É justa, democrática, viável, racional. Custa pequena parte do
que cidades gastam com automóveis. Só preconceito e privilégios ainda
atrasam sua adoção
Por Lucio Gregori, especial para o Piseagrama*, parceira de Outras Palavras
Einstein dizia que é mais fácil desintegrar um átomo do que um
preconceito.
Eu não sabia disso quando propus, em 1990, a tarifa zero
para os transportes coletivos urbanos no município de São Paulo. Era
secretário dos transportes no governo da então prefeita Luiza Erundina.
Por ter sido anteriormente secretário de serviços e obras
(responsável, portanto, pelos contratos de coleta e destino final do
lixo), pensei que o pagamento do transporte no ato de sua utilização
era injusto e pouco racional em termos de eficiência. Injusto porque os
que pagam são os que menos têm condições de arcar com esse custo. Era, e
continua sendo, enorme o número dos que andam a pé por não terem
condições de pagar a tarifa. E é pouco eficiente uma vez que o sistema
de cobrança, à época, consumia quase 28% do arrecadado, além de ocupar
cerca de quatro lugares por ônibus. A catraca não é somente grande e
feia, ela pode se constituir também em um símbolo de humilhação.
O sistema proposto era de pagamento indireto do serviço de transporte
coletivo, através de impostos e taxas do município, como no caso dos
serviços de educação, saúde, segurança pública, coleta e destinação
final do lixo. O nome Tarifa Zero é, na verdade, de fantasia.
A previsão era de que, com a adoção da tarifa zero, o número de
passageiros transportados aumentasse muito, seja por conta daqueles que
não podem pagar várias tarifas por dia, seja pela migração de parte dos
usuários de transportes individuais.
A frota deveria aumentar em 4.000 ônibus. Com a proposta, separava-se
radicalmente o custo do serviço da tarifa paga pelo usuário. Cairia por
terra o sistema de concessões de serviço para empresas em que a tarifa é
a garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Os serviços
seriam contratados conforme todos os demais serviços públicos
municipais, como construção de vias e viadutos, aquisição de remédios,
equipamentos hospitalares, equipamentos para educação. Seria algo como
fretar veículos pagando ao fretador e cobrindo os custos através dos
impostos e taxas municipais, sem nada cobrar do usuário no ato de
utilização. Essa modalidade de contratação, no caso dos ônibus, seria
denominada “municipalização”.
Com o necessário aumento da frota e a tarifa zero, tornavam-se
necessárias novas fontes de recursos através de impostos e taxas. A
prefeita propunha à Câmara uma reforma tributária fortemente progressiva
– dentro da qual pagaria mais quem tem mais, menos quem tem menos e não
pagaria quem não tem – e a constituição de um fundo para financiar a
gratuidade. Grandes estabelecimentos, bancos, residências de luxo
pagariam mais, e assim por diante. Afinal, a cidade só funciona porque
as pessoas nela se deslocam.
Nos debates e reuniões de que participei, pude perceber a resistência
em se propiciar um sistema mais racional e justo para a mobilidade de
todos, independentemente de classe social. A pouca mobilidade física dos
usuários de transporte coletivo se traduz, também, em menor mobilidade
social. O preconceito aparecia sob a forma de ditos como: “se é ruim
pagando, pior se for de graça”, ou “os ônibus vão estar lotados de
bêbados e desocupados” ou ainda, “se for de graça haverá vandalismo,
etc, etc”.
O projeto não pôde ser implantado. A Câmara Municipal sequer votou a
necessária reforma tributária e o projeto como um todo. Esse conjunto de
preconceitos esconde uma questão política e social muito mais profunda,
que se constitui como um paradigma.
Como se dá, exposta de forma simples, sua construção histórica e social?
O início ocorre com a necessidade do não transporte, quando o ideal
para o capital era ter o trabalhador junto ao local do trabalho – caso
das vilas industriais ou mesmo das colônias nas fazendas. Com a
complexidade decorrente do desenvolvimento, o transporte dos
consumidores e da mão de obra para os locais de trabalho passa a ser
indispensável. A responsabilidade desse serviço é transferida ao poder
público, enquanto ele se transforma, ao mesmo tempo, em novo “negócio”.
A concessão de serviço público é solução de “negócio” para um mercado
em que não há como haver concorrência, característico do transporte
coletivo. E a tarifa é a garantia do “negócio”.
