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Só recorte muito pobre, restrito à surrada noção de “arte maior”,
pode ter levado jornalista a ver país culturalmente “imbecilizado”
Por Cynara Menezes, em seu blog
O provocativo artigo de Mino Carta na CartaCapital da semana, A Imbecilização do Brasil,
me instigou a escrever um contraponto às palavras dele. Discordo de
Mino e sei que, ao escrever o texto, sua principal intenção era
justamente levantar o debate. Não, não acho que o Brasil tenha se
imbecilizado. A questão, para mim, diz respeito ao que se considera
arte. Só Portinari é arte? Existe arte “menor” e arte “maior”? Em que
tipo de arte você acredita?
Não vejo “deserto cultural” algum no País. Nos últimos anos, uma nova
cultura está surgindo, mas é preciso ter olhos para vê-la. É forte a
cultura que vem da periferia e cada vez mais será. Não temos mais
Portinaris? Temos grafite. O Brasil é hoje referência mundial em arte de
rua. Temos grandes artistas como Os Gêmeos, Nina Pandolfo, Nunca.
Estava matutando sobre estas coisas e acabei descobrindo outro fera, o
baiano Toz, que acaba de pintar, ao lado de oito grafiteiros, um painel
gigante na lateral de um prédio da zona portuária do Rio.
Ao olhar o incrível trabalho de Toz, me dei conta de que a “arte” de
que muitos sentem saudade é na verdade uma arte que fica trancada nos
museus, que tem de ir à Europa para conhecer. A arte dos grafiteiros
está na rua, ao alcance dos olhos de quem passa, não precisa pagar
ingresso para ver. Portinari, Di Cavalcanti, Volpi –é indiscutível sua
qualidade artística. Mas ver de perto um quadro deles não é para todo
mundo. O grafite é – e para mim tampouco é discutível seu valor.
Detalhe: o grafite no muro, ao contrário do quadro pendurado no museu,
faz qualquer um sentir que pode ser artista. Isso é inclusão.
(detalhe do painel de Toz. Foto: Sergio Moraes/Reuters)
Guimarães Rosa, Gilberto Freyre… Entendo a provocação de Mino Carta,
mas vários dos nomes que ele cita em seu artigo vieram da elite
brasileira. E não é culpa do Brasil se a elite não cria mais. Se, em vez
de ir para a Europa se ilustrar e voltar escrevendo ou pintando obras
fantásticas, os filhos da elite agora preferem ir a Miami comprar
bugigangas, não é culpa do povo. Quem se imbecilizou não foi o Brasil,
foi a elite. Já escrevi aqui, em tom de galhofa, sobre os submergentes:
a elite brasileira submergiu, emburreceu, se vulgarizou. Por que a
imprensa, como diz Mino, está ruim? Porque a imprensa é o retrato dessa
elite decadente e inculta.
Mas, prestem atenção: o que tem surgido de manifestação cultural
vinda do povo é muito mais do que interessante. Representa o futuro, não
o passado que ficou para trás. O mundo mudou, a arte também. “Ah, mas o
povo gosta de axé, de sertanejo”. E acaso o axé e o sertanejo vieram do
povo? Ou vieram do mainstream, da elite que controla a música, para
pegar o dinheirinho do povo? Ivete Sangalo, que cobra 650 mil reais para
tocar sua música ruim até em inauguração de hospital, não veio do povo.
Luan Santana não veio do povo. Eles se impuseram ao povo por meio de
mega-esquemas de divulgação. É completamente diferente.
O rap que vem da periferia de São Paulo vem do povo. “Ah, mas o rap
não é brasileiro”. E o que é brasileiro? A bossa nova? Mas ela não veio
do jazz norte-americano e ganhou elementos nossos? A mistura está em
nosso sangue e em nossa tradição cultural: bossa com jazz, rap com
samba, funk com maracatu. Isso é Brasil. Vejo, sim, grandes talentos do
rap surgindo, fazendo ótima música e falando a linguagem do entorno onde
vivem. Os rappers são os cronistas dos rincões mais longínquos e
esquecidos do Brasil urbano. Assim como, gostando-se ou não dele, o funk
carioca nasce no subúrbio, em estúdios de fundo de quintal. É original e
vibrante. Não é “arte”?
Voltamos ao começo: o que é arte, afinal?
Numa coisa Mino tem razão, a TV brasileira oferece muita coisa ruim. É
verdade. Mas eu não sou tão pessimista. A Globo, principal emissora do
país, de vez em quando brinda seus telespectadores com coisas bacanas,
até mesmo em novelas, seu mais popular produto – Avenida Brasil –
é um exemplo recente. Ironia: as outras emissoras comerciais, que
pretendem tirar a “supremacia” da Globo, não têm nenhuma exceção, só
oferecem lixo. Mas vejam só, temos TV a cabo, com várias opções (eu
gosto muito do Canal Brasil), e ainda tem a TV pública. Ninguém é
obrigado a assistir porcaria, é só usar o controle remoto.
Hoje mesmo li o Zeca Pagodinho se queixando de que não toca samba no
rádio. Pois eu ouço samba direto no rádio, sabem por quê? Porque só ouço
rádio pública, todas com programação de alto nível e variada. Zeca,
como tanta gente que reclama do que toca no rádio, devia simplesmente
boicotar as emissoras comerciais.
Não vejo imbecilização alguma do Brasil. Temos uma significativa
parcela de pessoas recém-incluídas que já estão produzindo cultura e,
incentivadas, produzirão cada vez mais. É uma notícia excelente: não são
mais só os 5% de brasileiros que tinham acesso à cultura que podem
fazer música, pintura, literatura, cinema. Ainda não deu tempo de uma
nova geração de intelectuais, oriunda das classes mais baixas da
população, como é possível hoje, se formar. No futuro, tenho certeza,
virão daí os novos Gilbertos Freyres, os novos Sergios Buarques de
Holanda, escrevendo sobre o País, suas mazelas e seus desafios.
Com a diferença de que, para eles, não será só uma paixão
intelectual. Sentiram na pele o que estão falando. Escreverão com as
vísceras. E é essa, para mim, a melhor definição de arte, sempre: aquela
que vem das vísceras.
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