Uma nova classe social multiplica-se e questiona bases do
capitalismo oligárquico.
Esquerda institucional não pode continuar sem
propostas para ela...
Por Guy Standing*| Tradução: Daniela Frabasile | Imagem: grafitti em Madri
Pela primeira vez na história, a esquerda institucional não tem, em todo o mundo, uma agenda de transformações.
Ela esqueceu três princípios. Primeiro, que todo movimento político progressista é construído em cima da raiva, necessidade e aspirações de uma classe emergente. Hoje, essa classe é o precariado.
A
parte dura do precariado é a que foi vista nos incêndios em Londres e
nas revoltas em toda a Inglaterra, em agosto de 2011. Não é uma classe
inferior, mas se não a entendermos, esses incêndios serão os primeiros
de muitos – assim irão crescer as “ocupações” que se espalharam da praça
Tahrir e Wall Street em 2011.
Um
segundo princípio esquecido é que todos os avanços em direção a uma
sociedade mais igualitária envolvem novas formas de ação coletiva. Os
sindicatos precisam adaptar-se e alcançar novos grupos, ao invés de
serem simplesmente instrumentos desgastados para frear a mudança.
O terceiro, que toda marcha para frente envolve três lutas sobrepostas. A primeira, no caso atual, é por reconhecimento:
a luta do grupo emergente para ter uma identidade. Isso avançou
dramaticamente em 2011, e pode ser visto nas cidades europeias, onde
milhões de pessoas começaram a se ver como parte do precariado – e não
se envergonham de afirmar tal condição, ou de reivindicar que suas
inseguranças e seus interesses sejam levados em conta.
A segunda luta é por representação.
Aqui, ainda temos muito o que avançar, mas a demanda do precariado por
envolvimento em órgãos que tomam decisões e em plataformas de políticas
sociais está crescendo. Para citar um exemplo: o precariado está
começando a exigir representação em órgãos que determinam as condições
para ter direito a benefícios do estado.
A
terceira luta também está se desenhando. Vivemos em meio a uma
transformação global, enfrentando desigualdades absurdas e insegurança
crônica. Nessa situação, novas políticas progressistas precisam ser
construídas em torno de uma luta para que a classe emergente tenha
igualdade no contole dos recursos-chave da economia. Na sociedade de
serviços de hoje, esses recursos não são os “meios de produção” do
antigo projeto socialista. Voltaremos a eles.
Uma
parte pode se voltar para a extrema-direita, e está fazendo isso;
outra, pode ser levada a um comportamento anárquico, como vimos em
Londres, ou pode se afastar da política. Uma parte está buscando uma
democracia social verde, mas não a encontra. O desafio é forjar uma
agenda e linguagem que levem a maioria para um consenso transformador e
construtivo.
O
precariado está se aproximando de uma consciência comum de
vulnerabilidade. Não apenas entre aqueles com empregos inseguros, apesar
de muitos serem trabalhadores temporários, de meio-período,
tercerizados ou em call-centers. Mas também entre os que sentem
que suas vidas são feitas de partes desarticulados, que não podem
construir uma narrativa profissional ou carreira desejáveis, nem
combinar de modo sustentável formas de trabalho e lazer.
Pela
flexibilidade dos mercados de trabalho, onde comunidades profissionais
foram desconstruídas, o precariado não pode construir uma memória social,
um sentimento de pertencer a uma comunidade de ética, solidariedade,
orgulho. Tudo é transitório. Eles percebem, ao lidar com outras pessoas,
que não têm sombra de futuro; que é improvável estarem com as
mesmas pessoas amanhã. A mente do precariado não tem âncoras, passa de
sujeito para sujeito, no sofrimento extremo do déficit de atenção. Mas
também são nômades no relacionamento com outras pessoas. Por não terem
vida profissional, os menos educados estão tornando-se agressivos, como
nas revoltas aparentemente irracionais na Inglaterra, em agosto de 2011.
Desconsideram o futuro, por que percebem que não há futuro a perder.
Embora
o precariado não seja constituído apenas de vítimas – muitos jovens bem
formados estão desafiando conscientemente a ética de trabalho de seus
pais – seu crescimento foi acelerado pelo caráter neoliberal da
globalização, que aposta na flexibilidade do mercado de trabalho, na
mercantilização de tudo e num tipo de proteção social que não reconhece
direitos universais, preferindo “focar” em grupos específicos – ou seja,
submetendo os “beneficiários” a testes de comportamento.
