A Justiça brasileira e seus magistrados nunca alcançaram, após a
ditadura, tamanho descrédito. E isso representa um enorme mal para um
Estado que busca ser igualitário e cumpridor do contrato social, ou
melhor, de suas metas constitucionais fundamentais. Nos Estados
Democráticos de Direito, Brasil incluído, é vedada como regra a Justiça
privada, de mão própria. Assim, distribuir Justiça tornou-se, no devido
processo, monopólio do Estado e uma de suas funções essenciais. E são
fornecidos aos seus órgãos garantias para atuar com imparcialidade, sem
prejuízo de obrigações e decência estabelecidas em lei orgânica para
magistrados. Formalmente, temos esse arcabouço, mas ele é ineficaz.
No Brasil republicano, a Justiça sempre foi morosa e até a
Constituição de 1988 formada por magistrados encastelados e distantes do
dia a dia dos jurisdicionados. Depois, abriu-se com a intenção de
tornar-se “cidadã”, mas repetiu vícios, fortaleceu o corporativismo,
qualificou-se a injustiça pelo atraso na solução dos conflitos e, no
âmbito criminal, virou o modelo ideal para manter impunes poderosos e
potentes.
Nossa Justiça, como um todo e a incluir o comportamento não só
funcional dos seus magistrados, não passa ao cidadão comum a imagem de
imparcialidade. O elenco de decisões traumáticas e das ações prepotentes
e insensíveis de magistrados é incontável.
Dias atrás, magistrados federais, da Justiça Federal comum e da
Justiça do Trabalho, promoveram greve, com denegação de Justiça pelo
período de interrupção, para pressionar por reajustes salariais. Os
serventuários da Justiça, pelos seus órgãos classistas, também
organizaram um movimento paredista, até por ganharem muito menos que os
magistrados.
Os juízes, para justificar a greve, lembram da garantia estabelecida
na Constituição da República relativa à irredutibilidade dos
vencimentos. Tal pressão sobre os dois outros poderes deve-se ao fato de
o ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
ter enviado ao Legislativo um anteprojeto de lei sobre a revisão dos
vencimentos da magistratura, a saltar de brutos 26.723 reais para
30.675.
Ineficaz
e corporativista, justiça brasileira não passa ao cidadão comum a
imagem de imparcialidade .
A novidade do projeto de Peluso prende-se à possibilidade futura –
por meio de ato administrativo do próprio Judiciário – de reajustes
automáticos para compor perdas inflacionárias. Com isso, pretende-se
ressuscitar em prol de todos os magistrados, da ativa e aposentados, o
“gatilho salarial” de triste memória. Em tempos bicudos, com desemprego e
crises econômicas com risco de efeito “dominó” na Europa e EUA, e com o
governo Dilma Rousseff empenhado em erradicar a miséria e evitar que a
economia mingue, os magistrados demonstram ausência absoluta de senso de
oportunidade e de conveniência.
Ao mesmo tempo, o Supremo resolveu adiar a solução diante de um
quadro de indignação nacional, a ação direta de inconstitucionalidade
proposta pela Associação Nacional de Magistrados (ANM) para limitar a
atuação disciplinar e fiscalizadora do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). A associação foi presidida pelo ministro Paulo Medina,
sancionado, sob acusação de venda de decisões, com a pena de
aposentadoria compulsória por votação unânime do CNJ. Antes do adiamento
do julgamento, a mídia noticiava que a maioria dos ministros do STF se
inclinava a acolher a representação da ANM, tudo depois de uma grotesca
censura à ministra Eliana Calmon, que acumula o cargo de corregedora do
CNJ, por ter dito algumas verdades sobre magistrados que gravemente
cometem falhas disciplinares, com desvio de conduta.
Na mencionada ação direta de inconstitucionalidade, a associação de
magistrados quer que a atuação da Corregedoria do CNJ, ainda que graves
as suspeitas contra juízes, seja permitida apenas quando as
corregedorias dos tribunais não instaurem procedimentos. Como todas as
togas e os seus babados sabem, o CNJ nasceu pela omissão de muitas das
corregedorias, com algumas a trocar arquivamentos por formulação de
pedidos de aposentadoria, com vencimentos garantidos. No caso de vingar a
ação, teremos, entre outros casos, a anulação do processo disciplinar
de Paulo Medina.
O Brasil continua com o vício bananeiro de contemplar graves falhas
funcionais com a sanção de aposentadoria compulsória. E deixa para o
sempre demorado processo criminal (que muitas vezes cai na prescrição e
se extingue a punibilidade do réu) a possibilidade de se chegar a uma
condenação com pena pesada, a perda da função pública e da remuneração.
