O
quadro do saneamento segue compondo uma das mais iníquas e excludentes
políticas sociais do país. Embora com perspectivas otimistas, como a
criação do Plano Nacional, os sinais emitidos pelo governo são ambíguos.
Entre Estado e mercado, o capitalismo brasileiro vem oscilando e a
população sentirá as consequências
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por Léo Heller |
O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab),1 aprovado
em 7 de junho de 2013 pelo Conselho Nacional das Cidades e em fase de
publicação pela Presidência da República, procura traçar um quadro
realista do acesso da população a soluções adequadas de saneamento,
incorporando às tradicionais estatísticas uma dimensão qualitativa do
atendimento. O plano revela que cerca de 40% da população brasileira −
77 milhões de habitantes − ainda carece de um abastecimento de água
seguro e contínuo e que 60% − 114 milhões de pessoas − não dispõe de
solução adequada para seu esgotamento sanitário, incluindo aquela
parcela da população que tem seus esgotos coletados e lançados sem
tratamento no ambiente. Aponta ainda que cerca de 40% da população não é
beneficiada com manejo sanitária e ambientalmente adequado de resíduos
sólidos. Descreve também as mazelas decorrentes dos descasos com as
ações de drenagem e manejo das águas pluviais, submetendo as cidades
brasileiras a periódicos e crescentes eventos dramáticos de inundações e
enchentes.
Trata-se, efetivamente, de um quadro inaceitável para um país que tem
pretendido se exibir na cena internacional com elevado nível de
desenvolvimento e vem se guiando pela meta da erradicação da pobreza.
Provavelmente, entre o conjunto das políticas sociais do Brasil, essa é a
mais excludente, iníqua e localizada na mais baixa escala de
desempenho. Não é supérfluo assinalar a não aleatoriedade da
distribuição desses déficits: são mais baixas as coberturas no Norte e
Nordeste do país que no Sul-Sudeste; são muito mais baixas nas zonas
rurais que nas urbanas; muito inferiores nas vilas e favelas. Ademais,
localizam-se claras correlações entre o déficit e indicadores
socioeconômicos, como renda, escolaridade e cor da pele. Estudo com base
no Censo 2000 revelou que uma família numerosa e de baixa renda
agregada, cujo chefe é do sexo masculino, jovem, cor da pele negra e de
baixa escolaridade, apresenta probabilidade cem vezes menor de estar
conectada a uma rede de esgotos se comparada com outra que apresente
características opostas.2
São abundantemente documentados e evidenciados os impactos da
precariedade das condições de saneamento, entre outras dimensões, sobre a
saúde infantil, a qualidade do ambiente físico e a insalubridade do
meio, restringindo a capacidade de emancipação humana.3
Caberia questionar os porquês desse quadro e as perspectivas para sua superação.
As explicações sobre a persistência do atraso não são lineares. De
forma geral, poderiam ser sintetizadas como a crônica ausência de uma
política pública estruturada, com o mínimo de continuidade e com claro
diagnóstico sobre as limitações das práticas historicamente
desenvolvidas, ao mesmo tempo fazendo face às demandas ditadas pela
dinâmica demográfica e assegurando a sustentação gerencial e operacional
dos investimentos já praticados. Na quadra mais recente da história, o
setor de saneamento, após a extinção do BNH em 1986, oscilou entre as
instabilidades institucionais anárquicas (governo Sarney), a
supervalorização dos agentes privados na determinação dos rumos
políticos do setor (governo Collor), um nacionalismo com poucos
resultados para a área (governo Itamar Franco), tentativas sistemáticas e
malsucedidas de ampliação da participação privada (os dois mandatos do
governo FHC) e ações para a ordenação institucional do setor (primeiro
mandato do governo Lula).4 É recente (de 2007) a promulgação
da Lei n. 11.445, que estabelece o marco regulatório nacional para o
setor, mas ainda não se faz sentir fortemente a reorganização que dele
se espera decorrer. Essa política instável, entre outros efeitos,
conduziu a um investimento público irregular, a um desprezo pelo
planejamento e a uma mal concertada – e frequentemente conflituosa –
articulação interfederativa, ingredientes extremamente nocivos para uma
área que claramente requer continuidade e suporte ao poder municipal.
Mas nem tudo é desesperança. O governo brasileiro vem conseguindo
ampliar os investimentos no setor, sobretudo a partir de 2007, embora
persistam dificuldades para converter os recursos alocados em recursos
aplicados, em razão de ineficiências no fluxo de investimentos e da
desestruturação que sofreram as diversas engrenagens do ciclo
planejamento-projeto-execução, necessário para a adequada aplicação dos
recursos. É também alvissareira a inédita aplicação regular de recursos
não onerosos para aqueles prestadores de serviços com capacidade
limitada de contratação de financiamentos com origem no FGTS e no FAT,
apesar de que, muitas vezes, sejam aportados por intermédio das
famigeradas emendas parlamentares, que subvertem qualquer tentativa de
planejamento.
