Dois textos sugerem: movimentos que puxaram mobilizações
anticapitalistas de 2011 precisam dar um passo adiante. Tem a ver com
poder...
Por Antonio Martins
Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera
Primavera nos dentes, Secos & Molhados
No ano frenético de 2011, os Indignados espanhóis e o Occupy Wall Street,
dos EUA, foram protagonistas centrais. Levaram imensas multidões às
ruas, para protestar contra o sequestro do futuro coletivo “por
banqueiros e políticos”. Retomaram a denúncia do capitalismo, esquecida
durante décadas em seus países. Reincluíram na agenda de debates temas
esquecidos, como o crescimento das desigualdades e o surgimento de uma oligarquia financeira. Suas
ideias influenciaram, em certo momento, as maiorias. Por isso,
conquistaram espaços na mídia, entre os intelectuais e artistas. No
entanto, sua capacidade de manter a mobilização inicial foi limitada.
Iniciados respectivamente em maio e setembro, Indignados e Occupy refluíram
cerca de dois meses depois. Desalojados das praças que ocupavam por
repressão policial, não recobraram, até o momento, a antiga potência —
nem para reunir multidões, nem para influenciar o debate público. Por
que?
Dois textos (1 2) traduzidos e publicados há pouco por Outras Palavras convidam
a buscar respostas. Seus autores partem de perspectivas distintas. O
catalão Manuel Castells, um dos grandes sociólogos contemporâneos,
apresenta e analisa, num texto para o La Vanguardia, a criação do Partido do Futuro, impulsionado por setores dos Indignados. Ele continua a ver, no movimento, enorme capacidade de criação política. Já o escritor e jornalista norte-americano Thomas Frank, especializado em História da cultura e das ideias, é menos otimista. Escreve, no Le Monde Diplomatique, que o Occupy, provocou enorme
chacoalhão na sociedade norte-americana, mas perdeu força rapidamente,
por recusar-se a formular um programa de reivindicações concreto. No
entanto, algo une Castells e Frank: ambos parecem enxergar que, superada
a fase do entusiasmo inicial, os novos movimentos precisam dar um passo
adiante — e ele está relacionado com algum tipo de diálogo com o poder e
as instituições.
Castells reconhece que muitas das iniciativas do Indignados “parecem
condenadas a um beco sem saída”. Embora o movimento esteja gerando uma
cultura política inteiramente nova, ao convidar os cidadãos a
compreenderem e interferirem diretamente na construção de seu presente e
futuro — indo além do voto, partidos e instituições –, esta invenção
choca-se com uma imensa barreira. O sistema político espanhol mostra-se
impenetrável. A mudança de consciência “esgota-se em si mesma quando se
confronta com uma repressão policial cada vez mais violenta”. Como o
movimento não pretende (felizmente, para Castells) responder com força
bruta, é preciso inventar algo novo.
O Partido do Futuro
é uma espécie de esboço em construção, reconhece o autor. Ele terá
registro legal mas não procurará disputar eleições nem, portanto,
constituir bancada. Seu programa tem um único item: “democracia e
ponto”. Ela materializa-se, em especial, na proposta de substituir a
representação partidária por consultas diretas aos cidadãos,
potencializadas pela internet: plebiscitos eletrônicos e elaboração
colaborativa de leis (à moda da Wikipedia), por exemplo.
Como alcançar tal transformação? Castells adianta uma hipótese
remota. Se, num dado momento, a grande maioria dos eleitores estivar
disposta a “votar contra todos os políticos ao mesmo tempo”, o Partido
do Futuro poderá facilitar “uma ocupação legal do Parlamento e o
desmantelamento do sistema tradicional de representação, de dentro dele
mesmo”.
Será razoável esperar por esta hipótese extrema? Como pressionar as
instituições, até então? Esta parece ser a preocupação central de Thomas
Frank, e o núcleo de sua crítica ao Occupy. Ao contrário do que recomendou Slavoy Zizek aos acampados no Zucotti Park, eles teriam “apaixonado-se por si mesmos”, diz Frank. Extasiaram-se com as inovações formais que
produziram — a construção de comunidades nos espaços públicos ocupados,
a horizontalidade radical que os levou a jamais escolher porta-vozes,
as cozinhas coletivas, os mutirões de limpeza.
Frank não despreza estas conquistas. Reconhece que “construir uma
cultura de luta democrática é muito útil para os ambientes militantes”.
