Ocupantes
do Planalto e do Parlamento têm habitualmente respondido aos limites do
atual arranjo institucional com pragmatismo político que, não raro, se
deteriora em barganhas inaceitáveis
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"A presidente quis jogar a
crise no colo do Congresso.” A recente irritação do presidente do
Senado, Renan Calheiros, contra Dilma Rousseff sintetiza as tensões que
vêm marcando a vida política brasileira pós-manifestações de junho.
Motivado pela reação da chefe do Executivo à pressão das ruas, o
episódio pode ajudar a compreender a preocupante insatisfação dos
brasileiros com a classe política. Pode também jogar luz sobre a lógica
que informa os recentes conflitos entre poderes. Na raiz de ambos os
fenômenos parece estar uma divergência de fundo sobre o próprio sentido
da democracia no Brasil hoje.
O amuo de Calheiros, longe de ser pontual, revela um desconforto mais
amplo nas relações entre Legislativo e Executivo. O Congresso dá mostras
de se ressentir daquilo que vê como perda relativa de poder político e
de prestígio social decorrente dos avanços do Planalto sobre sua
prerrogativa de legislar. Cada vez mais, o Parlamento tem tido de se
ocupar antes em reagir a propostas normativas do Executivo do que em
elaborar projetos próprios.
Como já apontado diversas vezes,
essa migração das principais iniciativas legislativas para o Executivo
tem se dado sobretudo pela utilização recorrente de medidas provisórias
(MPs) pela Presidência da República. Só no governo Dilma foram editadas,
até agora, mais de uma centena delas. Nesse ponto, a presidente repete
as gestões anteriores: também FHC e Lula se valeram prodigamente das
MPs, enviando, em média, cerca de três para avaliação do Congresso a
cada mês. Para além dos números, a relevância substantiva dos temas das
MPs (orçamento, infraestrutura, educação, saúde...) reforça a percepção
do domínio do Executivo sobre a pauta política do país, bem como da
retração do espaço do Legislativo.
O fenômeno do esgarçamento da
relevância legislativa do Parlamento não é exclusividade brasileira, é
certo. Democracias presidencialistas como a dos Estados Unidos, por
exemplo, têm exibido o mesmo padrão de redefinição institucional. Também
lá, o Legislativo tem tipicamente negociado com o Executivo as
condições para a aprovação dos projetos que dele recebe, mais do que
avançado agendas próprias.
No Brasil, entretanto, essa negociação
se dá em um contexto institucional muito específico, celebremente
definido por Sérgio Abranches como “presidencialismo de coalizão”. O
chefe do Executivo, cujo partido em regra não consegue maioria
parlamentar suficiente para pôr em prática sua plataforma política,
precisa se unir, no Congresso, a outras agremiações partidárias –
frequentemente de perfil ideológico bastante diverso. Esse desenho
institucional, que força a negociação constante entre os poderes e dá ao
Legislativo a palavra final para a aprovação de projetos, nutre muitas
vezes percepções do Congresso como indefensável obstáculo à
governabilidade. A proposta de minirreforma constitucional avançada pelo
Executivo incorporava esse diagnóstico negativo.
Ocupantes do Planalto e do Parlamento têm habitualmente respondido aos
limites desse arranjo institucional com pragmatismo político que, não
raro, se deteriora em barganhas inaceitáveis. As tentações que emergem
da busca de apoio político sólido partindo de uma base partidária
movediça foram notoriamente ilustradas pelos episódios que culminaram na
Ação Penal (AP) 470. O julgamento histórico reuniu na mesma narrativa
Judiciário, Executivo e Legislativo, oferecendo à opinião pública uma
oportunidade única de observar os meandros da relação entre os poderes.
Para além do maciço repúdio popular à
corrupção, as reações fortemente antagônicas às condenações resultantes
– da celebração efusiva à desqualificação do Judiciário como
ideologicamente comprometido – evidenciam a coexistência, no Brasil, de
entendimentos distintos sobre o sentido de vida democrática e de seu
valor intrínseco.
Como observa Alain Touraine, o discurso sobre a democracia pode
privilegiar aspectos diferentes do conceito. Logo após períodos
ditatoriais, a ênfase tende a cair sobre a democracia como regime que
garante a liberdade e a diferença. Em regimes democráticos mais
consolidados, entretanto, é frequente criticar-se a liberdade jurídica
como insuficiente para eliminar a desigualdade econômica e a exclusão
social. Nesses casos, a ênfase costuma recair sobre a democracia como
sistema que deve promover a igualdade entre os cidadãos.
É possível arguir que as duas leituras, com variações pontuais, venham
balizando o debate político brasileiro ao longo das últimas décadas. A
Constituição de 1988 abriga generosamente ambas as dimensões de valores.
Historicamente, entretanto, elas se alternaram como elemento
prioritário para a mobilização popular. Superadas as restrições à
liberdade e à diferença características do período militar, ganhou
compreensível primazia em nosso discurso político a perspectiva que
acentua o objetivo democrático da igualdade. O veículo privilegiado para
promovê-la são, como se sabe, as políticas públicas, cuja consecução
demanda agilidade decisória.
Decorre daí o perigo da impaciência de alguns setores com o
funcionamento daquelas instâncias cuja lógica é dialogal, como são o
Parlamento e o Judiciário. A América Latina tem colecionado exemplos
dessa exasperação do Executivo com os outros poderes, apresentados como
contrários a interesses populares que seriam defendidos precipuamente
pelas políticas da administração. Essa diferença em tempos e dinâmicas,
no entanto, é essencial para a democracia. Legitimamente praticada, ela
protege a pluralidade de ideias, aperfeiçoa a formulação de políticas e
traça, no limite, a linha que separa modos democráticos e autoritários
de promover a igualdade. O desafio das democracias é conciliar esses
valores, garantindo eficiência de gestão e respeito à divergência.
O maniqueísmo tacanho que tem prevalecido em nosso debate político
arrisca fazer esquecer que tais valores são complementares, não
excludentes, e devem ser conciliados. Produzir tal conciliação, sempre
difícil e provisória, é tarefa primordial das instituições. Quando são
incapazes de fazê-lo, a democracia adoece.
As manifestações do meio do ano são
índice claro de que o povo brasileiro considera insatisfatória a forma
como seus representantes enfrentam essa tarefa. Elas condenam a aparente
desconexão que eles têm com as demandas complexas da heterogênea
sociedade brasileira. O resultado perigoso é o desgaste generalizado das
instituições de governo e da crença no valor da política, fundamentos
da democracia.
Os poderes da República têm por
função promover e defender exatamente essas bases da vivência
democrática. Seus conflitos recentes preocupam não pelas tensões que
revelam, mas porque parecem muitas vezes motivados pela defesa de
agendas e interesses cuja articulação com o bem coletivo nem sempre é
evidente. Preocupam porque parecem contribuir muito pouco para a tarefa
urgente de revitalizar a democracia brasileira.
José Garcez Ghirard
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Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
Conflitos entre poderes e visões de democracia no Brasil
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