Legislação sancionada pela presidenta Dilma tornou-se o
principal assunto de dois eventos que discutiram governança e direitos
dos usuários na rede. Para muitos ativistas, luta apenas começou
Na semana que passou o Brasil atraiu a atenção do mundo. A sanção do
Marco Civil da Internet na quarta-feira (23) pela presidenta Dilma
durante o NETmundial, evento realizado em São Paulo que
discutiu princípios da governança global da rede, foi considerado por
muitos um capítulo histórico na luta pela garantia de princípios básicos
como liberdade de expressão e privacidade. Figuras como Tim Berners-Lee, criador do World Wide Web, consideram esta a legislação mais avançada do mundo sobre o tema.
Como não poderia deixar de ser, a lei marcou os debates não apenas do NET Mundial, mas também esteve presente nos debates da ArenaNET
Mundial, evento paralelo que contou com a participação de ativistas e
organizações da sociedade civil do Brasil e de outros países. Elaborado
em 2011 após um processo de consulta pública que envolveu a sociedade
civil, acadêmicos e militantes da internet livre, o texto da lei –
organizado em três princípios básicos, neutralidade, privacidade e
liberdade de expressão – tramitou na Câmara dos Deputados desde então,
até ser aprovado no último mês de março e encaminhado para a aprovação
do Senado.
A legislação tem como principal objetivo a fixação de diretrizes para
proteger os direitos do cidadão nas redes – constantemente ameaçados
por uma série de práticas do mercado – e representa, para os estudiosos,
militantes e profissionais da área que estiveram no encontro no Centro
Cultural São Paulo, um marco histórico para o mundo e para o Brasil, que
assume, a partir do Marco Civil da Internet, o protagonismo nas
iniciativas e debates por uma internet livre. “Estamos falando de uma
lei sofisticada, vanguardista, que prevê princípios como neutralidade e
privacidade, mas também multissetorialismo, que garante que a internet
seja governada por todos os setores, desde o governo até a sociedade.
Uma vitória do Marco Civil é uma vitória não só do Brasil, mas de todas
as democracias. Os Estados Unidos perderam um terreno político muito
grande com revelações do Snowden. A fala da presidenta Dilma na ONU
sobre espionagem fez a responsabilidade sobre a regulação da rede cair
sobre as mãos do Brasil. A internet tem uma relação direta com a
democracia. Ao garantir uma internet livre nós estamos reforçando os
pilares democráticos do nosso país”, afirmou Ronaldo Lemos, advogado e
acadêmico especializado em propriedade intelectual, em sua fala na
primeira mesa do ArenaNET Mundial.
Claudia Melo, diretora de Tecnologia da ThoughtWorks Brasil, durante o
debate sobre governança na era da internet, também enalteceu a
sofisticação das diretrizes que compõem o texto do Marco Civil. “Temos a
legislação mais progressista do mundo na área de internet. Temos que
valorizar o trabalho de pessoas que se dedicaram integralmente à causa.
Espero que essa reunião não acabe aqui, mas que seja o primeiro passo de
uma politização.” O ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência,
Gilberto Carvalho, foi pelo mesmo caminho de Claudia Melo e, em sua fala
no debate sobre novas formas de participação social em rede, destacou a
importância de manter a mobilização viva em torno da governança da
internet mesmo após a aprovação da lei. “Não façamos da aprovação do
Marco Civil da Internet apenas uma comemoração, façamos da data de hoje
uma entrega sem limites da causa da democracia e da mudança do Estado
brasileiro, que é o nosso sonho e nossa necessidade”, afirmou.
Julian Assange, jornalista e
criador da rede WikiLeaks, participou via Skype de uma das mesas de
debate do encontro Vivendo em asilo na embaixada do Equador em Londres
desde 2012, o ciberativista falou que as deficiências que existem no
texto não minimizam a conquista do Brasil para a internet como um todo.