No
Reino Unido, nenhum governo fez mais para expandir o precariado que o
governo trabalhista de 1997-2010. Mas ele não estava sozinho. Outros
governos na Europa foram na mesma direção, assim como os democratas nos
EUA. Recentemente, governos social-democratas da Espanha e Grécia
colocaram em prática políticas de flexibilidade que desencadearam o
descontentamento dos jovens, levando-os a atacar todas as opções
políticas principais. Isso ocorreu no movimento den plirono [“recusar-se a pagar”] na Grécia, nos protestos dos indignados na
Espanha, assim como nas paradas no primeiro de maio europeu, que se
espalharam de Milão e Hamburgo para o Tóquio e outras dúzias de cidades
nos últimos anos.
Mas
a esquerda está à deriva. Não é difícil encontrar uma razão. As
derrotas políticas vividas na Europa hoje são resultado da barganha de
Fausto que os social-democratas fizeram na década de 90 e no início
desse século. Ela foi diferente, de país para país. Na Alemanha, por
exemplo, mais elementos de proteção foram preservados, em comparação com
os países anglo-saxões. Ironicamente, os países escandinavos, nos quais
as instituições social-democráticas estavam mais entranhadas, foram os
mais rápidos em seu desmonte. Mas a essência da barganha teve a ver com o
crédito. Enquanto os governos perseguiam políticas de flexibilidade do
mercado de trabalho, apoiados pelo FMI, Banco Mundial e muitos
economistas, os setores sociais que escorregavam para o precariado
podiam aproveitar uma orgia temporária de consumismo por um tempo.
A
barganha de Fausto não podia continuar para sempre. Acabou na quebra de
2008. E, como as medidas de austeridade tornaram-se regra na Europa e
América do Norte, o precariado está crescendo e tornando-se mais irado,
em sua profunda insegurança.
Seja
na Alemanha, Inglaterra, Escandinávia ou Espanha, a nova geração de
social-democratas precisa construir agora uma estratégia para envolver o
precariado – se estiverem dispostos a ressuscitar e jogar algum papel
junto aos movimentos de massa emergentes.
A
menos que uma nova estratégia de esquerda apareça rapidamente, uma
grande parte do precariado pode ser atraída pelo populismo, em direção
ao neo-fascismo. Há, no mundo industrializado um crescimento da extrema
direita, liderado por figuras como Silvio Berlusconi, que, quando
reeleito primeiro-ministro italiano, anunciou que seu objetivo era
derrotar “o exército do mal”, referindo-se aos migrantes.
Ao
fazer isso, ele assinalou por que o precariado é a nova classe
perigosa. Pessoas em situação de insegurança crônica abandonam o
altruísmo, a tolerância e respeito pelo que não lhes parece normal. Se
não têm alternativa, podem ser levadas a culpar “o outro” – os estranhos
em seu meio – por sua condição.
O
neo-fascismo é diferente de seu predecessor da década de 30. Hoje, uma
elite global de indivíduos absurdamente ricos e influentes está
manejando uma ideologia que manda diminuir o governo central, reduzir
impostos sobre altas rendas e controlar autoritariamente os
recalcitrantes, os que não se conformam, os coletivos e os “perdedores”
na sociedade de mercado – inclusive os “desabilitados” e os jovens
desempregados.
Nas
últimas duas décadas, os social democratas cederam, tanto quanto os
partidos de direita, aos charmes da elite. Ao invés de buscar o
precariado, muitos dispuseram-se a “apaziguar” os poderosos, esperando
obter apoio financeiro. Quando a elite levantou-se para apoiar a direita
mais fortemente, os social- democratas foram deixados de lado, e
tiveram que enfrentar um precariado desiludido, que não vê razão para
apoiá-los. Essa tragédia é resultado de terem abandonado os valores que
orientaram as políticas progressistas ao longo de gerações.
Mas
isso é o passado. Agora, a única forma de frear a onda neo-fascista é
forjar uma nova política, que ofereça ao precariado o que ele busca
alcançar. Essa agenda, como todas as agendas progressistas anteriores,
deve ser baseada numa noção de classe social. Deve olhar para frente,
não ser saudosista. Deve ser igualitária e responder as classes
emergentes.
A
esquerda não deveria apoiar-se em noções como “classe média espremida”.
Na estrutura fragmentada da globalização, ainda não está claro o que
são setores “médios”. Colocar o foco neles significaria pensar que não
há um setor “espremido” entre os mais pobres. “Classe média espremida”
evoca a imagem de um tubo de creme dental mal utilizado. Reflete a
recusa da esquerda diluída a enfrentar as estruturas de desigualdade de
uma maneira que respeite as tradições dos grandes pensadores
progressistas.
