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sábado, 12 de julho de 2014

Neodesenvolvimentismo e a nova miséria espiritual das massas no Brasil


14.07.07_Giovanni Alves_Miséria 


[Giorgio de Chirico, Torino a primavera, 1914, óleo sobre tela]


O “choque de capitalismo” ocorrido na década de 2000 intensificou e ampliou as contradições sociais inerentes ao desenvolvimento histórico da sociedade burguesa no Brasil. Dez anos de Lula e Dilma (2003-2014) significaram uma indiscutível atualização histórica do capitalismo no Brasil e o fortalecimento da hegemonia burguesa no país por conta do novo ciclo de modernização neodesenvolvimentista. Aumento real do salário-mínimo (cerca de 70%), aumento do emprego formal (de baixa qualificação) e redistribuição de renda por meio de programas sociais de combate a pobreza extrema (Bolsa Família), que implicou na saída da pobreza absoluta de mais de 20 milhões de pessoas. De fato, trata-se de algo sem precedentes em nossa história republicana. Apesar da persistência do Estado neoliberal no Brasil, alterou-se o padrão de desenvolvimento capitalista nos últimos dez anos, provocando indiscutivelmente, mudanças internas na morfologia das classes e camadas sociais.
A discussão candente sobre a “nova classe média” (Marcelo Neri), ou melhor, “nova classe trabalhadora” (Márcio Pochmann), ou ainda os “batalhadores brasileiros” (Jessé de Souza); ou ainda, o debate sobre o “precariado” (Ruy Braga/Giovanni Alves), demonstram que o Brasil mudou – é claro, mudanças sociais no interior do padrão histórico de desenvolvimento do capitalismo hipertardio caracterizado ontogeneticamente pela “modernização conservadora” e passivização histórica (como diria Tomaso di Lampedusa, “tudo deve mudar para que tudo fique como está”).
O neodesenvolvimentismo no Brasil, como modo de “revolução passiva” do capitalismo brasileiro nas condições históricas da crise do capitalismo neoliberal, repôs de modo farsesco, o traço ontogenético do capitalismo hipertardio de feição colonial-escravista: a modernização conservadora. Na verdade, é impossível fazer uma crítica relevante do capitalismo brasileiro sem levar em consideração as mudanças sociais ocorridas no Brasil nos últimos dez anos de Lula e Dilma (o que explica, de certo modo, a irrelevância politica da maior parte da critica da extrema-esquerda marxista que despreza in limine, a natureza qualitativamente nova da hegemonia burguesa no Brasil que surgiu na era do lulismo).
Entretanto, afirmar que o Brasil sofreu um “choque de capitalismo” nos dez anos de Lula e Dilma implica buscar desvendar o enigma do neodesenvolvimentismo (o que tentamos fazer no recém-lançado livro Trabalho e neodesenvolvimentismo), rastreando os vestígios da contradição viva do capital que se expressam, principalmente, no plano do metabolismo social do trabalho. Para uma crítica relevante do capitalismo brasileiro hoje, urge desvendar, com imaginação sociológica, os impactos do “choque de capitalismo” da última década na morfologia social e sociometabolismo do mundo do trabalho no Brasil. Nossa hipótese, neste pequeno ensaio, é que a modernização neodesenvolvimentista – variante da modernização histórica da periferia capitalista na era do declive civilizatório do capital – fez surgir no Brasil novas misérias humanas decorrentes da aceleração da vida social nas metrópoles capitalistas por conta da disseminação da lógica do trabalho abstrato.
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A nova expansão do capitalismo no Brasil nas condições do capitalismo manipulatório de base midiático-informacional, disseminou no corpo social, insanas e delirantes contradições vivas próprias do novo sociometabolismo do capital global, contradições sociais que se desdobram naquilo que caracterizamos como sendo inquietações existenciais e carecimentos radicais nas individualidades pessoais de classe. Na verdade, ocorreram não apenas mudanças cruciais na estrutura de classes e estratificações sociais (com recorte geracionais, étnico e de gênero), mas principalmente, mudanças no metabolismo social das camadas e frações de classe do proletariado urbano.