“Sei que houve concessões para a aprovação, mas acho, ainda assim, que é
um passo importante estabelecer isto em um país tão grande como o
Brasil, que está encontrando o seu caminho no mundo”, afirmou,
adicionando ainda que será necessária pressão política para que os
princípios do projeto de lei sejam colocados em prática.
Governança da internet
A aprovação do projeto de lei do Marco Civil da Internet no Senado e a
sanção da presidenta Dilma Rousseff representam uma primeira iniciativa
concreta no país para a governança na rede, debatida no NETMundial e na
ArenaNET Mundial como uma necessidade essencial para que as corporações
não dominem o ambiente virtual em detrimento dos direitos da sociedade
civil na rede.
Durante o encontro no Centro
Cultural São Paulo, o ativista digital Marcelo Branco lembrou que o
Brasil está dando um passo à frente na governança em relação aos outros
governos do mundo ao aprovar a nova legislação e promover ambientes como
o NETMundial e o ArenaNET Mundial, mas ressaltou que o debate acerca do
tema só foi viabilizado a partir das revelações do ex-agente da NSA,
Edward Snowden. “Esse processo, de discutir governança na internet, era
difícil de avançar. Só avançou após a prova de espionagem no
Brasil. O escândalo da espionagem do governo estadunidense mudou esse
cenário”, lembrou.
No mesmo debate em que Marcelo Branco lembrou a participação de
Snowden, estava presente Prabir Purkayasthap, presidente do Centro de
Tecnologia e Desenvolvimento da Índia. O indiano chamou a atenção para a
necessidade de uma governança na rede que reforce o seu caráter livre e
democrático. Por meio de uma comparação simples, Purkayasthap ilustrou
como a não governança da internet pode comprometer o ambiente virtual.
“Venho da Índia, que foi colônia britânica por que o Reino Unido
dominava os mares. Hoje temos quem domine a internet e por isso a estão
colonizando. Lutar contra a vigilância é lutar por liberdade e contra um
novo tipo de colonialismo. Temos que entender que a internet é o
futuro. Temos que criar caminhos para determinar quem vai controlar: nós
ou as corporações”. Julian Assange, em sua participação, também
reforçou a ideia de que a espionagem é uma nova forma de colonização.
“Os EUA têm sido colonialistas na internet e reconhecem a ameaça
brasileira nesse campo”, afirmou, referindo-se ao papel de protagonista
que o país vem adotando ao encabeçar as discussões sobre o futuro da
internet.
A Secretaria-Geral da Presidência da República realizou uma consulta
pública online, entre os dias 20 de março e 17 de abril, para que a
sociedade civil contribuísse com sugestões para uma internet mais livre e
participativa. O resultado foi utilizado para compor uma carta de
princípios para web que, elaborada por meio das sugestões da sociedade
civil e dos debates entre os chefes de Estado, servirá de referência
para legislações sobre o uso da rede em todo o mundo.
Na carta, concluída ao término do NETMundial, foram estabelecidos
seis princípios para a rede, entre eles a liberdade de expressão e de
associação, acessibilidade, liberdade de acesso à informação e direito à
privacidade, em uma tentativa de limitar a prática de espionagem, que
se utiliza da coleta de dados pessoais dos usuários da rede. Virgilio
Almeida, coordenador do Comitê Gestor da Internet (CGI), participou da
última mesa do ArenaNET Mundial, por meio de um link ao vivo, quando
afirmou que o consenso do encontro foi extremamente positivo. “Este
processo de chegarmos a um documento que agrade a mais de 90 países,
representantes da sociedade civil, empresas, academia, não foi uma
tarefa fácil. Mas tivemos um longo processo para sua aprovação. O mais
interessante é que foi feito tudo em salas abertas a todos os
participantes. Foi um processo muito claro, inovador”, avaliou.
“O documento não é perfeito, não agrada a todos, mas representa um
avanço na governança global da internet. Se não agradou a todos, agradou
a 99%, é um documento que indica um novo caminho. E a ArenaNET Mundial
foi muito importante. Queria agradecer por esse trabalho por que
popularizou a questão da governança da internet. O Brasil como um todo
avançou e a comunidade global também”, disse Almeida. O documento final,
sobre governança e futuro da internet, pode ser conferido aqui.