E
a própria imagem de “classe média espremida” pode acabar voltando-se
contra os social-democratas, já que nada criou tantos problemas para a
massa dos assalariados quanto a barganha de Fausto. É melhor mudar o
paradigma do que procurar virtudes num modelo que este setor da esquerda
ajudou a construir. Ele também precisa compreender que “criar empregos”
não é uma resposta. Oferecer às pessoas trabalhos bem abaixo de suas
competências, habilidades ou aspirações não poderá gerar simpatitas para
a esquerda.
Enquanto
isso, o espectro do neo-fascismo aponta para uma política de inferno.
Vemos isso no Tea Party norte-americano, na English Defence League, no
ressurgimento da Frente Nacional francesa, no True Finns (bem-sucedido
nas eleições gerais na Finlândia), no partido de ultra-direita sueco.
Como
resposta, a esquerda institucional deve arriscar-se a ser levemente
utópica. Os social-democratas de hoje podem ser comparados aos jogadores
de futebol que já foram craques, mas se tornaram rígidos pelo medo de
errar. É preciso olhar para frente e reinventar a fórmula de igualdade,
liberdade e fraternidade. Uma nova política será construída a partir dos
princípios de segurança econômica e da valorização de todas as formas
de trabalho e lazer – não no austero trabalhismo da sociedade
industrial. O precariado entende isso, e os políticos de esquerda
deveriam ouvi-lo.
Isso
nos traz de volta aos princípios da política progressista. Em toda
transformação, quando a sociedade e a economia são reestruturadas, a
marcha para frente é definida a partir de uma ação coletiva para
controlar os recursos-chave do sistema produtivo. A base dessa luta deve
ser a reivindicação pela igualdade, ainda que ela nunca seja plenamente
alcançada. O que importa é o rumo, e o compromisso com a luta. Isso foi
perdido na Europa nas últimas décadas, quando os social-democratas
ocuparam governos em muitos países. Eles não se limitaram a fazer pouco
contra a desigualdade; foram além, permitindo que ela aumentasse.
Quais
são os recursos-chave em torno dos quais a nova luta acontecerá? A
terra era o principal recurso na sociedade feudal; e o controle dos
“meios de produção” era o que movia as lutas da classe trabalhadora e
dos social-democratas no século 20. Mas nas sociedades contemporâneas,
os recursos-chave para a transformação global são cinco, segundo
argumento em Precariado – a nova classe perigosa.
O
primeiro é a própria segurança econômica. Um número crescente de
pessoas, nas próprias sociedades ricas, não tem certeza alguma sobre o
futuro, enquanto os ricos divertem-se no luxo. Sabe-se que a insegurança
alimenta o extremismo – em particular, o autoritarismo. Ela afasta os
instintos humanos do altruísmo, tolerância, reciprocidade e
solidariedade social. A segurança é uma necessidade conservadora.
Pessoas sem segurança buscam âncoras familiares e votam
reacionariamente. Percebendo-se disso, a esquerda institucional deveria
oferecer políticas robustas de segurança econômica para atrair o
precariado.
Benefícios
oferecidos sob condições e mini-empregos subsidiados causam vergonha.
Precisamos ser ousados e perceber que, em sociedades de mercado aberto,
nas quais a flexibilidade do trabalho é comum, muito da insegurança é
incerteza – os “riscos desconhecidos”, contra os quais não há proteção.
Nem
o seguro social, nem a assistência social condicionada irão proteger o
precariado. O seguro social só funciona razoavelmente bem em uma
sociedade industrial, onde a maioria dos trabalhadores está em empregos
estáveis e onde as contribuições correspondem aproximadamente às
necessidades de emergência. Isso não é o futuro em lugar algum. Os
benefícios condicionados nunca funcionaram: seu resultado sempre é baixo
índice de adesão e os grupos mais inseguros são os que têm menor
probabilidade de receber assistência. Além disso, levam invariavelmente a
regras arbitrárias .
A única forma de oferecer a segurança econômica necessária é fazê-lo ex-ante,
antes de que os riscos se concretizem. Há uma proposta para tanto:
estender, a todos os residentes legais de uma determinada sociedade, o
direito a uma renda básica. É algo que grandes utopistas – como Thomas
More, Tom Paine e Bertrand Russell – defenderam, e que tem sido apoiado
por economistas e cientistas sociais. É o que o precariado pede.
Os
críticos queixam-se de que não seria possível pagá-la; de que ela
recompensaria ócio pessoal e o crescimento econômico lento. Mas talvez
cheguemos bem cedo à conclusão de que não podemos viver sem ela. A ideia
de que todas as pessoas devem receber um pagamento mensal modesto está
ganhando legitimidade. Talvez de forma inesperada, está se impondo
rapidamente em economias de renda média, como o Brasil. Mais de 50
milhões de brasileiros já recebem uma renda mensal pelo Bolsa Família;
e o número cresce. O Brasil é um dos poucos países que reduziu a
desigualdade no século 21. A sociedade votou repetidamente em políticos
progressistas e tem resistido relativamente bem à crise financeira.
