Em artigo, pesquisadora sobre judicialização da política Maria Luiza Tonelli vê indícios de uma "verdadeira parceria público/privada entre um ministro do STF e a mídia" na publicação, pelo ex-presidente do Supremo, de prefácio no livro "Mensalão", do jornalista do Globo Merval Pereira
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"Para quem proferiu tantos discursos em nome da necessidade da
'ética na política' durante o julgamento, isso é, no mínimo
imoral". A crítica é da advogada e pesquisadora sobre
judicialização na política Maria Luiz Tonelli sobre o prefácio
escrito pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres
Britto no livro recém-lançado "Mensalão", uma compilação
de artigos do jornalista do jornal O Globo Merval Pereira.
Em
artigo,
a advogada afirma ver, no ato da publicação do prefácio, uma
"verdadeira parceria público/privada entre um ministro do STF e
a mídia", que chama de "voz da oposição neste país".
A relação entre as duas partes, segundo ela, é "promíscua"
em termos democráticos e republicanos. O ato chega a ser ainda mais
"indecoroso", defende ela, do que a presença do ministro
Gilmar Mendes, "em pleno julgamento da AP 470", no
lançamento do livro "O país dos Petralhas II", do
jornalista da revista Veja Reinaldo Azevedo (relembre).
Leia abaixo a íntegra do
artigo:
Relações
perigosas e democracia
Qualquer cidadão
minimamente informado sabe que o Estado Democrático de Direito é
aquele pelo qual os poderes públicos estão regulados por leis, ou
seja, a sociedade é governada de forma tal que ninguém está acima
das leis do país.
No Estado Democrático de
Direito, a fim de impedir o exercício ilegal do poder e o abuso de
poder, a Constituição (a carta política de uma nação) estabelece
a divisão de poderes, divisão esta que estabelece competências e
prerrogativas próprias dos poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário. Tal divisão se dá em razão de suas funções, poderes
independentes e harmônicos entre si. Trata-se aqui da adoção do
sistema de freios e contrapesos. Há um poder soberano, mas este é
dividido nas funções Executiva, Legislativa e Judiciária. O
sistema de divisões de poderes, deste modo, cria mecanismos de
controle recíproco sem o qual não haveria garantia de conservação
do Estado Democrático de Direito.
Se há um poder soberano
dividido em funções, de onde surge tal poder? O Artigo 1o.,
Parágrafo Único da Constituição Federal de 1988, que é a Carta
Política do país, diz: "Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta constituição". Dizer que o poder "emana do povo"
significa que a fonte do poder é o povo, provém exclusivamente do
povo, que não o exerce diretamente, mas através de representantes
eleitos. Infere-se aqui o princípio da soberania popular, onde cabe
ao cidadão escolher os destinos da nação. No exercício de sua
cidadania o indivíduo exerce o direito de votar, ou seja, soberania
popular e cidadania são termos indissociáveis.
Dizer também que o poder
"emana do povo" significa que as leis do país são feitas
pelo poder eminentemente político que representa o povo, que é o
poder Legislativo, o parlamento. Apesar da divisão dos poderes, pela
qual nenhum poder pode se sobrepor ao outro, o que seria uma invasão
de competência, usurpação e abuso de poder, numa verdadeira
democracia o poder mais importante, no sentido de que é aquele que
tem legitimidade de falar em nome do povo, é o poder Legislativo,
onde as decisões são tomadas em seu nome.
Desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988, chamada por Ulisses Guimarães de
"Constituição cidadã", o Brasil inicia um período
verdadeiramente democrático, após 21 anos de ditadura militar sob
um regime de exceção.
A democracia, como sabemos,
é o regime político onde a regra da maioria prevalece. Isso não
significa que numa democracia a maioria se sobreponha em direitos
sobre as minorias, mas que no jogo político democrático prevalece a
decisão da maioria.
No Brasil, uma democracia
representativa sob o Estado Democrático de Direito, o/a presidente e
os parlamentares nas diferentes esferas (federal, estadual e
municipal) são eleitos e os magistrados são concursados ou
nomeados, como é o caso dos ministros do STF, a mais alta corte de
justiça do país, ou "última instância" do poder
Judiciário, que exerce uma parcela do poder político, pelo
princípio da separação dos poderes. Todavia, este é um poder
exercido por agentes não eleitos pelo povo. Juízes de instâncias
inferiores ou ministros do STF, exercem uma parcela do poder político
no desempenho de sua jurisdição. Há algo que é inseparável do
órgão de jurisdição: a imparcialidade do juiz. É a
imparcialidade a primeira condição para que o magistrado possa
exercer sua função dentro de um processo, quando o juiz coloca-se
entre as partes e acima delas. O pressuposto para que a relação
processual seja válida é a imparcialidade do juiz. Um julgamento
justo, portanto, depende da imparcialidade daquele que julga
respeitando as partes, ou seja a defesa e o contraditório.
Com a promulgação da
Constituição Federal de 1988 fechamos o ciclo do processo de
redemocratização. Nossa Constituição propiciou oportunidades para
que os cidadãos tivessem mais acesso à justiça, por exemplo, com a
criação do Juizado de Pequenas Causas. Passamos da ditadura para
uma "era dos direitos". Isso, por outro lado, propiciou
aquilo que chamamos "judicialização das relações sociais".
Conflitos de natureza pública e privada são cada vez mais
solucionados na esfera do Poder judiciário.
Ocorre que nos últimos
tempos os conflitos que deveriam ser resolvidos na esfera política,
pela via da negociação democrática, pelo diálogo, são levados ao
Poder Judiciário, o que confere aos juízes um poder questionável
uma vez, que além de não serem representantes eleitos pelo povo,
isso judicializa a política quando, por exemplo, a minoria
inconformada com a decisão da maioria bate às portas dos tribunais
para vencer no poder Judiciário o que não consegue no parlamento, a
esfera propriamente política.
