MICHEL SILVA
Nas últimas semanas, viu-se em todo o país uma série de grandes
manifestações que, em um primeiro momento, diziam respeito a diferentes
questões relacionadas ao transporte público. O estopim disso tudo foi o
aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, passando de atos
de alguns poucos milhares de militantes para grandes jornadas que
reuniam centenas de milhares de pessoas e ganharam destaque inclusive na
imprensa internacional. Para os mais distraídos, o país estava
acordando. Contudo, havia um punhado de pessoas que, apesar de sua
pluralidade e de fragmentação, militaram ativamente em greves ou outras
mobilizações nos últimos anos e que sabiam que o país estava acordado
havia bastante tempo. Trata-se da esquerda.
Passadas algumas manifestações, uma parcela das pessoas que
participavam dos atos passou a hostilizar as organizações de esquerda,
pelo simples fato de levantarem suas bandeiras. O papel que
eventualmente essas organizações vinham tendo na articulação das
manifestações era esquecido, bem como todo o seu histórico de luta em
defesa da classe trabalhadora. Não havia importância no fato de que
partidos como PCB, PSTU e PSOL, ou organizações menores como a LER-QI,
lutaram lado a lado com os trabalhadores, por exemplo, nas greves do
serviço público nos últimos dois anos, enquanto a imprensa, a direita, a
classe média e os governos hostilizavam os grevistas. Prontamente a
imprensa detectou a informação acerca da rejeição dos partidos nas
manifestações e, no mesmo momento em que passou a defender os protestos
pacíficos, também passou a defender o antipartidarismo.
Hostilidade da mídia é algo que a esquerda aprendeu a suportar, no
Brasil de hoje e de ontem, ou em qualquer outra parte do mundo. O
problema que se agravou foi o fato de que a esquerda não apenas passou a
ser intimidada a baixar as bandeiras, como passou a sofrer ameaças e,
para piorar, passou a ser agredida nas manifestações. O delírio
autoritário direitista chegou a fazer com que fossem atacados até mesmo
os sindicatos. Deixou-se, assim, um primeiro nível de hostilidade, em
que somente a aparição mais explícita da esquerda era impedida, passando
para outro em que, por meio de palavras e atos, se pregava a eliminação
das esquerdas e até mesmo dos sindicatos. Não há outra palavra para
isso a não ser fascismo.
Com isso não se quer afirmar que o país vive a ameaça de um movimento
de massas fascista ou mesmo que o conjunto das pessoas que têm
participado das manifestações defenda essa ideologia. Elas acreditam não
defender ideologia nenhuma, embora expressem o que o senso comum
espontaneamente lhes apresenta. Contudo, há duas questões concretas.
Primeiro, que há atuação consciente de grupos de extrema direita nas
manifestações, criando tumultos e atacando as organizações de esquerda.
Segundo, as manifestações, em sua grande confusão, têm expressado pautas
conservadoras, baseadas no moralismo e no nacionalismo, sem que se
apresente uma estratégia para ação. Nesse meio, a crise com a política
institucional, provocada pela experiência das massas com governos como o
do PSDB e do PT, faz com que se crie de forma quase irracional uma
extrema rejeição a qualquer partido, mesmo os da extrema-esquerda, na
medida em que estes são confundidos com as legendas eleitorais vazias de
conteúdo que permeiam a política brasileira.
Há alguns anos o apartidarismo tomou conta de uma parcela dos
movimentos sociais, e não apenas no Brasil. Na Argentina o delírio
antipartidário chegou a tal ponto que deu origem a um partido que era
contra os partidos. O fato é que a crise do PT no governo e o declínio
de entidades associadas a essa legenda eleitoral, como a CUT e mesmo o
MST, potencializou certo ódio aos partidos. Soma-se a isso uma herança
da ditadura, que transformou em algo pejorativo o substantivo
“político”, quando se faz menção a alguém que possui cargo eleito por um
partido. Fora isso, depois da ditadura, nenhum partido de direita
conseguiu assumir um papel de liderança institucional conservadora, como
aconteceu, antes do golpe de 1964, por exemplo, com a UDN.