Uma
estratégia progressista para o precariado tem que envolver um controle
mais igualitário sobre outros recursos importantes para uma sociedade de
serviços – tempo e espaço de qualidade, conhecimento e capital
financeiro. Não há razão válida para que todo o rendimento do capital
financeiro concentre-se em mãos de uma minúscula elite, que sabe fazer
dinheiro com dinheiro. A única forma de reduzir a desigualdade de renda,
em uma sociedade aberta, é garantir uma distribuição igualitária do
capital finaceiro.
Como sustento no livro, tempo de
qualidade é um aspecto crucial. Precisamos de políticas para nivelar o
acesso a isso. Novamente, não há razão para que os ricos tenham, tanto
controle sobre seu tempo – e o precariado, quase nenhum. Este último
gasta tempo imenso lidando com demandas burocráticas, buscando um
emprego inseguro depois do outro, aprendendo novos truques (chamados de
“habilidades”…) que podem se tornar obsoletos antes que sejam usados. Da
mesma forma, não há razão para vivermos numa sociedade onde os ricos
têm acesso a auxílio técnico sobre como fazer com que suas vidas sejam
rentáveis, enquanto o precariado não pode fazer o mesmo. Essas formas de
desigualdade são estruturais, e não derivam de mérito ou peguiça.
Por que a elite e os assalariados devem ter acesso a um espaço de qualidade, enquanto
o precariado enfrenta a redução do “comum” – ao perceber que os
parques, as bibiliotecas e os espaços comunitários encolhem diante de
seus olhos? Cidades industriais como Manchester anunciam o fechamento de
quase todos os banheiros públicos. Esse tipo de “corte de gasto
público” ataca o precariado. Precisamos de uma estratégia progressista
para resgatar o “comum”.
Por
que o precariado tem suas casas sujeitas à ruína, enquanto os ricos
estão protegidos? O cortes de gastos públicos em certas cidades dos
Estados Unidos está resultando em que os bombeiros limitam-se a proteger
casas seguradas, e deixem queimar as que não têm seguro.
Por
que os assalariados podem obter crédito muito mais barato que os
sem-contrato de longo prazo? Sabemos as razões, mas são desigualdades
que se acumulam, e que não têm relação com mérito ou empenho. O
precariado assiste a isso com raiva crescente. É melhor que os políticos
respondam, ou vamos colher uma safra de discórdias.
Finalmente,
há outro princípio que os social democratas parecem ter esquecido. Em
toda transformação, uma onda de mudanças é alcançada por novas formas de
ação coletiva ou liberdade associativa. Essa ação ocorre em locais
públicos. No fim do século 18 e começo do 19, a nova classe uniu-se em
cafeterias na Alemanha e em clubes em Londres, enquanto as corporações
profissionais exigiam liberdade profissional. Um século depois, a classe
trabalhadora reuniu-se em sindicatos e em clubes de trabalhadores.
Hoje, o precariado está se unindo pela internet e em praças públicas.
Os
social-democratas perderam, no passado recente, o contato com os
movimentos de massa, e se encastelaram nas relações públicas. Esta
esquerda abriu-se a uma corrupção oportunista (como o Partido
Socialista) na Itália e atividades rentáveis e sórdidas (como as dos
líderes do “novo trabalhismo”, na Inglaterra). Parece claro que os
líderes progressistas devem vir de classes emergentes, ou ter relação
com elas e seu modus vivendi. Se não entenderem os medos, inseguranças e sonhos do precariado, vão tropeçar pelo caminho.
No
ano passado, os incêndios e revoltas na Inglaterra foram uma sinal de
alerta. A direita política demonizou os manifestantes e apelou para a
repressão; a classe média aprovou de forma silenciosa. Não se pode
aceitar vandalismo e violência. Mas “manter as aparências”, em uma
sociedade dividida e na qual o precariado está profundamente inseguro,
não é a solução. A esquerda deve oferecer uma política de esperança, se
quer evitar o inferno. Podemos fazer melhor – e faremos.
–
* Guy Standing é professor de Segurança Econômica na Universidade de Bath, na Inglaterra. Junto com o senador Eduardo Suplicy e o professor Claus Offe, é co-presidente da BIEN (Rede Planetária pela Renda Básica / Basic Income Earth Network)
* Guy Standing é professor de Segurança Econômica na Universidade de Bath, na Inglaterra. Junto com o senador Eduardo Suplicy e o professor Claus Offe, é co-presidente da BIEN (Rede Planetária pela Renda Básica / Basic Income Earth Network)
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