Escrito por Carlos Carujo |
Numa discussão recente, vieram à baila dois argumentos tradicionais
de quem detém o poder político contra quem, de uma forma ou de outra, se
lhe opõe. Neste caso particular, dizia-se que os outros só falavam dos
problemas das pessoas com objetivos eleitoralistas e que se limitavam a
falar da boca para fora porque só têm conhecimento sustentado das
questões quem governa.
Estes argumentos em si, autocentrados, envolvidos numa suposta
superioridade moral e facilmente desmontáveis do ponto de vista
racional, não têm grande valor. Contudo, deve fazer-nos pensar o fato
destes e de outros argumentos semelhantes serem utilizados por tantas
fontes diferentes e em tantos momentos diferentes. Há, aliás, um
conjunto de argumentos que são cansativamente recorrentes por parte de
vários tipos de poderes, sejam governos, autarquias, direções políticas
ou associativas.
Aproveito este pretexto para revisitar algumas destas razões do poder
na esperança de que a sua apresentação breve contribua para demonstrar o
seu carácter falacioso.
- A inevitabilidade. É talvez o argumento mais
terrível do poder por ser aquele que rouba mais democracia ao debate.
Para quem está instalado só pode ser sempre assim como eles fazem. No
país, existe um exército de técnicos e fazedores de opinião preparados
para jurar isso mesmo.
Só que, do ponto de vista do detentor do poder, tal não basta porque
nada diz sobre o pessoal político que deve executar tal política única,
podendo justificar as situações de alternância (de grupos que exercem o
poder) sem alternativa (outro programa político e outra forma de fazer
política). Daí que a inevitabilidade costume vir servida com o
acompanhamento de algum outro argumento destinado a provar que quem está
deve ficar. Pretendem provar isto os tipos de argumento seguintes...
- O amor (pela terra, pela causa ou organização).
Por exemplo, na política local, as juras de que ninguém ama mais a sua
terra tornam-se comuns, apesar de poucas razões darem aos eleitores para
votarem. Lembro-me, aliás, do candidato que colocava no cartaz de
campanha o seu amor por Lisboa. Só que tal jura implica um juízo de
valor sobre o oponente (que de alguma forma se acusa de não gostar ou de
gostar menos). E, claro, amar não significa necessariamente saber
cuidar, não é sinônimo de capacidade política nem justifica a razão pela
qual se defende determinado tipo de políticas em vez de outras.
- O sacrifício. É um argumento típico do
profissional da política: “eu faço tanto por vocês, eu dedico todo o meu
tempo, eu desisti de uma carreira brilhante para estar aqui...” Ao
colocar-se em posição de sacrifício, espera-se simpatia ou
reconhecimento e pretende-se calar a mal-agradecida oposição. Só que,
para além disto, pouco tem a ver com a avaliação das políticas postas em
prática, é também um argumento cínico que acaba por desvalorizar a
participação. Para a retórica do sacrifício, o direito à palavra parece
estar dependente de um “empenho” que poucos poderão ter. Divide-se a
política implícita ou explicitamente entre aqueles que só falam e
aqueles que fazem, desvalorizando-se desta forma, perigosamente, o papel
da oposição em democracia.
- A competência. Entendamo-nos, não está em causa a
necessidade de um programa político ser colocado em prática por
executores que sejam eficazes. Está em causa, mais até do que forma
manhosa do autoelogio ou do elogio por interposta pessoa, o uso e abuso
de um estatuto para se disfarçar a si próprio de técnico/especialista,
procurando fugir à má imagem dos políticos.
Para além do mais, tal afirmação não só beneficia a imagem do
detentor do poder como serve para disfarçar as escolhas políticas de
razões técnicas, acabando desta forma por ser uma variação da política
da inevitabilidade (e partilhando as suas fragilidades). Juram-nos: não
apenas não sou político, como o que faço não é política, mas a solução
para os vossos problemas. Palavra de quem sabe. Mas, reduzida a
democracia a uma tecnocracia, deixaria de haver escolhas livres.