Mas objeta: trata-se “apenas de um ponto de partida”. O Occupy recusou-se
a ir além. Significaria formular reivindicações concretas, que pusessem
em xeque o “1%”. Dialogar com o conjunto da sociedade em termos que
permitissem a construção de propostas comuns. Colocar na agenda temas
como os empréstimos bancários usurários que arruinaram milhões de
famílias; a salvação dos bancos com recursos públicos; a transferência
de riquezas para os mais ricos, por meio de isenções de impostos e bônus
astronômicos.
Por trás deste “grave erro tático” estariam a soberba e uma crítica
ao Estado tão extrema e sem mediações que teria feito o movimento
assemelhar-se, em alguns aspectos, ao discurso da direita ultra-liberal.
A partir de certo ponto, diz Frank, qualquer intenção de apresentar um
programa passou a ser vista pelo Occupy como “um fetiche
concebido para manter o povo na alienação e no servilismo”. Em
consequência, “um movimento de protesto que não formula nenhuma
exigência seria”, na opinião de seus animadores, “a obra-prima última da
virtude democrática”…
Este narcisismo teria levado os acampados a se fecharem num discurso
cada vez mais acadêmico (Frank cita inúmeros exemplos, a partir da
literatura produzida pelo movimento), hermético e… terrível, mesmo do
ponto de vista estético. A advertência formulada por Zizek teria sido
vã. “Os carnavais são fáceis. O que conta é o dia seguinte, quando
precisamos retomar nossa vida normal. É quando nos perguntamos: ‘alguma
coisa mudou’?”
É provável que a crítica de Frank seja precipitada. Um movimento que
questiona tão profundamente as estruturas de poder (e o faz com apoio
inicial maciço), como o Occupy, não pode avaliado em prazo tão
curto. De qualquer forma, o que tanto seu texto quanto o de Castells
põem em relevo é a necessidade de debater mais profundamente, no
interior da nova cultura política, o papel do Estado; as estratégias e
táticas necessárias para superar, além das estruturas de poder
ultra-hierarquizadas, a dominação de classe.
Esta questão precisa libertar-se, nas condições inteiramente novas
das sociedades pós-industriais, dos dois paradigmas que a conformaram,
nos séculos 19 e 20: a visão marxista e a anarquista. O poder de Estado
não é a chave para as transformações sociais, ao contrário do que
pensavam os que julgaram construir o “socialismo real”. Ele está tão
marcado por relações de autoridade e hierarquia que acreditar em sua
“conquista” equivale a assumir estas relações desiguais. A construção de
novas lógicas e relações sociais exige, ao contrário, des-hierarquizar e
horizontalizar desde já, incorporando uma pitada de ghandianismo às tradições revolucionárias anteriores: “seja a mudança que você quer”.
Mas o Estado, talvez a instituição mais contraditória de nossa época,
não é apenas uma máquina de opressão. É, também, o espaço em que se
efetivam os direitos. Redução da jornada de trabalho; proibição do
desmatamento; punição dos que praticam homofobia; garantia de uma renda
cidadã; proteção dos direitos dos imigrantes, promoção da economia
solidária — onde estas e tantas outras aspirações poderão se realizar,
num tempo em que as sociedades ainda são marcadas por conflitos?
Menos vistosos, por enquanto, em sua capacidade de mobilização de
multidões, talvez alguns movimentos que atuam no Sul do planeta tenham
encontrado soluções avançadas para tais problemas. Eles falam, por
exemplo, em hackear o Estado.
É um termo provisório, mas certeiro. Significa ir além da ideia ingênua
da “conquista”; compreender que a máquina estatal é, por sua natureza,
oposta à ideia de uma sociedade solidária e radicalmente democrática.
Mas implica, ao mesmo tempo, ter consciência de que será necessário construir uma transição. Novas
lógicas e mecanismos de articulação da vida social precisam ser
imaginados e postos em prática desde já. A revolução não é a conquista
do poder, mas um conjunto vasto de transformações político-culturais,
que ocorrem em tempos distintos e seguem a dinâmica profunda das
mudanças de mentalidade.
Mas tais transformações conviverão, por algum tempo, com a velha
ordem. E serão mais rápidas e efetivas se for possível “inventar, no
centro da própria engrenagem, as contra-molas que resistem”. Por isso, é
importante combater a rotina do poder de Estado e, ao mesmo tempo,
neutralizá-la; impedir que destrua boas sementes de futuro; se possível,
fazer com que rode ao contrário…
É um debate de grande relevância e profundidade. Queremos fazê-lo
juntos. As leituras de Castells e Frank são um ótimo incentivo.
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