A “modernização conservadora” de cariz neodesenvolvimentista que ocorreu no Brasil da década de 2000 expos na década seguinte seus limites irremediáveis – o que não se confunde com o esgotamento do neodesenvolvimentismo. Os limites do neodesenvolvimentismo dizem respeito à crescente contradição entre as promessas (e expectativas) de reforma social do capitalismo no Brasil, e os candentes constrangimentos do orçamento público da União pelo comprometidmento com a amortização e serviços da divida pública nas mãos do capital financeiro. Por exemplo, dados do Senado Federal relativos a 2013 apontam o pagamento de R$ 718 bilhões em juros e amortização da dívida, o que equivale a 40,3% de tudo que foi arrecadado em impostos pelo poder público no ano passado com a amortização da divida pública. Na medida em que as reformas sociais exigem um maior aporte de gastos públicos, o orçamento público encontra-se “capturado” pelos interesses do capital financeiro (banqueiros e grandes investidores do sistema financeiro internacional).
Portanto, por um lado, o “choque de capitalismo” explicitou candentes necessidades sociais que, para serem satisfeitas, exigem dos governos – federal e estadual – altos gastos públicos (por exemplo, investimentos na educação e saúde pública de qualidade, transporte e infraestrutura urbana, segurança pública, etc). Por outro lado, as pretensões de reforma social implicam romper efetivamente com os constrangimentos do Estado neoliberal (sociedade politica oligárquica e sociedade civil neoliberal), renunciando à lógica da estratégia politica do lulismo, que garantiu nos últimos dez anos, as alianças políticas e a governabilidade do projeto neodesenvolvimentista (reformismo mais fraco e lento, incapaz de confrontar o bloco de poder do capital). Na verdade, o salto qualitativamente novo no interior do projeto neodesenvoliventista de combate à desigualdade social e reforma social no País exigiria alterar a própria correlação de forças sociais e politicas entre os interesses do trabalho e do capital na sociedade brasileira (o que está muito distante de ocorrer).
Portanto, nossa hipótese principal neste ensaio é que, o “choque de capitalismo” neodesenvolvimentista provocou, no plano do metabolismo social do trabalho vivo, profundas inquietações existenciais nas individualidades pessoais de classe, expondo nelas, carecimentos radicais próprios de indivíduos universalmente desenvolvidos nas condições históricas do desenvolvimento civilizatório do capital alcançado como contradição viva. Nos Grundrisse, Karl Marx afirmou que,
“o grau e a universalidade do desenvolvimento das faculdades, que tornam possível esta individualidade, pressupõem precisamente a produção baseada sobre os valores de troca, pois só ela produz a universalidade da alienação do indivíduo para consigo mesmo e para com os outros; mas igualmente a universalidade e a generalidade das suas relações e capacidades”.
Na verdade, os carecimentos radicais provocados pelo novo modo de vida just-in-time no Brasil da era do neodesenvolvimentismo, levaram as pessoas, diante das misérias espirituais da sociedade civil neoliberal, a fazer escolhas pessoais espúrias ou buscar vias grotescas de escape no plano pessoal.
Como salientamos no livro Trabalho e neodesenvolvimentismo, o Estado neoliberal (sociedade política oligárquica e sociedade civil neoliberal) persiste no Brasil nos dez anos de Lula e Dilma, o que nos leva a distinguir Estado de governo. A incapacidade dos governos neodesenvolvimentistas de alterarem o Estado neoliberal significou, não apenas a manutenção da sociedade politica neoliberal, mas também a preservação da sociedade civil neoliberal com seu sociometabolismo da barbárie. A cultura neoliberal, disseminada intensa e extensivamente a partir da década de 1990, contribuiu para aprofundar a miséria espiritual das massas manipuladas pelo capitalismo global. Por isso, observou-se, ao longo de mais de vinte anos de hegemonia da cultura neoliberal no Brasil, a imbecilização espiritual e o esvaziamento ideológico dos aparelhos privados de hegemonia social, como partidos e sindicatos de trabalhadores, expondo, deste modo, o vazio intelectual-moral profundo da sociedade brasileira.