Os economistas do sistema neoliberal são um bom exemplo da razão
tecnocrática. O atual ministro das Finanças português joga muito este
jogo. E, como resposta à sua desejada superioridade técnica, poder-se-ia
responder-lhe com a acusação de incompetência face aos resultados das
políticas de espiral recessiva. Contudo, o problema talvez seja o
oposto: este governo é altamente competente no seu plano de
desvalorização do trabalho. Porque a pergunta a fazer à retórica da
competência é: competente para quê? Ao contrário do que afirma um certo
discurso idealista, não existe “o melhor para o país” em termos
abstratos, pronto a ser levado à prática pelos “competentes” que
deveriam exigir do resto uma unidade nacional. Existem caminhos
diferentes e há que escolher. Assim é a política.
Some-se a isto o óbvio: as razões do poder não passam apenas por se
louvar a si próprio, uma estratégia paralela é a de denegrir o
adversário. O que abre um novo campo de argumentos.
- A diabolização da crítica. Para além de se
aproveitar do estatuto para dividir ficticiamente entre quem diz e quem
faz, apresenta-se a oposição como aqueles que “só sabem dizer mal”. E
por mais que quem não concorde com o detentor do poder tenda até a polir
as suas críticas para escapar a tal acusação, ficará sempre enredado
nas malhas deste argumento. A diabolização costuma ser muito eficaz do
ponto de vista do condicionamento das críticas. Isto porque transmite a
ideia de que quaisquer críticas são maledicência, deslocando as críticas
à atuação do poder político, que passam de ser o que são (críticas à
ação do detentor do poder) a serem apresentadas como o que não são:
críticas que prejudicam a imagem do país, cidade, causa ou organização.
“Love it or leave it”, amem-na ou deixam-na, disparava o slogan
norteamericano contra quem criticava o governo em tempo de guerra fria. E
a lógica continua a ser a mesma.
- A caricatura. Para além de se desvalorizar o
discurso crítico, pode-se também desvalorizar quem ouse fazer críticas.
Aqui entra ou o exercício de pseudo-psicologia à volta da figura do
crítico enquanto um insatisfeito crônico e por isso incapaz de fazer
algo construtivo, ou um perigoso ambicioso cheio de sede de
protagonismo. Pode-se ainda utilizar a insinuação à volta de interesses
obscuros em alguns casos.
Do ponto de vista do poder estabelecido, este recurso é valioso
porque, para além de inibir muitos de criticar publicamente, acaba por
desviar as atenções acerca do que foi criticado, ao concentrá-las em
quem fez as críticas. Apesar de tudo, mesmo as críticas feitas pelo pior
canalha do mundo podem ser válidas.
Reconheça-se ainda, evidentemente, que o boato, a insinuação e o
ataque pessoal, as estratégias reles da política, não são exclusivos de
quem detém o poder. Mas é necessária uma boa máquina organizativa para
que sejam eficazes e não tenham um efeito de boomerang.
Dito isto, há que reconhecer que as estratégias argumentativas
falaciosas têm sido parte integrante da política desde há muito. E,
mesmo que se tornem mais chocantes em tempos de urgência social, sabemos
que iremos continuar a ouvir variações sobre estes temas. Tal como
iremos continuar a sofrer alguns dos efeitos desta forma de fazer
política. Este tipo de argumentos induz a sensação de que a política
deve ser um campo hierarquizado em que uns mandam noutros, em que a
capacidade de decisão só deve estar ao alcance de alguns, sendo alheia
ao conjunto dos cidadãos.
E induz a desvalorização do próprio debate político porque, feito
assim, tem pouca qualidade, implicando um eterno retorno a alguns pontos
básicos que pouco ou nada esclarecem e reduzem-se tantas vezes a uma
troca de piropos. Há, assim, uma quota de responsabilidade deste tipo de
discurso na chamada crise da política.
Mas é possível que o reconhecimento de que as falácias e raciocínio
simplistas fazem parte da política não se transforme num fatalismo ou
num cinismo. É possível contribuir para que o centro dos debates
políticos seja o aprofundamento das alternativas. É possível
desconstruir o discurso dos “grandes políticos” e devolver a palavra aos
cidadãos num processo de formação política permanente em que estejamos
sempre todos e todas a aprender. O melhor antídoto contra a repetição
destas razões do poder é a criatividade prática.
|
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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domingo, 3 de fevereiro de 2013
RAZÕES DO PODER
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