Certo é que Movimento Passe Livre (MPL) teve, desde a sua fundação,
setores que não simpatizavam com partidos, mas essa relação nunca passou
do salutar embate político de ideias e concepções. Mesmo a atuação de
militantes de partidos de esquerda dentro do MPL, se respeitados os
princípios do movimento, não era impedida. O fato é que o MPL construiu,
por meio das jornadas de São Paulo, apoiado por organizações de
esquerda e outras entidades, mobilizações gigantescas que chamaram a
atenção do país inteiro, que viu naquelas manifestações uma forma de
colocar para fora o seu descontentamento com tudo e com todos.
Contudo, o programa do MPL não foi além da revogação do aumento da
tarifa e da gratuidade do transporte e logo setores conservadores,
organizado ou não, fizeram da sua pauta a reivindicação máxima do país
inteiro: contra a corrupção. Essa palavra de ordem não tem qualquer
originalidade, afinal em qualquer parte do mundo uma direita que se
preza tem essa reivindicação como seu eixo principal. No caso do Brasil,
alguns dos maiores defensores do combate à corrupção foram os ditadores
que derrubaram João Goulart, em 1964. Eles mesmos acabaram com os
partidos e limitaram as ações dos sindicatos. E foram defensores
aguerridos do nacionalismo, fazendo isso se expressar justamente no
insistente canto do hino nacional. Coisa muito similar foi o fascismo, o
nazismo e, no Brasil, o integralismo.
Em algum momento das recentes manifestações os herdeiros desses
movimentos de extrema-direita surgiram, seja por meio de suas próprias
formas de organização, seja por meio de frações dos partidos de direita,
seja por meio da ação policial. Panfletos contra os partidos de
esquerda começaram a se proliferar, nos atos e fora deles. Nas redes
sociais começaram os ataques a militantes, movimentos sociais e
partidos, e chegou-se a convocar uma nova Marcha da Família, aos moldes
daquelas do contexto do golpe de 1964. E, para piorar, esses grupos
começaram a levar sua política (que em certo sentido é partidária) para
os atos e, para piorar ainda mais, levaram seus métodos para os atos.
Não precisa conhecer muito de história para saber que o principal método
do fascismo nunca foi o argumento, mas a força.
Desgraçadamente, muitas das últimas manifestações tiveram saldos
terríveis de agressões não apenas verbais, mas também físicas à
militância de esquerda. Entidades e centrais sindicais, partidos,
anarquistas, movimentos de diversidade sexual, entre outros setores,
sofreram violentas agressões, dentro dos atos, provocando inclusive a
divisão de algumas manifestações. Em capitais como Rio de Janeiro e São
Paulo a extrema-direita não poupou violência contra qualquer pessoa que
pudesse ser associada a qualquer coisa que lembrasse a esquerda, ou
mesmo que levantasse qualquer bandeira que não fosse a verde e amarela.
O fascismo no Brasil ganhou uma nova face, em certo sentido voltando a
suas origens, inserindo-se nos movimentos sociais. Seu discurso fácil
dialoga de perto com o senso comum, forjado no liberalismo e no
conservadorismo, que permeia a maior parte das manifestações pelo país.
Embora com algumas conquistas pontuais, as manifestações possivelmente
continuarão em algum sentido, tendo em foco agora não a luta pela da
redução da tarifa, mas sim do fim da corrupção e outras questões
genéricas.
Nessas últimas manifestações não se percebe um projeto para o país,
como em algum momento defendeu a esquerda nacionalista, ou uma
estratégia de transformação social, como defendem os socialistas. O que
há é uma indignação vazia, sem politização, que pretende unicamente
resolver os problemas mais superficiais que seus olhos conseguem
enxergar de perto. Será dentro desse contexto sem politização e
imediatista que a extrema-direita, que tem clara sua estratégia
política, tem a possibilidade de crescer e se tornar uma força política
muito mais ampla do que a meia dúzia de minúsculos grupos hoje
espalhados pelo país.
Para a esquerda, não há outro caminho que não a unidade na luta
contra o fascismo e, mais do que nunca, o reafirmar de suas bandeiras de
transformação social e de defesa dos interesses dos trabalhadores, nas
manifestações e nas lutas cotidianas. Nesse momento, é tarefa da
esquerda, articulada aos sindicatos e demais movimentos sociais,
construir ações unitárias que apontem para um programa que expresse os
interesses mais sentidos dos trabalhadores. E, mais do que isso, a
esquerda precisa ter a clareza da estratégia socialista, de superação da
sociabilidade capitalista, e de quais são os caminhos que os
revolucionários precisam trilhar para caminhar juntos.
* MICHEL SILVA é doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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