A miséria espiritual da sociedade civil neoliberal no Brasil, com sua crise do sentido humano (ensimesmamento) e crise do trabalho vivo (o que discutimos no livro Trabalho e neodeenvolvimetismo), explica o surgimento candente das inquietações existenciais e carecimentos radicais insatisfeitos pela nova dinâmica sociometabolica da organização do trabalho e modo de vida. O novo modo de vida just-in-time, que nasceu no bojo do toyotismo sistêmico (que discutimos no livro O novo (e precário) mundo do trabalho) explica a disseminação das vias grotescas de escape que adquirem o caráter de espiritualidade espúria ou assumem a forma de irracionalidade social.
O capitalismo como religião no Brasil do neodesenvolvimentismo necessita de sua teologia profana. É o que denominamos, a tríplice teologia do neodesenvolvimentismo, isto é, as teologias da prosperidade, as teologias da auto-estima e empreendedorismo; e as teologias do consumo de marcas. Ao mesmo tempo proliferam filosofias de auto-ajuda, com milhões de trabalhadores brasileiros – a maior parte das “camadas médias” – em busca de apoio espiritual e sucesso individual. Na década do choque de capitalismo neodesenvolvimentista, os livros de auto-ajuda tornaram-se best-sellers nas livrarias. Enfim, as pessoas-humanas-que-trabalham, imersas na condição de proletariedade, buscam soluções prontas para seus problemas cotidianos, vias de escape para o sofrimento, receitas de sucesso e de felicidade, simplicidade para encarar os complexos problemas da existência alienada; buscam um refúgio de suas realidades, com a fantasia de poderem magicamente e com o mínimo de esforço e sofrimento resolver suas vidas. Além dos livros de auto-ajuda, temos as vias do espiritualismo da Nova Era, gnoses, crenças carismátivas, esotéricas e antroposoficas, etc.
Por exemplo, nas teologias da auto-estima e do empreendedorismo, Deus é substituído pelo ideal de Sucesso. A ideologia do empreendedorismo originou-se da ideologia do sucesso oriunda dos EUA, a civilização do capital global. É clássica a divisão ideológica na cultura liberal entre winners e losers. A idéia de empreendedorismo é a das idéias teológicas a mais insidiosa, porque opera o mecanismo ideológico da auto culpabilização da vítima: “se eu fracassei a culpa é minha”. A teologia do empreendedorismo é a internalização absoluta dessa censura: “O sucesso é minha responsabilidade, o fracasso é minha culpa”. Coragem, ousadia, auto-estima, iniciativa, fazem parte do sujeito vitorioso.
O novo homem do capital no século XXI é o empreendedor. Ele é o modelo de uma teologia imanente, uma teologia da matéria, que atingindo aquele ponto leva os outros à felicidade. Este novo homem adquire a salvação mediante sua iniciativa pessoal, tal como o homem medieval, mas não é uma iniciativa pessoal em busca de um além, mas é de um hic et nunc, de um aqui e agora terreno; e o inferno dessa teologia é o fracasso financeiro e pessoal. Na era do neodesenvolvimentismo disseminaram-se os livros sobre empreendedorismo, com treinadores pessoais, coaches, dizendo “você precisa confiar em você”, “você precisa ter metas”, “você precisa se desenvolver”, “você precisa colocar essas metas e repetir ‘eu posso’, ‘eu sou vitorioso’”. É curioso que, há alguns anos isso seria tido como esquizofrenia ou bipolaridade; hoje é tido como consistência pessoal.
