Em
1903, TRaul Pederneiras ilustra a elegância da carnavalesca erotizada,
oposta à brutalidade do folião de rua. Foto: reprodução do livro Ecos da
Folia
O Brasil é o país da sobremesa, decretou certa vez Oswald de Andrade,
um escritor pouco lido e ainda menos compreendido onde nasceu. Neste
país colonizado por nhonhôs a partir do -suor de escravos negros e de
índios, onde a justiça e os direitos de cidadão sofrem de risonha
ausência, há muito o pão foi substituído pelos brioches, ainda que
aqueles nascidos da melancolia, algo que nem Maria Antonieta poderia
supor. Rainha consorte da França até que a guilhotina cortasse sua
emblemática cabeça, em 1789, ela antecipou as ideias do escritor
modernista ao sugerir aos pobres, em uma frase famosa, que substituíssem
a essência farinácea por uma doce e cara ilusão. A monarca, que abusava
das festas e dos adereços, guarda correspondência com este país onde a
desigualdade é um Momo para sempre entronado. O Brasil adora Maria
Antonieta, algo facilmente observável nos dias de folia, quando as
escolas de samba copiam suas vestes e seu gosto excessivo. Se assim é,
por que não votar nela como madrinha eterna de nosso carnaval? Ou,
melhor dizendo, de tantos entre nossos carnavais?
Naturalmente, a concorrência não seria fácil para a soberana. A cada
ano, a festa multiplica-se em musas e sentidos, causando uma grande
confusão na cabeça de seus intérpretes. O historiador Elias Thomé Saliba
chama esse estado de coisas de “desordem interpretativa”. Ele já notou:
“No carnaval, como no futebol, ninguém passa por perto sem dar o seu
palpite inteligente”. A doença da interpretação nos acomete desde que o
Brasil é Brasil. Ao acaso, é possível citar Olavo Bilac, pontificando
sobre a folia com as vestes inconscientes de um folião, ele que foi o
príncipe dos poetas brasileiros: “Como enfim a sem-vergonhice está no
fundo da natureza humana e como não há lodo que não goste de aparecer ao
sol, inventou-se o carnaval, três dias libérrimos, 72 horas descaradas
de sorte a assentar que todos os vícios podem andar à solta, cabriolando
na praça pública, de garrafa desarrolhada na mão e perna leve no pincho
do can-can. E o que é o carnaval senão uma volta temporária aos tempos
dos costumes bárbaros?”
A ironia na apreciação de Bilac é que, ao dizer
isso, ele investiu contra a folia esganiçada, suja e violenta do
populacho, servindo-se, para isso, de seus modos de burguês
desenvolvido, aquele representado pelo próprio carnaval com o passar do
tempo. É uma festa de reis, rainhas e madrinhas abiloladas. E as
madrinhas de cada festa pouco a pouco se tornam não aquelas que sambam
nas pistas, até porque o samba deu lugar à marchinha nos desfiles,
segundo bem observou o historiador José Ramos Tinhorão em um texto
ácido, na contramão do pensamento de seu doce país.
As madrinhas se
transformaram em símbolos das nossas incongruências.
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