A
trama do golpe: governador Carlos Lacerda (Guanabara), general Cordeiro
de Farias e Vernon Walters, adido militar norte-americano
Por Flavio Tavares de Lyra*
Decorridos 27 anos da saída dos militares do poder, ainda estão bem
presentes na sociedade brasileira as marcas deixadas por vinte anos de
governos autoritários e da repressão por eles patrocinada.
Ainda nos
dias presentes, militares da reserva e intelectuais conservadores buscam
convencer a opinião pública de que as realizações daqueles governos
favoreceram o desenvolvimento do país e que as atrocidades cometidas
contra trabalhadores, camponeses, estudantes e intelectuais fizeram
parte de uma “guerra justa” em defesa da pátria contra a ameaça
comunista.
Imbuídos dessa visão míope da realidade, chegam à situação absurda de
se mobilizarem para impedir que sejam esclarecidos episódios que
levaram à tortura e à morte de opositores, ainda hoje desaparecidos.
Acham pouco que os responsáveis diretos pelos atos anti-humanitários não
tenham sido julgados, graças a uma legislação espúria de anistia,
aprovada num contexto de liberdades restritas. Legislação que contraria
abertamente as regras de acordos internacionais de que o país é
signatário, pelo que está sujeito a sofrer penalidades de entidades
internacionais na área de direitos humanos.
Se aceitarmos que o conhecimento da história é indispensável à
construção do futuro de qualquer sociedade, pois nela residem os
alicerces sobre os quais devem ser erguidas as paredes dos novos
edifícios, não há como deixar de lado a necessidade de conhecer e julgar
os acontecimentos históricos, de modo a deles tirar as lições
necessárias sobre as boas realizações, mas também sobre os erros
cometidos.
A tese central que me proponho a defender é a de que os militares que
governaram o país durante vinte anos, graças à ideologia forjada
durante a guerra-fria, de luta contra a propagação do comunismo no
mundo, sob a liderança dos Estados Unidos (que os transformou em
instrumento de repressão aos movimentos populares internos)
equivocaram-se quanto à escolha dos reais inimigos que ameaçavam o
destino da Pátria naquela conjuntura.
Esses inimigos foram e continuam sendo: a) as grandes corporações internacionais e os países centrais aos quais pertencem e seus representantes internos, que usam de todos os meios para reduzir o grau de autonomia do país para desenvolver seus recursos produtivos; e b) os segmentos conservadores da classe proprietária interna, que temendo a organização política dos trabalhadores e a perda de seus privilégios, aliam-se ao primeiro segmento, contra as transformações em favor do desenvolvimento econômico e social do país.
Esses inimigos foram e continuam sendo: a) as grandes corporações internacionais e os países centrais aos quais pertencem e seus representantes internos, que usam de todos os meios para reduzir o grau de autonomia do país para desenvolver seus recursos produtivos; e b) os segmentos conservadores da classe proprietária interna, que temendo a organização política dos trabalhadores e a perda de seus privilégios, aliam-se ao primeiro segmento, contra as transformações em favor do desenvolvimento econômico e social do país.
É verdade que o país atravessava uma fase conturbada de sua história
política no início dos 60. Depois de um período de rápido crescimento
econômico durante o governo e JK, estava diante do desafio de realizar
importantes reformas institucionais para atender às demandas sociais
crescentes de uma população em rápido processo de urbanização, mas que
vivia em precárias condições tanto nas cidades quanto no meio rural. Os
frutos do desenvolvimento, até então colhidos, tinham ficado
concentrados na classe proprietária e nos segmentos mais instruídos da
classe média ou transferidos para o exterior em favor do capital
estrangeiro que espoliava o país, crescentemente dependente do
financiamento externo para avançar no processo desenvolvimento.
A região Nordeste, onde viviam 30% da população, vivia o
aprofundamento de uma grave crise social com o crescimento da miséria e a
perda de substância econômica face à competição do Centro-Sul. A
criação da Sudene e a mudança no enfoque para o tratamento do problema
regional, agora voltado para reformar a estrutura agrária, incentivar a
indústria e capacitar especialistas em técnicas de desenvolvimento,
prejudicava os interesses das oligarquias regionais, acostumadas a se
apropriar das verbas federais em proveito próprio e a manter os
trabalhadores na miséria.
Por seu turno, o aparecimento de lideranças comprometidas com os
interesses populares, como são os casos de Francisco Julião (criador e
impulsionador da Ligas Camponesas), e Miguel Arraes (eleito governador
de Pernambuco, apoiador da sindicalização de trabalhadores rurais e
organização de trabalhadores urbanos) exacerbava os ânimos populares e
as reivindicações de mudanças na economia e nas políticas sociais.
Nesse contexto é que o governo norte-americano introduziu no Nordeste
o programa Aliança para o Progresso, sob cujo objetivo formal —
favorecer o desenvolvimento da região — estava embutido o propósito de
mobilizar e influenciar as lideranças regionais contra as organizações
de trabalhadores e os movimentos sociais.
