Uma cicatriz
histórica, como qualquer outra cicatriz, é algo que insiste em mostrar
algo que muitos querem esconder. Incômoda, áspera, marcada na carne e na
memória, sua função é lembrar.
Como já
disse Maquiavel: “na antiguidade e continuação do domínio gasta-se a
memória”. No entanto, o inverso é igualmente verdadeiro, a memória,
quando viva, é uma poderosa arma contra aqueles que querem naturalizar
seu domínio.
Dizem que
quando a Inglaterra invadiu e dominou a Irlanda no século XVII, como
forma de impor o protestantismo, aproveitou-se de um período prolongado
de fome para oferecer sopa àqueles que se convertiam à nova religião.
Muitos anos depois, Ronald Reagan em campanha para presidente iria fazer
uma viagem a Belfast para, como de costume, explorar sua descendência
mirando os votos da comunidade irlandesa nos Estados Unidos. Quando
desembarcou, uma enorme faixa o esperava: fora, tomador de sopa! Um povo
que não esquece é um problema para os dominadores.
O atual
debate sobre a ditadura empresarial e militar implantada em 1964 e seus
crimes reacende esta polêmica entre o esquecimento e a memória. A
história não tem pele para guardar suas cicatrizes, então emprestamos a
nossa pele, nossa carne e nossos ossos, guardamos, nós que sobrevivemos,
em nossos corpos a memória de nossos mortos, como disse Marighella. Mas
por que a guardamos? Por que manter viva a dor do corte nesta cicatriz?
O dossiê da
Comissão Especial de Direitos Humanos, denominado “Direito à Memória e à
Verdade”, diz em sua apresentação que a coincidência de sua publicação
no dia que marca os 28 anos da lei da Anistia sinaliza “a busca da
concórdia, o sentimento de reconciliação e os objetivos humanitários que
moveram os 11 anos de trabalho da Comissão Especial”. Não resta dúvida
que a Comissão cumpriu um importante papel na denúncia dos crimes que
encontravam-se soterrados sob o manto de silêncio e a arrogância militar
que tutelou o processo de redemocratização em nosso país, no entanto,
não foi além da denúncia do crime, não aponta os responsáveis que seguem
protegidos supostamente pela Lei da Anistia.
Não se trata
apenas de um problema de justiça, muito menos de uma mera pendência
jurídica a ser arbitrada pelo STF, ou seja, se certos crimes prescrevem
ou não, como o sequestro e a tortura e, portanto, não podem ser
“anistiados”. Não pode ser resumido a um problema meramente moral, ainda
que passe por uma dimensão moral. Trata-se, antes de tudo, de um
problema político.
Quando da
formação da chamada “Comissão da Verdade”, os militares reagiram de uma
forma que é bastante significativa. Seu principal argumento, expresso
pela boca de seus interlocutores uma vez que os militares propriamente
não falam a não ser por seus clubes, militares reformados e
parlamentares que lhes emprestam suas palavras, era que a comissão é
“unilateral”. O presidente do Clube Naval, vice-almirante da reserva
Ricardo Antônio da Veiga Cabral disse em reportagem ao jornal O Estado
de São Paulo que “a verdade não tem de ser só de um lado, o que a gente
espera é que haja equilíbrio” e completa afirmando que é necessário um
diálogo, “sem radicalismo”, afinal, segundo o vice-almirante, “estamos
em uma democracia”.
No início do
processo de abertura controlada, o General Golbery do Couto e Silva,
foi ainda mais direto em uma reportagem da falecida revista Veja, quando
dizia, ao ser indagado se os militares deveriam temer que a abertura
revelasse seus “desvios”. Naquela época ele afirmou que seria melhor que
fossem abertos os armários e que colocassem os cadáveres na rua, eles
iriam incomodar, mas com o tempo todos iriam esquecer.
Bom, então
qual seria esta versão “democrática”, sem “radicalismos”, “equilibrada” e
que poderia levar à “concórdia” e a “reconciliação”? Qual o “outro
lado”?
Comecemos
por constatar que tal postura dos militares é defensiva e altera, em
parte, um posicionamento cínico, ou seja, o de negar que houve qualquer
crime. Talvez esse seja o mérito da Comissão Especial, limpar o terreno
do cinismo. Os golpistas sempre apresentaram a versão segundo a qual não
houve crimes, ninguém foi torturado, sequestrado, morto. Houve presos,
troca de tiros, fatalidades, suicídios, eventualmente um exagero isolado
sem consentimento ou mesmo conhecimento dos militares e do governo
ditatorial. Elio Gaspari em seu escancaramento da Ditadura já comprovou,
através das próprias palavras de Geisel, o cinismo desta afirmação,
assumindo não apenas as torturas, sequestros e mortes de militantes
políticos de oposição como o pleno conhecimento da cúpula da ditadura.
Limpo este
terreno, a estratégia de defesa altera para a afirmação que se tratava
de uma luta, uma guerra, e na guerra certas coisas são necessárias para
atingir os fins desejados. Tratava-se, segundo o discurso ideológico dos
militares golpistas, de defesa da democracia contra o risco de uma
revolução comunista. Nesta guerra morreram militantes de esquerda e
morreram militares, a anistia apaga tudo e permite a reconciliação.
Este é um
bom caminho. Trata-se de uma luta de classes. Nós da esquerda resistimos
à ditadura de diferentes maneiras, desde a resistência pacífica do PCB
até as diferentes formas de luta armada, passando pela resistência
clandestina ou pela ação direta. Nossos camaradas se empenharam nesta
luta conscientes, convictos de seus princípios e do compromisso
ético-político, oferecendo suas próprias vidas quando assim se exigiu.
