma dramática sobre as possibilidades da luta em curso,
porque está aberta uma disputa sobre o destino do combate de milhões.
Esses milhões estão em luta porque têm pressa.
Um debate de estratégia é incontornável
Não obstante, isso não deve nos inibir de dizer que, infelizmente,
existem dois grandes campos políticos na esquerda, hoje no Brasil, que
remetem a um dilema de estratégia, e que vai se expressar em polêmicas
táticas de todo o tipo. Estes campos têm diferenças irreconciliáveis.
Sendo assim, é melhor debater as estratégias. Porque é mais
educativo. As questões mais de fundo, que remetem ao tema da atitude
diante do poder, são inescapáveis. As diferenças não são artificiais,
não são produto de exageros sectários. Não são pequenas escaramuças,
miudices, picuinhas. Estes campos são maiores que os partidos de
esquerda. Porque são muitas dezenas de milhares de ativistas que se
interrogam sobre qual deve ser o caminho a seguir. A imensa maioria não
tem militância partidária. Compreende a gravidade da situação. Tem boas
razões para estar preocupada.
Dois campos em disputa
Em um campo estão aqueles que compreendem que a mobilização pelas
reivindicações deve avançar, tendo a prioridade de unificação com os
trabalhadores, ou seja, a preparação de um dia de greve geral para 11 de
julho. Este campo afirma que, para lutar contra os empresários do
transporte urbano, os banqueiros, os fazendeiros do agrobusiness, a
FIESP, não é possível dar trégua a nenhum governo.
A nenhum significa isso mesmo, a nenhum, nem a Dilma. Depois de dez
anos, ficou claro que os governos liderados pelo PT, em aliança com
partidos burgueses, estão mais comprometidos com a preservação do
pagamento da dívida pública do que com os transportes públicos, a
educação e saúde públicas. Sem romper com o pagamento da dívida pública,
de onde viriam as verbas para os investimentos necessários à
implantação, por exemplo, do passe livre?
Os que nos colocamos nesta posição queremos ajudar a juventude nas
ruas a continuar ocupando as avenidas com as reivindicações que ela
mesma foi forjando pela sua experiência prática: conquista do passe
livre, desmilitarização das PMs, mais verbas para educação e saúde,
punição dos corruptos. E queremos agregar as reivindicações que
respondem às necessidades do proletariado: o aumento dos salários e a
redução da jornada de trabalho, por exemplo, ou a anulação da reforma da
previdência e a suspensão dos leilões de privatização do petróleo do
pré-sal, e tantas outras.
Os termos do dilema, que é sempre uma escolha difícil, são, portanto,
terríveis, mas claros: Dilma está disposta a romper com o PMDB? Porque
atrás do PMDB estão as empreiteiras com contratos milionários para a
construção das grandes obras e estádios, por exemplo. E a esquerda que
apoia o governo, ainda que criticamente, como as várias tendências
internas do PT, o PC do B, a Consulta Popular ou o MST, se Dilma não
atender às reivindicações, e não romper com o PMDB e os outros partidos
burgueses, estão dispostas a romper com Dilma?
Em outro campo estão aqueles que consideram que é preciso unir a
esquerda para defender o governo Dilma, porque o maior perigo seria a
desestabilização do governo liderado pelo PT, ou até do regime
democrático. Estão, podemos admitir, comprometidos em fazer exigências
ao governo Dilma. Exigências para que Dilma abra negociações com as
reivindicações das massas em luta. Exigências para que o PT no governo
não capitule diante do PMDB de Michel Temer e Sérgio Cabral. Ou
exigências para que o PT fora do governo não capitule aos ministros do
PT que aconselham moderação a Dilma. Em resumo, estão engajados em
pressionar o governo Dilma, mas não estão dispostos a romper com ele. E
reafirmam que não era possível antes de junho, e continua não sendo
possível, mesmo depois de milhões nas ruas, construir uma esquerda à
esquerda do governo Dilma.
É preciso lutar, é possível vencer
Qual estratégia é o melhor caminho para vitórias populares? Qual
estratégia irá prevalecer? Qual dos dois campos tem uma melhor
apreciação do que está em disputa, e a melhor orientação para
transformar o Brasil? Seria estupendo, realmente, fantástico, se as
mobilizações de jovens e trabalhadores fossem o bastante para exercer
uma pressão de classe suficiente para impor uma frente única de toda a
esquerda. Essa é a vontade dos ativistas, é a vontade de todos os que
sabemos contra quem lutamos. Porque para vencer o mais elementar é
preciso saber contra quem lutamos. Saber quem são os amigos e quem são
os inimigos.