Vejamos o que disse Celso Furtado (**) a respeito: “Surpreendeu-me
que os membros da missão Borman, que certamente haviam sido amplamente
assessorados por agentes da CIA, não compreendessem quão
contraproducente seria encher o Nordeste de tabuletas da Aliança para o
Progresso, alardeando pequenas obras de fachada. E principalmente não
percebessem que, enveredando por esse caminho, a Sudene perderia
credibilidade, o seu principal capital, e atrairia contra si os ruidosos
movimentos da opinião progressista. (…) Um relatório da subcomissão de
Relações Exteriores da Câmara de Deputados americana (…) deixa bem claro
que as autoridades americanas se consideravam com o direito de
contrapor-se e sobrepor-se às autoridades brasileiras (no caso, a
Sudene) para alcançar o objetivo de ‘deter a subversão no hemisfério’”.
Com o avanço da sindicalização dos trabalhadores rurais, a direita
regional, contando com o apoio dos Estados Unidos, através da Aliança
para o Progresso e seus agentes infiltrados em toda a região, passaram
abertamente a preparar e defender o golpe contra o governo de Jango.
Segundo Celso Furtado, (**) :.. “o número de técnicos da missão
americana chegava a 133… e os pedidos de visto para cidadãos
norte-americanos com destino ao Nordeste cresceram brutalmente.”
Enquanto isso, no plano nacional cresciam as demandas por mudanças
econômicas e sociais. Nesse contexto, antes das eleições parlamentares
de 1962, Celso Furtado redigira, a pedido de João Goulart, um manifesto
destinado a mobilizar os políticos para a realização das “reformas de
base”, consideradas essenciais para melhorar as condições de vida da
população e sentar as bases para o avanço do processo de
desenvolvimento. O conteúdo desse manifesto dá uma clara idéia dos temas
que mobilizavam a vida política do país.
Conforme Celso Furtado (**): “A crise das instituições, pensava eu,
abrira um processo cujas potencialidades deveriam ser exploradas (…)
Sugeri ao presidente que fizesse uma tentativa para unir os principais
líderes progressistas (…) A ideia era de que cada candidato ao
parlamento fosse convidado por esses líderes a assiná-lo e, a fortiori, cumpri-lo (…) Daí surgiria uma Frente Parlamentar pelas Reformas de Base”.
O programa das reformas, a ser cumprido nos primeiros seis meses no
novo parlamento seria um conjunto de reformas: a) Agrária; b) Fiscal; c)
Administrativa; d) Universitária; Bancária; e Estatuto Capital
Estrangeiro. Essas reformas mexiam com fortes interesses da oligarquia
latifundiária e empresarial interna e dos investidores estrangeiros e
buscavam melhorar as condições de vida dos trabalhadores urbanos e
rurais; fortalecer a capacidade administrativa do governo; ampliar a
formação de recursos humanos; aumentar, mobilizar e orientar a poupança
interna para o investimento; e exercer maior controle sobre a entrada, o
repatriamento, a destinação e a remuneração do capital estrangeiro.
Segundo Celso Furtado, o comandante do Exército, general Osvino
Alves, ao ler a minuta do manifesto achou que: “ele está ótimo para ser
usado num golpe”. É provável que a maior parte dos militares não tivesse
a menor ideia das razões reais em função das quais estava sendo
organizado o golpe militar. Estavam sim, movidos principalmente, pelo
propósito de evitar que o país caísse nas mãos dos comunistas.
Nesse contexto, os militares aliaram-se aos segmentos mais
retrógrados da elite latifundiária-empresarial e da igreja católica,
apoiados pela grande imprensa e pelo governo dos Estados Unidos, e
derrubaram o governo. Basta dizer que o movimento de 1964 foi deflagrado
em Minas, sob a liderança do banqueiro Magalhães Pinto, posteriormente
ministro das Relações Exteriores, cujo Banco Nacional, viria
posteriormente à falência eivado de fraudes.
O general Vernon Walters, uma espécie de embaixador de fato dos
Estados Unidos no Brasil, foi o grande articulador dos militares
brasileiros para a realização do golpe de 1964. E o IBAD, de triste
memória, que só tinha de democrático o nome, foi a organização utilizada
para financiar candidatos às eleições e campanhas contra o governo,
contando com recursos, provavelmente da CIA.
No próximo texto, examinarei as realizações dos governos militares
nos planos político, econômico e social, para mostrar o papel que
exerceram na destruição das organizações de trabalhadores e movimentos
sociais, nas distorções que contribuíram para gerar na estrutura
econômica do país fortes desequilíbrios, aumento da dependência externa,
e piora do quadro social. Com essa atuação, criaram as condições para
os anos de estagnação econômica e instabilidade inflacionária da década
de 80, e para a submissão do país nos anos 90 ao pensamento neoliberal.
Em síntese, caberia dizer que os militares, ainda que bem
intencionados, escolheram (ou foram escolhidos) os parceiros errados
para o cumprimento da missão que lhes competia: defender a soberania
nacional e fortalecer sua base econômica e social.
–Flávio Tavares de Lyra é doutor em Economia pela Unicamp e foi pesquisador do IPEA
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