Constitui ainda promissora perspectiva a aplicação do Plansab, que
potencialmente propiciará a recuperação do papel do Estado na efetiva
coordenação das ações setoriais, a consolidação do controle social, a
estabilidade dos investimentos públicos e a qualificação da gestão,
entre outras medidas necessárias para o avanço do atendimento
populacional com a qualidade requerida. Prevê investimentos com recursos
federais da ordem de R$ 300 bilhões nos próximos vinte anos –
correspondendo tão somente a cerca de 0,4% do PIB –, capazes de elevar
significativamente o acesso da população a condições adequadas de
abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos
e manejo de águas pluviais.
Sinais ambíguos para o encaminhamento do problema
Entretanto, os atuais sinais emitidos pelo governo brasileiro são
relativamente ambíguos. Ao lado da promessa da colocação em prática do
plano nacional, democraticamente construído e comprometido com a
universalização do acesso, intensificam-se discursos apostando nas
parcerias público-privadas (PPPs) como o caminho para essa
universalização,5 revivendo a máxima de Deng Xiaoping: “Não
importa a cor do gato, contanto que cace o rato”. Ambos os caminhos
poderão ser inconciliáveis.
Não se trata de uma apriorística aversão à participação privada no
saneamento, pois ela tem tido papel cativo nas atividades-meio do setor,
como na elaboração de projetos, na construção e no fornecimento de
materiais e equipamentos. Aliás, essas funções têm motivado muitas
políticas (neo)desenvolvimentistas, visando ao aquecimento da atividade
econômica, como se observa atualmente, em tempos de PAC. Porém, ao
apostar na prestação privada dos serviços, atividade-fim, para assegurar
sua universalização, o governo brasileiro ignora todo o acúmulo de
formulações teóricas e evidências empíricas sobre a privatização de um
setor caracterizado como monopólio natural, como o de saneamento.6 Diversas experiências, em várias partes do mundo, mostraram as limitações do modelo e seus fracassos,7
que desnudaram suas fragilidades, ao lado da crônica capacidade
deficiente de regulação por parte do Estado, em que o regulador, diante
do monopólio, depara com os limites para uma efetiva autonomia perante o
prestador e os governos com dificuldades de exercer seu poder
coercitivo e punitivo. Ou seja, os almejados princípios de independência
decisória, autonomia, tecnicidade e objetividade das decisões, que
deveriam caracterizar o exercício da regulação conforme a Lei n. 11.445,
muitas vezes não passam de figura de retórica.
Essa é a natureza das tradicionais formas de concessão à iniciativa
privada na prestação dos serviços, às quais se acrescenta a atual onda
das PPPs, que mantêm parte de suas características, mas com maior volume
e facilidade de transferência de recursos públicos aos entes privados.
Notam-se, no entanto, novos movimentos do setor privado em sua atuação
em saneamento. A abertura do capital acionário das companhias estaduais
de água e esgotos e a transferência de ativos de empresas públicas para o
setor privado são algumas das metamorfoses que o capital vem
encontrando para atuar no setor, muitas vezes concebendo modelos para
minimizar riscos e maximizar resultados financeiros. Particularmente, a
propriedade compartilhada das companhias estaduais, entre as quais se
incluem as de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, constitui processo que
não tem sido avaliado com a profundidade necessária pelo campo
tradicionalmente defensor do saneamento público. O eufemismo de
denominá-las de “públicas”, com todos os benefícios decorrentes, entre
outros na captação de recursos públicos e na obtenção de apoio federal,
obscurece a perversa equação financeira que operam ao transferir
recursos tarifários e orçamentários captados no interior do setor para
agentes econômicos externos, configurando uma verdadeira evasão de
divisas.
O atual momento da política de saneamento básico, além disso, tem
equivocadamente supervalorizado sua dimensão financeira. Já se investiu
um volume de recursos públicos nada desprezível desde a década de 1970, e
grande parte das regiões beneficiadas ainda carece de sustentabilidade
para a prestação adequada dos serviços. Parece imprescindível, no mesmo
compasso em que se destinam recursos para o setor, que este seja
guarnecido por um conjunto complementar de medidas, incluindo modelos
mais eficazes de regulação, arranjos tarifários que associem equilíbrio
financeiro e justiça distributiva, controle social sobre os prestadores,
modelos de organização adequados fortalecendo os consórcios públicos e
ações intersetoriais. O Plansab denomina esse conjunto de necessidades
de medidas estruturantes e destina um dos três programas propostos
exclusivamente a elas. Entretanto, não tem sido essa a visão do PAC,
voltado unicamente para a construção da infraestrutura física.
Como o capitalismo brasileiro se comportará?
