O PERIGO DAS SEMENTES
“Entrei em um ciclo vicioso. Cada vez mais comida, cada vez mais
sorrisos, mais conversas e mais sementes. Sinto que estou perdendo o
controle das coisas”
Crônica de Ricardo Philippsen, no blog do coletivo Bio Wit
Tudo começou com uma ideia que parecia inofensiva: A partir daquele
dia, na pequena hortinha no fundo do quintal, eu deixaria as hortaliças
completarem seu ciclo de vida. Em outras palavras, deixaria elas
produzirem sementes. Esperava assim não precisar comprar mudas ou
sementes com tanta frequência.
Eu não fazia ideia do que aconteceria depois disso.
No início fiquei fascinado, descobri flores que eu jamais tinha
imaginado existirem, entrei em extase quando vi desabrochar a primeira
flor da chicória, de um lilás exuberante ela passou a enfeitar a minha
horta. As primeiras sementes vieram, amadureceram, foram colhidas e
semeadas.
Ah se eu soubesse…
Tudo parecia bem, as mudinhas cresceram como esperado mas algo que eu
não tinha previsto começou a acontecer: nem todas as sementes foram
colhidas, algumas simplesmente se espalharam desordenadamente pela
horta, caíram em canteiros que não lhes tinham sido destinados e foram
levadas por pássaros para lugares ainda mais indevidos.
Acabei ficando com dó de arrancar as plantas, não achei que as consequências seriam tão grandes.
Com o passar dos meses fui perdendo o controle, a horta ficou
bagunçada. Alface nascia do lado do tomate, as cenouras brotavam por
toda parte, framboesas e physalis cresciam ao pé de outras árvores e os
canteiros de flores da minha mãe agora estavam infestados de comida.
Talvez eu devesse ter parado mas acabei me acostumando com a ideia e deixei a natureza seguir o seu curso.
Com o tempo não era mais apenas a bagunça, eu tinha um outro
problema, a horta tinha se alastrado por todo o pátio. O pátio até que
ficou bonito, começou a chamar a atenção, e para não fazer feio
começamos a caprichar cada vez mais, eu não poderia admitir pros
vizinhos que eu não estava no controle, comecei então, eu mesmo, a fazer
canteiros.
Mais um problema. A produção ficou grande demais, e como todo mundo
sabe, é pecado jogar comida fora. A solução, ou assim eu pensava, foi
dar o excedente aos vizinhos. Ruibarbo para um, espinafre para o outro e
em pouco tempo eu tinha as crianças dos vizinhos grudados na cerca
pedindo morangos. Dias depois observei uma dessas crianças andar de um
lado para o outro com uma enxada na mão, achando que aquilo era algo a
ser copiado.
E não foi só isso, os vizinhos não entenderam nada. Ao invés de
perceber que eu estava tentando me livrar das sobras eles ficaram
felizes, vinham para a cerca conversar e insistiam em retribuir. Quando
não era um convite para o café, um pacote de biscoito caseiro ou um
pedaço de torta das frutas da minha horta, era um casaco que tava
sobrando ou alguma outra coisa que eu talvez pudesse usar.
Para me livrar das folhas que já não serviam para consumo eu jogava
elas por cima da cerca para as galinhas de um dos vizinhos. Em pouco
tempo começaram a chegar os ovos para retribuir.
Um amigo resolveu agradecer doando esterco das suas vacas. Ovos valem
mais do que restos de folhas, esterco mais do que as poucas verduras,
logo, eu tenho que dar mais verduras, mas e depois? Ganho mais esterco,
minha horta produz mais e eu tenho que achar outra pessoa para quem dar
mais hortaliças.
Entrei em um ciclo vicioso. Cada vez mais comida, cada vez mais
sorrisos, mais conversas e mais sementes. Já não preciso mais ir ao
mercado comprar hortaliças, faz anos que eu ganho tanta roupa que não
posso mais ir ao shoping comprar minhas próprias, passo tanto tempo na
horta que mal sobra tempo para a internet, nem lembro quando foi a
última vez que eu assisti televisão.
Sinto que eu estou perdendo o controle das coisas.
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