Cada vez mais podemos
observar juízes sendo interpelados por políticos e pela mídia, ora
para decidir, ora para opinar questões que não deveriam ser
tratadas nos tribunais. Estamos vendo a própria política sendo
levada ao banco dos réus, como ocorreu com o julgamento da Ação
Penal 470, chamada pela mídia como "mensalão" do PT, o
"maior julgamento da história", e o "maior escândalo
de corrupção deste país", conforme afirmou o Procurador Geral
da República Roberto Gurgel no primeiro dia de um julgamento
realizado em pleno período de campanha eleitoral, quando todos os
julgamentos daquela corte foram suspensos para atender aos "apelos
da sociedade", como propagava a mídia. Roberto Gurgel chegou a
declarar na mídia que "seria bom que o julgamento refletisse
nas urnas".
Durante todo o julgamento,
televisionado e transmitido ao vivo, víamos comentaristas afirmando
que o STF, através do julgamento do "mensalão", estava
iniciando uma nova página da história da política deste país
"acabando com a impunidade" e com a corrupção. Não é
preciso repetir aqui algumas frases de discursos de alguns ministros
que, ao julgar réus de uma ação penal, não se furtaram de julgar
um partido político e a própria atividade do parlamento,
arvorando-se menos em guardiães da Constituição do que em
guardiães da ética. A mídia, em geral, declaradamente
oposicionista em relação ao governo da presidenta Dilma, pressionou
o STF para que o julgamento fosse realizado durante a campanha
eleitoral, transformando o mesmo num espetáculo e, em nome da
"liberdade de imprensa", promoveu o linchamento moral dos
réus, especialmente os do núcleo político, violando frontalmente o
princípio constitucional da presunção de inocência. Aliás, desde
2005, quando Roberto Jefferson fez a denúncia de um suposto esquema
de compra de votos que ele chamou de mensalão, a mídia passou a
tratar todos os acusados de "mensaleiros". Todos
presumidamente culpados, condenados por antecipação.
O que ficou muito claro
durante a realização o julgamento da AP 470 em plena campanha
eleitoral, atendendo aos "apelos" de certa mídia que se
arvora em ser representante do povo quando se pretende "portadora
dos anseios da sociedade", não foi outra coisa senão a relação
promíscua entre a mídia, através de certos jornalistas, e o STF.
Pois bem, passados dois
meses do julgamento da Ação Penal 470, o jornalista Merval Pereira
das Organizações Globo lançou nesta semana um livro chamado
"Mensalão", com prefácio de Ayres Brito. Ora, o indivíduo
que era o presidente da suprema corte do país prefaciando um livro
sobre um julgamento que ainda nem teve seus acórdãos publicados?
Além disso, ainda cabe recurso em alguns casos, pois a ação ainda
nem transitou em julgado. Para quem proferiu tantos discursos em nome
da necessidade da "ética na política" durante o
julgamento, isso é, no mínimo imoral, tendo em vista que o livro em
questão não é jurídico, mas uma compilação de artigos de
opinião de um jornalista publicados em jornal durante o período do
julgamento. Eis aí os indícios de uma verdadeira parceria
público/privada entre um ministro do STF e mídia, a voz da oposição
neste país. Uma relação, no mínimo, promíscua em termos
democráticos e republicanos.
Pensava-se que não poderia
haver nada mais indecoroso do que o comparecimento do ministro Gilmar
Mendes ao lançamento do livro "O país dos Petralhas II",
de um blogueiro da revista Veja em pleno julgamento da AP 470.
Todavia, agora há que se indagar sobre quem agiu de forma mais
imoral. De um, esperava-se que em nome da imparcialidade do julgador
que não comparecesse naquele momento a um evento para privilegiar o
lançamento de um livro cujo título por si só já diz para que
serve, por mais que seja amigo do autor. Do outro, esperava-se pelo
menos a dignidade de esperar o trânsito em julgado de uma ação
penal da qual foi um dos julgadores. A conduta de ambos coloca sob
suspeita a imparcialidade na condição de magistrados. Parafraseando
aquele ditado sobre a mulher de César, aos ministros de uma corte
suprema de justiça não basta a exigência de imparcialidade. É
preciso que pareçam imparciais.
Em tempos de judicialização
da política, quando a mídia se coloca não no papel de
fiscalizadora da política, a serviço da democracia, mas da
oposição, que é a minoria, fica muito claro que estamos diante de
uma nova estratégia de luta política que envolve não apenas
partidos políticos mas os meios de comunicação e o poder
Judiciário. Num Estado Democrático de Direito quem fala em nome do
povo e quem decide os rumos do país são seus representantes
eleitos. Não é este o caso do Poder Judiciário. Tampouco o da
mídia.
Disputas políticas não
podem, numa democracia, serem travadas sob o pretexto de uma pretensa
"faxina moral" quando corruptos são sempre os adversários
políticos. A política não pode ser julgada exclusivamente com
critérios jurídicos e morais, mas políticos, porque Direito, Moral
e Política são intercambiáveis, mas não se confundem. Já vivemos
num tempo em que tudo era política. Hoje, ao que parece, vivemos num
tempo em que tudo é moral. E quando a moral, que não se confunde
com a ética, quer substituir a política sabemos muito bem aonde
isso pode chegar.
Maria
Luiza Q. Tonelli é advogada, mestre e doutoranda em Filosofia pela
USP, com pesquisa sobre judicialização da política e soberania
popular
Fonte: http://www.brasil247.com
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