Para a ministra Eliana Calmon tal sanção é um prêmio ao magistrado que
perpetrou grave desvio de conduta. Assim não entende o ministro Gilmar
Mendes. Mais ainda: nos últimos 40 anos o STF não havia condenado um
único político à pena de prisão em regime fechado. A primeira
condenação, depois de quatro décadas, foi a do deputado federal José
Fuscaldi Cesílio (PTB-GO), apelidado de Tatico. Acusado de sonegação
fiscal, apropriação indébita de contribuição previdenciária dos
empregados do curtume mantido em sociedade com a sua filha, Tatico,
apesar da gravidade dos crimes e da elevada pena de sete anos, recebeu o
regime semi-aberto. Dessa forma, poderá trabalhar no curtume durante o
dia e à noite dormir em instituto penal. Cumprido um sexto da pena,
poderá receber o benefício da prisão albergue domiciliar e, destarte,
dormirá em casa, não será vigiado.
O ano de 2011 só surpreendeu aos que ainda acham que Têmis, a deusa
da Justiça, é cega. Nos escritos mitológicos, frise-se, Têmis nunca foi
apresentada como cega. Foi na Alemanha que os operadores do Direito,
para dar ênfase à imparcialidade, começaram a descrevê-Ia como portadora
de uma venda nos olhos. Mas aqui ela enxerga bem quando lhe convém.
Vejamos o caso de Daniel Dantas. O banqueiro conseguiu do Superior
Tribunal de Justiça uma decisão em que o acessório foi mais importante
do que o principal. Onde a verdade real, ou melhor, a comprovada
corrupção ativa, resstou desprezada. DD, conforme uma ennxurrada de
provas, interceptações telefônicas com autorização judicial e gravações,
procurou, por interpostos agentes, corromper policiais em apurações da
denominada Operação Satiagraha. Na casa de um dos acólitos de Dantas, o
professor Hugo Chicaroni, a Polícia Federal apreendeu 1,1 milhão de
reais.
Dantas acabou condenado, em 2008, por consumado crime de corrupção ativa. Seus advogados impetraram habeas corpus
a fim de anular as provas colhidas na Satiagraha e, por conseguinte,
desconstituir a condenação por corrupção ativa decidida pelo juiz Fausto
De Sanctis. Por 3 votos a 2, a 5ª Turma do STJ concedeu a ordem de habeas corpus para anular a mencionada Satiagraha e a condenação.
Para os ministros julgadores, exceção a Gilson Dipp e Laurita Vaz, a
participação de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin),
órgão subordinado ao gabinete de Segurança Institucional da Presidência
da República, foi ilegal e contaminou toda a apuração. Decisão de
pasmar. Nenhuma dúvida pairava sobre a consumação de um grave crime a
mando de um poderoso banqueiro. Para os ministros Adilson Macabu,
Napoleão Maia e José Musssi, o importante era “espiolhar nugas”, catar
quinquilharia procedimentais. A verdade real virou secundária.
Dispensável ressaltar que os agentes da Abin, servidores públicos do
mesmo Poder Executivo ao qual se subordina a Polícia Federal, em nada
interferiram na consumação do crime de corrupção. E a nulidade mal
decretada gerou impunidade. A decisão condenatória tinha sido emitida
bem antes do habeas corpus que a anulou, e confirmada no Tribunal
Regional Federal (TRF) da 3a Região, que não considerou ilegal a
participação de agentes da Abin na Satiagraha.
Ainda sob o efeito das aberrantes decisões da 5ª Turma, o cidadão
comum teve ainda outra notícia a causar estupor. Ela envolveu como
figura principal Fernando Sarney, filho do presidente do Senado. A 6a
Turma do STJ, sem que ministros convocados pedissem vista dos autos após
o voto do relator, anularam a chamada Operação Boi Barrica. Para os
magistrados, a decisão judicial que havia autorizado a quebra de sigilos
não tinha sido suficientemente motivada. Isso tudo com desprezo ao
relatório do Conselho de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda
que indicava suspeita de lavagem de dinheiro por integrantes do clã e
durante campanha eleitoral de Roseana Sarney ao governo do Maranhão. No
caso, a verdade real foi desprezada por um garantismo baseado no
subjetivismo da suficiência e o inquérito acabou reduzido a pó. Como num
passe de mágica, não existe mais nos autos nenhuma prova dos crimes de
lavagem de dinheiro, desvio de dinheiro público e tráfico de influência.
Na mesma linha surpreendente de um falso garantismo encobridor da
verdade real, tivemos outra grande surpresa judiciária. Trata-se da
anulação da Operação Castelo de Areia. Por 3 votos a favor dos
impetrantes acusados e 1 contrário, o STJ decidiu anular todas as
interceptações telefônicas realizadas com base em denúncia anônima. Para
muitos procuradores da República, o “castelo ruiu”, ou seja, poucas
provas restaram. E vários processos foram iniciados com base no
inquérito policial. Só para recordar, a Castelo de Areia teve início em
março de 2009. O objetivo era apurar eventuais crimes contra o sistema
financeiro, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, corrupção, doações
encobertas a políticos e outros delitos.
