Toda a lógica societária à qual nos
acostumamos desde os anos 1980 se desmanchou no ar nas últimas semanas.
Para nós brasileiros, mais exatamente desde o último fim de semana
(14/15 de março), quando os números da disseminação do coronavírus
mostraram expansão geométrica.
A percepção dessa mudança de lógica é tão
abrupta, tão repentina e violenta que afeta nossos sentidos. É como se
estivéssemos em um voo acrobático, após dois loopings, um parafuso e um
tunô de barril. Com a cabeça meio girada, você leva alguns segundos para
perceber onde está o horizonte, de que lado estão o céu e a terra e em
que direção ficou a pista para a qual você deve voltar. Isso sem contar,
para os novatos, aquela horripilante sensação do cérebro ter trocado de
lugar com o estômago.
Ao longo de quatro décadas digerimos a
ideia de que a felicidade chegara para todos e haveria um pote de ouro
no fim de um ajuste fiscal. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
escreveu, em 1995, que assistíamos à chegada de um “Novo Renascimento”.
O mundo teria se globalizado, as
informações, a circulação de dinheiro e os limites entre países estariam
em dissolução. O Estado-nação seria um conceito anacrônico e a TV a
cabo, a internet, o multiculturalismo e uma série de quinquilharias
simbólicas vieram para mudar nossas vidas para sempre. Passamos a fazer
MBAs e a assistir palestras de conselheiros de mercado vindos de fora –
hoje chamam-se coaches – a nos ensinar como ser eficientes e
competitivos na vida profissional. Haveria até mesmo um estatuto de
cidadania global, que a classe média traduzia como a possibilidade de ir
a Miami duas vezes ao ano. Com a queda relativa dos preços de passagens
aéreas e a expansão do crédito pessoal após o advento do Plano Real –
que nos deu acesso a uma moeda mais valorizada que o dólar -, o planeta
estaria ao alcance das mãos. E esse planeta falava inglês, obviamente.
Os supermercados ficaram abarrotados de marcas que conhecíamos de filmes
e, apesar da qualidade dos vinhos ter melhorado, a vida real seguia na
periferia daquele admirável mundo novo, com estatais e serviços públicos
privatizados.
*
A crise econômica a partir de 2015, a
retração brutal no nível de emprego e a queda de renda cortaram um pouco
nossas asas. “Dilma, devolva meu dólar a R$1! Quero voltar à Disney”
era a consigna-símbolo dos órfãos irados dos anos petistas.
Mas nada, nada mesmo tem paralelo à
trombada dos últimos dias. Se já era difícil materializar a festa das
viagens ao exterior – quando até “as empregadas domésticas” lotavam
aeroportos (GUEDES, P. Abertura do ano legislativo 2020, revista Voto, BSB, 2020) –, agora as restrições chegam a um nível absurdo. Uma tal bolha estourou.
Não posso sair às ruas. Uma praga
invisível me impede. Como a carruagem que vira abóbora de um segundo a
outro, deixei de ser global, deixei de ser nacional e sequer sou local.
Não sou mais do bairro e nem mesmo da rua. Sou de casa, dessas quatro
paredes que me isolam, se eu tiver a sorte de ter casa. “Proibiram-me de
percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro”,
confinado ao meu aposento por 42 dias, escreveu Xavier de Maistre
(1863-1852) em “Viagem à roda de meu quarto”, em 1794.
Como ele, estou agora exilado dentro de
casa e cada saída dela é uma expedição aos Martírios, repleta de
perigos. Um parêntesis. Sou um “parasita” com emprego público estável,
no dizer do mesmo Guedes citado acima. Posso ficar no meu canto com
relativo conforto. Nesses dias não tenho de pegar metrôs, trens e ônibus
lotados para trabalhar. Fecha parêntesis.
Minha globalização se dá num espaço menor
que a aldeia de Tolstói. Falarei de meu cômodo e serei universal.
Olharei por essa janela virtual na qual talvez você me leia e tentarei
ser global, como toneladas de lixo informativo da grande mídia
garantiram incessantemente.
*
Minha globalização agora é pautada por um
ser de tamanho infinitesimal que saiu de províncias chinesas, invadiu o
sul da Itália – como os árabes no século IX ou os aliados em 1943 -,
ganhou a França, a Espanha, Portugal, pedaços da Alemanha e cruzou o
Canal da Mancha. Em seguida, atravessou o Atlântico e chegou aos Estados
Unidos e ao Brasil.
Meu único consolo mundializado é saber
que a essa hora, alguém em Seul, Teerã, Milão, Paris ou Londres está
como eu, enfurnado atrás da porta de um barraco, de uma quitinete, de um
apartamento ou de uma casa, apavorado por não saber como se proteger de
um espectro que ronda a Europa e o mundo.
“Estamos em guerra”, afirmou Emmanuel
Macron, na segunda, 16. Britânicos limpam gôndolas de supermercados,
como se aguardassem o próximo ataque da Luftwaffe. Até mesmo o ministro
da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, cujas maiores proximidades com
campos de batalha se deram em filmes de Steven Spielberg e Quentin
Tarantino, fala em “guerra”. Uma guerra, essa sim, global. Uma guerra,
com a lógica que martelaram em nossas cabeças por quarenta anos, vista
agora da janela virtual de meu computador.