Vigilância na rede
Durante os debates realizados no ArenaNET Mundial, a ideia de que foi
o escândalo da espionagem norte-americana que trouxe o debate sobre
vigilância na rede ao país era praticamente unânime entre os que estavam
presentes no encontro. A pressão do governo e da sociedade civil pela
aprovação do Marco Civil da Internet e a realização de um encontro como o
NETMundial ilustram, de maneira clara, as tentativas de acabar com a
retenção de dados de usuários na rede e sua utilização para fins
comerciais, políticos ou econômicos.
A NSA, órgão de inteligência do governo norte-americano, representa
uma das principais forças que se utilizam da vigilância sob o argumento
de proteção. Purkayastha, no entanto, contesta o suposto objetivo.
“Trata-se de espionagem em massa para controlar o mundo. Essa vigilância
não é para proteção dos EUA, mas por motivos econômicos, comerciais e
de poder”, afirmou.
E é por isso que nos debates em que participou do encontro, o
sociólogo Sérgio Amadeu convocou a todos a se utilizar de um caminho
diferente na comunicação: a criptografia. “Se quer dar prejuízo à NSA,
pergunte-me como. Quando for mandar mensagem pra mãe, pra namorada,
mande criptografada! Vamos aumentar o custo de processamento de dados da
NSA que, uma hora, eles vão pedir água”, disse o ativista do software
livre e membro do Comitê Gestor da Internet.
Marcelo Branco, ao tocar no assunto, lembrou que,apesar de a
espionagem em massa da NSA ser algo já conhecido pelo mundo todo, a
maior parte da vigilância que existe na rede é feita pelas corporações.
“É incomparável a espionagem feita pelas corporações em relação à
espionagem feita pelos governos”, afirmou. Trata-se do ponto que também
foi contemplado na fala de Sérgio Amadeu. “As redes sociais guardam os
dados por que esses dados são vendidos, processados e manipulados. São
dados que têm enorme valor econômico nessa economia da informação. A
espionagem não é feita somente por pessoas ou governos, é feita através
das corporações que nós, prazerosamente, nos associamos. Os dados que
passamos para essas corporações não ficam só com essas corporações. Elas
entregam dados não só com finalidades econômicas, mas finalidades
também geoestratégicas. Nós temos que fazer de tudo para colocar a
privacidade acima do ganho econômico das corporações”, alertou o
sociólogo. “Precisamos de um tratado mundial contra a transformação do
ser humano em alvo militar, que é o que o vigilantismo faz”, completou.
Promover um encontro que discuta a governança da internet como um
meio de torná-la um ambiente mais livre e que preze pela privacidade dos
usuários foi um grande passo encabeçado pelo governo brasileiro, mas é
insuficiente se não intervier na situação de quem milita pela causa. É o
que apontou a jornalista Natália Viana, representante da rede WikiLeaks
no Brasil. “É impossível falar de vigilância sem falar no Assange, no
Snowden, no David Miranda… Se o governo brasileiro quer liderar o debate
sobre governança na internet, tem a responsabilidade moral de intervir
na acusação dessas pessoas. Vejo o Brasil como um candidato a mediador.
Não existe discussão sobre vigilância, liberdade na rede, sem a
discussão sobre a criminalizarão do jornalismo independente. Presidenta
Dilma, ofereça asilo a Edward Snowden, e ajude no impasse entre Reino
Unido e Equador para que Assange goze do asilo”, pediu a jornalista.
Perspectivas para o futuro
A discussão sobre o futuro da internet no mundo
inclui, sobretudo, a questão da neutralidade. Os ativistas e acadêmicos
que pensam e discutem a comunicação no ciberespaço defendem a igualdade
de tratamento das informações em fluxo na rede, de forma que trafeguem
sem hierarquização de conteúdo – determinada por interesses comerciais –
ou discrepância de velocidade. “Neutralidade significa universalidade,
que significa diversidade cultural. Tudo isso quer dizer que temos que
ter em foco os direitos humanos. A internet não existe para o benefício
de nenhum grupo econômico ou político, mas para o uso de toda a
humanidade, ao redor do mundo”, pontua Frank La Rue, relator da ONU para
o direito à liberdade de expressão.