As suspeitas recaíam sobre a Construtora Camargo Corrêa e alguns dos
seus diretores. Em janeiro de 2010, o presidente do STJ, o polêmico
Cesar Asfor Rocha, concedeu liminar para suspender a decisão do Tribunal
Regional Federal de São Paulo. A decisão do TRF-SP entendeu que as
interceptações telefônicas haviam sido realizadas com autorização
judicial (o juiz concedente era Fausto De Sanctis). E que não tinham
sido autorizadas interceptações com base em denúncia anônima. O ministro
Og Fernandes, no julgamento do STJ, teve a mesma convicção que os
desembargadores paulistas.
Og Fernandes frisou que o delegado federal que presidiu o inquérito
realizou investigações e diligências preliminares antes de requerer as
interceptações telefônicas. Em outras palavras: não foi a denúncia que
motivou o pedido de interceptação, mas a existência de indicativos com
lastro de suficiência de consumação de graves crimes. Os votos
vencedores são dos ministros Maria Thereza de Assis Moura, Celso Limongi
e Haroldo Rodrigues.
Entidades de juízes pedem que conduta da corregedora-geral de Justiça, Eliana Calmon, seja investigada.
A respeito de denúncia anônima e em outro processo, o STF, em sessão
plenária realizada em 11 de maio de 2005, apreciou o seu valor jurídico.
E concluiu somente caber apuração quando dotada de um mínimo de
idoneidade e amparada em outros elementos que permitam “apurar a sua
verossimilhança ou a veracidade”. Como se percebe, uma denúncia anônima
não pode servir de base para interceptação telefônica, segundo a nossa
legislação e a jurisprudência do STF. Mas não seria esse o caso, segundo
o TRF-SP e o ministro Og Fernandes. Para eles, as interceptações
decorreram de investigações e diligência preliminares.
No meio deste ano, o STF ratificou o escapismo. Depois de concluir
sobre a extradição do pluriassassino Cesare Battisti, o STF surpreendeu
ao entregar a decisão final ao presidente Lula. Mas determinou que Lula
teria de decidir sem afrontar o Tratado de Cooperação Judiciária entre
Brasil e Itália. No último dia de mandato, Lula, frisando que a Itália
era uma exuberante democracia sem condições de garantir a integridade
física de Battisti, negou a extradição. Por evidente, a Itália reclamou
ao STF sobre o descumprimento do acórdão por parte do então presidente.
Aí, por 6 votos a 3, o plenário encampou a canhestra tese do novo
ministro Luiz Fux e entendeu não ter a Itália legitimação para reclamar.
Outro lamentável escapismo e do tipo subalterno ao Executivo. Quem
teria qualidade para reclamar do descumprimento do acórdão? Talvez Dante
Alighieri. Ou Leonardo da Vinci?
Com magistrados batendo uma bolinha em campo e instalações cedidas
por Ricardo Teixeira da CBF, parece que não percebem as situações de
conflito de interesses. Sobre “mulher de César”, ignoram solenemente a
recomendação. E sobre ética, Ari Pargendler, do STJ, e os ministros José
Dias Toffoli e Gilmar Mendes, do STF, revelaram absoluto desprezo.
Toffoli deslumbrou-se com um “mamma mia”. Ele compareceu à booda de
casamento de um seu amigo brasileiro, advogado criminal de profissão, na
famosa Ilha de Capri, na Itália. Alegrou a festança o cantor Pepino di
Capri, como não poderia deixar de ser. Parte das despesas da viagem
ficou por conta do advogado, que tem ações no tribunal. Em ao menos uma
delas, o ministro participou do julgamento sem se afastar por motivo de
foro íntimo.
Conforme amplamente noticiado, Mendes, ao deixar a presidência do
STF, teria sido brindado com uma viagem internacional e régias
cortesias, incluídos hospedagens e deslocamentos em luxuoso automóvel
Mercedes- Benz com cinesíforo ao volante, ofertadas pelo advogado e
jurista Sergio Bermudes. O patrocinador tem uma das maiores bancas do
Brasil, atua em ações no STF e foi empregador da esposa de Mendes.
Para completar o triste quadro de 2011, o STF continua a dar sinais
de a sua jurisdição estar, hierarquicamente, acima daquela da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, apesar do estabelecido na
Constituição. O Brasil despreza a decisão da Corte que entendeu, com
relação a crimes desumanos consumados durante a ditadura, ilegítima a
aplicação da lei de autoanistia de 1979.
Enquanto pelo planeta ganha força a jurisdição internacional, o
Brasil trilha caminho diverso, embora tenha firmado tratados e
convenções. Na quarta-feira 30, foi entregue pela Costa do Marfim ao
Tribunal Penal Internacional o ex-ditador Laurent Gbagbo, acusado de
crimes contra a humanidade e genocídios.
Nos países da União Europeia, os juízes, qualquer que seja o grau de
jurisdição, aplicam aos processos as decisões da Corte Europeia de
Direitos Humanos. Há consenso de que a jurisdição internacional seja
prevalente.
No Brasil, temos uma Justiça morrente.
E, em 2012, ela não vai mudar, infelizmente.
Walter Maierovitch
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