Uma quantidade oceânica de empregos será
destruída em diversos países. Chuta-se algo em torno de 200 milhões.
Chuta-se, pois a pandemia não tem parâmetros ou paralelos conhecidos.
Botequins, restaurantes, cafés, papelarias, armarinhos, livrarias,
pequenos e médios comércios fecharão as portas. A construção civil e a
produção entrarão em recesso.
A última doença planetária dessas
proporções tem exatamente um século. Foi a gripe espanhola de 1918, que
contaminou um quarto da população mundial e matou entre 30 e 50 milhões
de pessoas em pouco mais de um ano. Mesmo assim, aquela influenza se
difundiu num tempo em que o capitalismo ganhava musculatura para uma
arrancada de desenvolvimento no Ocidente, que acabaria na crise de 1929.
*
Estamos no início do turbilhão, sem
conhecer ao certo o ciclo vital de um vírus que avança sobre territórios
com velocidade inusitada. Projeções sobre sua curva ascendente e
descendente são apenas projeções até agora. A invasão está em andamento.
Autoridades agora dão graças aos céus por termos os SUS, sistema
público de saúde que ainda outro dia queriam privatizar. Só ele pode
realizar atendimentos em massa, tratar em rede e mapear o território
dominado pela praga.
A doença potencializa o mergulho
recessivo – e até depressivo – em economias de baixíssimo crescimento.
No Brasil, após cinco anos de recuos sem fim, os próximos meses se
afiguram tétricos.
Branko Milanovic, professor da London School of Economics escreveu quinta (19) na Foreign Affairs seu temor de um “colapso social”. Segundo ele:
“O mundo enfrenta a
perspectiva de mudança profunda: um retorno à economia natural – ou
seja, autossuficiente. Essa mudança é exatamente o oposto da
globalização. Enquanto a globalização implica uma divisão do trabalho
entre economias díspares, um retorno à economia natural significa que as
nações se moveriam em direção à autossuficiência. Esse movimento não é
inevitável. […] Mas se a crise continuar, a globalização poderá se
desfazer. Quanto mais dura a crise, e quanto mais obstáculos ao livre
fluxo de pessoas, bens e capitais, mais esse estado de coisas parecerá
normal. […] O movimento para a economia natural seria impulsionado não
por pressões econômicas comuns, mas por preocupações muito mais
fundamentais, a saber, doenças epidêmicas e medo da morte”.
*
Confinado ao meu quadrado, planejo um
contato cada vez mais egoísta e mesquinho com o mundo. Não quero sair,
não quero passear, não quero fazer compras. Temo o contágio, a
enfermidade e a morte. Almejo apenas uma caverna com geladeira cheia e
sinal estável de wi-fi. Um individualismo regressivo, medíocre, tacanho e
antissocial. Um ambiente de átomos que não se misturam e não chegam a
menos de um metro e meio dos demais.
É muito precipitado e arriscado assegurar
que algo mudará na geopolítica mundial quando a irradiação virótica
recuar. Ou se mudará a vida em sociedade. Como ficará a percepção de
cada um em relação ao seu semelhante? Se a globalização neoliberal até
aqui nos fez ver no outro alguém a ser derrotado em uma competição sem
fim, a desglobalização conoravírica constrói um outro que pode me
contaminar e me levar a morte. Ele agora é minha negação. Ele, o
diverso, o de cor de pele diferente, o pobre, o invisível que se torna
fantasmagórico. O outro a ser eliminado!
*
A história está em curso. Este eterno episódio de Black Mirror,
um presente distópico em que nos metemos, passará algum dia, quem sabe.
Ninguém tem ideia de como será o mundo para os que ficarem. A mudança
das lógicas espacial, territorial, cultural e afetiva do que virá a ser
um ambiente global que nunca aboliu suas fronteiras para seres humanos
pode ser estrutural. Para melhor ou para pior.
A resposta não virá da medicina, embora
esta seja essencial. Virá da luta política. Virá da possibilidade de
invertermos a lógica da globalização do capital especulativo, repetida
até a náusea, dada como inevitável e imposta como se fosse a oitava
maravilha. There is no alternative! Privatizem, vendam, desinvistam, mercadizem-se.
Esse caminho desembocou no pânico sem
fronteiras. É hora de exaltar tudo o que foi tido como pecado mortal
desde as duas últimas décadas do século passado. Queremos mais Estado,
mais espaço e serviços públicos, mais dinheiro para a produção, para a
vida e não para a farra especulativa. Mais Estado! Mais Estado! Mais
Estado! É o caminho para se romper o quatro por quatro em que a miragem
ultraliberal nos enfiou e para podermos sair da roda dos nossos
mesquinhos quartos!
Vencer a bola de ferro home-office precário. Por um world-office mais justo e menos desigual! Disputemos!
***
Gilberto Maringoni
é doutor em História Social pela FFLCH-USP e professor de Relações
Internacionais na Universidade Federal do ABC. É autor, entre outros, de
A Revolução Venezuelana (Editora Unesp, 2009), Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal – 1864-1910 (Devir, 2011) e da introdução do romance O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura. Cartunista, ilustrou algumas capas de livros publicados pela Boitempo Editorial na Coleção Marx Engels, como o Manifesto comunista. Integra o conselho editorial do selo Barricada, de quadrinhos da Boitempo.
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