Infelizmente, nunca é assim. A pressão das lutas não é o bastante.
Outras pressões políticas que, em uma interpretação de classe, respondem
a pressões das classes inimigas dos trabalhadores se abatem, também,
sobre a esquerda. Diante de grandes acontecimentos, ensina a experiência
histórica, algumas correntes de esquerda, que mantinham posições muito
distantes umas das outras, se aproximam. E outras, que estavam próximas,
se afastam. Em outra etapa da vida política brasileira se apresentou,
dramaticamente, o mesmo dilema para a esquerda. Com quem nos unirmos,
para lutar contra quem? Ou, enunciando de outra maneira, independência
ou colaboração de classes?
A polêmica do final dos anos setenta e início dos oitenta
Em 1978/79, quando uma nova situação se abriu no Brasil, colocou-se
um problema de estratégia política chave. Qual deveria ser a orientação
para acelerar a derrota da ditadura militar? Estava ficando cada dia
mais claro, depois das greves metalúrgicas do ABC, das greves de
professores, de bancários e outros setores da classe trabalhadora, que
era possível construir nas ruas uma mobilização de massas para derrotar a
ditadura.
A classe dominante estava, crescentemente, dividida, entre uma
maioria que aceitava a abertura lenta e gradual, ou seja, uma transição
para um regime democrático-eleitoral negociada com os militares, e
aqueles que resistiam, porque temiam, em função do medo das classes
populares, a ampliação das liberdades democráticas. As classes médias
tinham rompido, majoritariamente, com o regime. A classe trabalhadora
começava a se mexer e a ganhar confiança em sua capacidade de luta.
A esquerda que vinha se fortalecendo nas lutas estudantis e na
reorganização do movimento dos trabalhadores se dividiu em dois campos.
De um lado, principalmente, o PCB, o PC do B e o MR-8 defendendo a
unidade das oposições. O que significava que o monopólio da liderança
política na luta contra a ditadura ficava nas mãos do PMDB.
Ninguém deveria disputar com Ulysses e Tancredo a condição de porta
voz das oposições. Acontece que a liderança do PMDB temia mobilizar as
massas contra a ditadura e aceitava o calendário eleitoral imposto por
Geisel e Figueiredo. O PMDB não estava disposto a mobilizações de
massas, porque sabia que o perigo era a entrada em cena dos
trabalhadores, com sua força social de choque, seus métodos e suas
greves. E o PMDB era um partido com apoio, essencial e primeiramente,
empresarial.
No outro campo, estava a esquerda que se uniu em torno do projeto que
nasceu das greves operárias e das manifestações estudantis, levando à
fundação do PT em 1980, e da CUT, em 1983. Este campo se posicionava
contra uma transição negociada e lutava pela derrubada da ditadura.
Lutava pela perspectiva de um deslocamento da ditadura pelas lutas, não
em conchavos no Congresso Nacional.
O PMDB era o partido da oposição institucional, o PT era o partido da
independência dos trabalhadores, que não aceitava que a maioria
proletária continuasse a ser massa de manobra entre diferentes alas da
classe dominante. Os moderados de esquerda argumentavam exatamente como
agora: não é possível ultrapassar Ulysses e o PMDB pela esquerda. A luta
provou que eles estavam errados. Foi porque o PT chamou às ruas e
começou a campanha das Diretas Já! no Pacaembu que o PMDB, ainda que
dividido, se mexeu. O drama atual é que a maioria daqueles que foram os
radicais em 1980/83 agora são os moderados. De incendiários, viraram
bombeiros.
O dilema de estratégia que se coloca agora, trinta e cinco anos
depois, no entanto, é o mesmo. O papel da esquerda deve ser o de ajudar a
juventude e os trabalhadores a construir um campo independente? Ou ela
deve se resignar a ser um vagãozinho atrelado ao trem que é dirigido por
uma ala da classe dominante contra outra ala? Só podemos escolher entre
o governo Dilma ou um governo da direita? Ou esta onda de lutas pode
ajudar a nova geração a retirar conclusões políticas e ir além? Não é
possível pensar em um poderoso campo de oposição de esquerda, que
permita ir além do reformismo quase sem reformas dos dez anos dos
governos Lula e Dilma? Qual o caminho para avançar na direção da
revolução brasileira?
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