Como responsabilidade do governo, os transportes coletivos têm na
tarifa um preço público. Isso confere ao sistema possibilidades de
barganha política. A fixação do preço público da tarifa serve como
elemento de manipulação política, para o bem e para o mal. A tarifa se
torna, na prática, um “fetiche”. A história dos reajustes de tarifas de
transportes urbanos mostra isso claramente, através de variadas
manipulações. Ora a depressão do preço, ora os aumentos, sempre em
função do momento político, de eleições, etc.
Se do lado do capital, o transporte coletivo é encarado como
“negócio”, os usuários, através do aparato ideológico, também introjetam
esse mesmo conceito. O usuário entende que o transporte é um serviço
que deve ser pago, e que o seu deslocamento (mobilidade) é de sua
inteira responsabilidade. Com isso, esfuma-se que o transporte é,
primordialmente, de interesse do produtor, do prestador de serviço, do
comércio – do empregador, de forma geral. O usuário não entende o
transporte como direito social a ser pago indiretamente, como entende a
saúde pública, a segurança pública, a educação pública. Para lembrá-lo
permanentemente de seu “dever de pagar”, em muitos ônibus da cidade de
São Paulo se encontram os seguintes dizeres:
CÓDIGO PENAL
Art. 176 – Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou
utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o
pagamento:
Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.
É fácil perceber essa introjeção nos momentos de crise dos
transportes coletivos, como nos dias de greve. A mídia mostrará usuários
se debatendo e disputando os pouco lugares ofertados, ansiosos para não
perderem o dia de trabalho ou o acesso a serviços indispensáveis e
inadiáveis. O usuário assume, assim, a plena responsabilidade por seus
deslocamentos. Se a crise perdurar, em breve a mesma mídia dirá da
impaciência das indústrias, comércio e serviços pela ausência de seus
trabalhadores e consumidores. E, então, a crise dos transportes
coletivos fica entendida como um grave problema social.
No entanto, a Constituição diz:
Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição.
Os mesmos transportes coletivos, cuja ausência causa graves problemas sociais, não são, entretanto, um direito social.
O usuário do transporte coletivo vê no transporte individual, de
preferência o automóvel, a “saída” para a mobilidade. O automóvel é um
produto que preenche diversos requisitos em nossa sociedade: são
milhares e milhares de pessoas que vivem na dependência desse produto.
Ele é estratégico na produção nacional, sobretudo por seus “efeitos para
trás”, na enorme cadeia de insumos necessários à sua produção.
Acrescente-se a isso os serviços que gravitam em torno de seu consumo,
tais como comercialização, manutenção, publicidade, propaganda,
combustíveis, empreiteiras de obras públicas de ampliação e reforma de
sistemas viários para acomodar mais e mais carros, asfaltamento,
construção de viadutos, passagens de nível.
O automóvel também conforma as cidades de tal sorte que elas acabam
dependendo cada vez mais de sua utilização. Diante de um sistema de
transporte coletivo ruim, insuficiente e caro, o automóvel se torna um
sonho de consumo libertador do pesadelo representado pelo ônibus. Mas o
automóvel é um forte agressor do meio ambiente e devorador insaciável do
espaço urbano. Sua frota polui dezenas de vezes mais que a frota de
ônibus e ainda mais que outros modalidades como metrô ou VLTs.
Entendo que a tarifa zero produziria um efeito radical na questão da
mobilidade, tornando-a mais racional, ambientalmente mais sustentável e
socialmente mais justa. Sua implantação envolve, porém, uma enorme
disputa política, tanto no campo ideológico, como no campo
econômico-financeiro.
Sucessivos governos no Brasil, em todas as instâncias, têm adotado
políticas públicas para o transporte individual por automóvel em
detrimento do transporte coletivo. Bilhões e bilhões são gastos na
ampliação de vias e na construção de viadutos, enquanto se alega falta
de recursos para o subsídio às tarifas e investimentos no transporte
coletivo. Isso não se dá por acaso, mas por uma enorme disputa política
que envolve diversos interesses.
Em Hasselt, na Bélgica, a “tarifa zero” existe desde 1997. A demanda
por transporte coletivo cresceu cerca de 1300% e houve considerável
diminuição de investimentos no sistema viário. Por tudo que se disse
nessa síntese da questão é que se afirmou o título deste texto.
Comecemos por reivindicar que o citado artigo da Constituição inclua o
transporte coletivo urbano como direito social.
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