Esse quadro coloca em questão a forma ambígua e até esquizofrênica como
o capitalismo brasileiro, monopolista e neodesenvolvimentista vem
abordando e pode abordar o futuro do saneamento no país. Observam-se
claramente duas polaridades: saneamento como parte do esforço para
ampliar o welfare stateou saneamento comodificado e
mercantilizado; necessidade de um país com uma “imagem civilizada” e
baixo nível de desigualdade e de pobreza perante o palco das nações ou
saneamento monopolizado por umas poucas empresas construtoras, com forte
lobby para determinar a política setorial; saneamento como forma de
fortalecimento do cidadão, ainda que visando ampliar o mercado
consumidor e expandir o capital, ou saneamento produtor de mais-valia,
na esteira da inércia neoliberal. Evidentemente, nem todas essas opções
são antagônicas, mas correspondem a polos diferentes e podem acarretar
diferentes direções e implicações.
É importante revisitar a trajetória dos países capitalistas centrais.
Neles, a universalização do acesso ao saneamento foi conquistada por
volta de uma década após a Segunda Guerra Mundial, com a preocupação de
proteger a saúde pública, recuperar o ambiente urbano e garantir a
segurança da população. Ocorreu predominantemente sob a égide da
prestação pública dos serviços, ainda que interesses privados tenham
tido forte influência em alguns países nesse período.8
Conforme observou Engels, cidades inglesas no século XIX viviam uma
crise aguda, baseada na “segunda contradição do capitalismo” – a
degradação ambiental provocada pela expansão do capital, necessariamente
restringindo as condições para sua produção e acumulação –, ficando
cada vez mais inabitáveis e limitando as condições para a reprodução do
próprio capital, com acesso a água limpa e melhoria da saúde pública.9
Foi precisamente esse quadro que mobilizou as forças políticas e
econômicas locais e nacionais para sanear as cidades na primeira metade
do século XX. É mais recente, sobretudo a partir da década de 1980, o
aprofundamento do processo de privatização, inserindo a água nos “fluxos
de capital” e no desenvolvimento dos modernos mercados capitalistas.10
Os impasses do capitalismo brasileiro, no tocante à política que
imprimirá para a área de saneamento, estão colocados. Caso esse setor
seja encarado primordialmente como parte da engrenagem necessária para a
expansão e a reprodução do capital privado, com base nos cânones do
neodesenvolvimentismo, pode-se assistir à não superação das iniquidades e
das ameaças ambientais atuais. Caso prevaleça a compreensão do
saneamento como elemento indispensável para a conquista dos direitos
sociais para todos, inclusive sob o preceito do direito humano à água e
ao esgotamento sanitário decretado pela ONU em 2010, pode-se avançar na
direção de uma situação merecida por toda a população brasileira,
indistintamente de sua situação de classe e de sua condição social,
econômica, étnica ou regional.
Léo Heller
Ilustração: Daniel Kondo 1 Disponível em: . 2 S. C. Rezende, S. Wajnman, J. A. M. Carvalho e L.Heller, “Integrando oferta e demanda de serviços de saneamento: análise hierárquica do panorama urbano brasileiro no ano 2000”, Engenharia Sanitária e Ambiental, v.12, p.90-101, 2007. 3 Para uma interessante discussão sobre o conceito de liberdade, direitos humanos e o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, com base na teoria de Amartya Sen, e sua relação com o acesso ao saneamento, ver J. P. Mulreany, S. Calikoglu, S. Ruiz e J. W. Sapsin, “Water privatization and public health in Latin America” [Privatização da água e saúde pública na América Latina], Revista Panam Salud Publica, v.19, n.1, p.23-32, 2006. 4 Para uma análise mais detalhada, ver L. Heller, “Access to water supply and sanitation in Brazil: historical and current reflections; future perspectives” [Acesso a água e saneamento no Brasil: reflexões atuais e históricas; perspectivas futuras], Human Development Report, 2006. Occasional paper. 5 Ver, por exemplo, notícias na imprensa, como em: . 6 Para uma argumentação mais completa, ver José Esteban Castro e Léo Heller, “A participação privada em saneamento e seus sofismas”. Disponível em: . 7 Alguns exemplos emblemáticos são dos casos de Buenos Aires, Cochabamba e La Paz-El Alto, Atlanta e Paris, cidade que foi berço das maiores multinacionais do mundo no campo do saneamento e onde, em 2010, o município decidiu não renovar o contrato dos concessionários privados. 8 Para uma descrição dessa trajetória, ver capítulos do livro de Léo Heller e José Esteban Castro, Política pública e gestão de serviços de saneamento, Editora UFMG/Editora Fiocruz, 2013. 9 Ver L. Proyect, “David Harvey, Jame O’Connor and Engels’ Conditions of the Working Class in England” [David Harvey, Jame O’Connor e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels]. Disponível em: . 10 Ver M. Gandy, “Rethinking urban metabolism: water, space and the modern city”, [Repensando o metabolismo urbano: água, espaço e cidade moderna], City, v.8, n.3, p.363-379, 2004. |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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domingo, 28 de julho de 2013
A ética do capitalismo e o saneamento no Brasil
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