Não podemos
cair na armadilha da vitimização. Nossos mortos e desaparecidos eram
combatentes e, salvo exceções, sabiam exatamente o que faziam e contra
quem se levantavam, o que só aumenta sua honra e seu heroísmo. Agora,
isso é verdadeiro para nossos inimigos?
Caso os
militares queiram assumir este discurso, que o levem coerentemente até o
fim. Comecem por assumir que seu golpe e sua ditadura não se
estabeleceram para garantir uma democracia, mas contra ela. O governo
que foi deposto era um governo constitucional e democraticamente eleito
que apontava para reformas. Os golpistas rasgaram a constituição,
violaram a lei e impuseram um governo de exceção. Longe de ser para
garantir a “democracia” foi, como sabemos, para garantir os interesses
do grande capital monopolista nacional e imperialista. Seus mortos,
aqueles que perderam a vida nesta luta de classes defendendo os
golpistas, sabiam disso? Sabiam de fato pelo que lutavam e o que
defendiam?
Seus
profissionais de tortura, treinados pela CIA e pela Escola das Américas
no Panamá, eram apenas assalariados do terror, sádicos e covardes
escondidos em seus aparelhos oficiais e clandestinos. Seus oficiais
protegidos em gabinetes dando ordens estão muito longe da figura mítica
de alguém em um campo de batalha defendendo seus princípios. Optaram por
uma repressão seletiva e acobertada para evitar um confronto aberto no
campo da batalha. Escolheram o campo de luta que melhor lhes convinha e
nisso foram muito eficientes.
Qual é o
outro lado desta história? Alguns de seus agentes de terror morreu
quando tentava nos massacrar? Então que se explicite os motivos da
guerra e as verdadeiras intenções envolvidas. Muitos de nós defendíamos
uma alternativa socialista para o Brasil, nem todos os que se empenharam
na luta contra a ditadura eram socialistas, mas nos unificávamos na
resistência contra a ditadura e sua barbárie. O que unificava nossos
inimigos? Eram fantoches dos monopólios e do imperialismo, agentes do
conservadorismo do latifúndio e da prepotência da burguesia.
Agora, isso
revelado, o que altera o fato de que houve um terrorismo de Estado que
de forma arbitrária, ilegal e imoral, usou um poder desproporcional
atingindo diretamente seus adversários, não como combatentes que eram e
que tinham legitimidade para sê-lo, mas aviltando-os em sua mais
elementar dignidade humana? Nós os combatíamos e queríamos derrubá-los, é
verdade. Eles nos combatiam e queriam nos aniquilar, é verdade. É isso
que se reduz ver as coisas por dois lados? Não, esta é a armadilha para a
reconciliação e o esquecimento.
Um lado
sequestrou, levou para porões e aparatos oficiais, arrancou unhas, deu
choques elétricos nos testículos, estuprou as mulheres na frente de seus
companheiros e filhos, quebrou ossos, nos jogou nus em celas imundas
cobertas de fezes, destruiu cientificamente nossos corpos e mentes, nos
assassinou e escondeu nossos corpos para garantir o sagrado direito de
propriedade e a continuidade da acumulação de capitais. Esta cicatriz
ainda dói nos corpos dos desaparecidos, nas mentes destruídas
aprisionadas nos corpos condenados a continuar vivendo, nas nossas
filhas e filhos que cresceram sem seus pais e mães, nas mães e pais
obrigados a viver sem seus filhos e não ter um túmulo onde chorar.
Nós sabíamos
porque lutávamos. Seus assalariados do terror sabiam porque nos
matavam? Eles repetiam para si mesmos que era para defender a pátria
quando chutavam nossos rostos com seus coturnos? Eles repetiam que era
para defender a família quando nos estupravam? Eles repetiam que era
para defender a democracia quando nos arrastavam à noite de olhos
vendados, sem mandato, sem processo e sem defesa, para ser assassinado
em um matagal ou aparato clandestino do exército?
Não, não
acho que seja possível reconciliação. Gosto de vê-los assustados quando
nossos meninos e meninas os perseguem pelas ruas e fazem com que
militares envergonhados tenham que entrar pela porta do fundo de seus
clubes sob vaias e ovos podres. Gosto de ver a história os colocando no
papel que lhes cabe: de algozes e assassinos. Não se trata de um
problema jurídico. A borracha da anistia não apaga minhas cicatrizes e a
memória da humanidade. Nós sobrevivemos a nossa derrota, vocês jamais
escaparão do sangue que encharca sua vitória.
Com Pablo Neruda gritamos, intransigentes e irreconciliáveis:
Nossos Inimigos (Canto Geral)
Aqui eles trouxeram os fuzis repletos
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.
Então, no lugar
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem do sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.
Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem do sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.
Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.
Para os que salpicaram a pátria de sangue,
peço castigo.
Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.
peço castigo.
Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.
Para o traidor que ascendeu sobre o crime,
peço castigo.
peço castigo.
Para o que deu a ordem de agonia,
peço castigo.
Para os que defenderam este crime,peço castigo.
peço castigo.
Não quero que me deem a mão
empapada de nosso sangue.
Peço castigo.
empapada de nosso sangue.
Peço castigo.
Não vos quero como embaixadores,
tampouco em casa tranquilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.
Quero castigo.
tampouco em casa tranquilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.
Quero castigo.
***
Mauro Iasi
é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.
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