O engenheiro Demi Getschko, organizador do NETmundial e considerado
um dos pais da internet no Brasil, explica porque a neutralidade é
fundamental. “A internet nasce livre, neutra. Se você ameaça a
neutralidade, ameaça uma de suas características originais.” Contemplado
no Marco Civil da Internet, o princípio da neutralidade não pode ser
assegurado, no entanto, na carta sobre governança no âmbito global. Isto
por que houve discordância entre o Brasil, que defende que a
acessibilidade à rede seja neutra, e outros países que preferem não
adotar o conceito, como os Estados Unidos.
Há um consenso de que a lei sancionada por Dilma é um importante
avanço para a democratização da rede. Por outro lado, existe também a
concordância de que a criação de uma norma não assegura seu cumprimento –
é necessário que haja pressão popular para cobrar a aplicação do que
consta no papel. Esta é a opinião de Julian Assange. “Quando aprovamos
uma legislação, sempre há o risco de que ela seja corrompida com o
tempo. Se a pressão das grandes corporações e a pressão dos EUA
continuarem, essa legislação será corrompida. A única maneira de impedir
isso é com o nosso trabalho, nossa solidariedade e nossa
pressão. Precisamos da criptografia, do software livre. Podemos
construir um sistema diferente. Não vamos parar de lutar, e esse é o
momento.”
Relator do projeto do Marco Civil na Câmara, o deputado Alessandro
Molon (PT-RJ) cita ainda outros desafios, além da fiscalização. O maior
deles é a universalização do acesso à rede. “Temos 100 milhões de
internautas no Brasil, mas nossa população é de 200 milhões de pessoas.
Queremos para os outros 100 internet de qualidade, banda larga, para que
possam compartilhar o que descobrem, criam, e o que ainda querem
descobrir”, afirma. Além da inclusão digital, o deputado menciona mais
três pontos que considera centrais para a democratização da internet.
“Temos que avançar na rede de proteção de dados pessoais. Precisamos
estimular o software livre aqui no Brasil – essa é uma outra batalha.
Temos que fortalecer essa instância que é um exemplo para o mundo, o CGI
[Comitê Gestor da Internet]. Ele já existe por decreto e agora está
previsto em lei, no Marco Civil”, declara.
A institucionalização da lógica de construção coletiva que se dá no
âmbito da rede também é posta como uma das necessidades daqui em diante.
“Temos que descobrir o que fazer quando a informação cai na caixa preta
das instituições. A gente tem que criar formas de lidar com esse
fechamento e essa concentração de poder. Temos que ter um processo
de institucionalização para que não se perca a efervescência”, afirma
Daniela B. Silva, ativista hacker.
Para ela, a sociedade brasileira precisa enxergar definitivamente
como sua a luta por uma internet livre. Apenas desta forma a questão não
ficará sujeita à vontade e às tendências das diferentes figuras que
transitam pelo poder. “Temos, felizmente, um governo que tem uma visão
progressista em relação à internet, mas não temos um Estado
progressista. Precisamos colocar essa agenda pra andar”, aponta a
ativista.
Gilberto Carvalho também traz em seu discurso a ideia de que a
aprovação do Marco Civil e seu processo de construção não se limitam à
esfera da internet: são uma oportunidade de transformação do próprio
Estado. “Esse momento marca uma nova etapa da construção da democracia
no Brasil e no mundo. Quanto mais a tecnologia permitir que se rompa
barreiras históricas de acesso, mais nós teremos a possibilidade de
mudar em conteúdo a nossa democracia e romper barreiras, até agora,
cuidadosamente mantidas.”
Foto de capa: Eduardo Aigner
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