As maiores vítimas das teologias do empreendedorismo e auto-ajuda e das teologias do consumo de marca são a juventude precária, a dita “geração Y” nascida na era neoliberal, manipulada incisivamente pelo “espirito do toyotismo” e exposta hoje, mais do que nunca, à inquietação existencial e carecimentos radicais (vide meu livro Trabalho e subjetividade – o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório).
A “teologia da prosperidade”, também conhecida como “evangelho da prosperidade”, é uma doutrina religiosa cristã que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos; e que a fé, o discurso positivo e as doações para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel. A doutrina das teologias da prosperidade interpreta a Bíblia como um contrato entre Deus e os humanos; se os humanos tiverem fé em Deus, Ele irá cumprir suas promessas de segurança e prosperidade. Reconhecer tais promessas como verdadeiras é percebido como um ato de fé, o que Deus irá honrar. O show da fé procura cultivar ilusões de prosperidade por meio de acessos mágicos à sociedade de consumo. Apesar do recuo do crescimento das igrejas evangélicas neopentecostais na década de 2000, em comparação com a década de 1990 (segundo dados do censo religioso de 2010, na década de 1990, os evangélicos cresceram 120%, enquanto na década de 2000, o crescimento foi de 61,45%), o crescimento do evangelho da prosperidade na década do neodesenvolvimentismo não deixou de ser significativo. Em 2000, cerca de 26,2 milhões de brasileiros se disseram evangélicos, ou seja, 15,4% da população; em 2010, eles passaram a ser 42,3 milhões, ou 22,2% dos brasileiros. De qualquer modo, o crescimento das teologias de prosperidade na temporalidade histórica neoliberal no Brasil não deixa de ser impressionante (em 1980, o percentual de evangélicos era de 6,6%; em 1991, de 9%; e em 2010, de 22,2%). Na verdade, presenciamos o crescimento do pluralismo religioso no Brasil, inclusive de pessoas sem religião, mas que não deixam de expressar um ateísmo religioso, pois surgem outros modos de espiritualidades espúrias, tais como as teologias da auto-estima e do empreendedorismo e o culto das marcas, ou filosofias de auto-ajuda, espiritualismos da Nova Era, gnoses, crenças carismáticas, esotéricas e antroposóficas, etc.
As teologias do consumo de marca surgem no bojo do novo padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil. O neodesenvolvimentismo baseou-se na exacerbação do crédito capaz de incrementar o mercado interno de consumo (de 2003 a 2013, a oferta de crédito cresceu cerca de 140% no País). A própria idéia de cidadania reduziu-se à idéia de acesso ao mercado de consumo de massa. Proliferou-se a idéia da inclusão social pelo consumo como meio de afirmação da identidade social. Nas condições de crise do trabalho vivo, constituído pela crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de auto-referencia pessoal, o consumismo tornou-se via grotesca de escape do vazio existencial, principalmente entre os jovens das camadas médias ou camadas populares do proletariado (precariado ou “proletaróides”), alvos privilegiados das estratégias de marketing e propaganda das grandes empresas do capital global. A carência de modernização que caracteriza o capitalismo hipertardio no Brasil, fez com que o consumo de marca se tornasse um ídolo sagrado. Na verdade, o sagrado está cada vez mais comercializado e dessacralizado. A década do neodesenvolvimentismo demonstrou que o Brasil está cada vez mais desencantado, apesar da proliferação das teologias da prosperidade. Nas condições da miséria brasileira, percebemos hoje, mais do que nunca, a articulação orgânica entre o arcaico e o moderno, o sagrado e o profano. Entretanto, é importante ver também o consumo popular das marcas, ou a sua ostentação social, como um sentido íntimo de afirmação pessoal, símbolo de ascensão social nas condições da sociedade brasileira historicamente desigualitária, racista e excludente.
As vias grotescas de escape da tríplice teologia do neodesenvolvimentismo são, como as filosofias da auto-ajuda e filosofias da Nova Era, respostas às inquietações existenciais e carecimentos radicais das pessoas-que-trabalham. Não podemos condenar as criaturas aflitas que procuram na religião, sagradas ou profanas, uma via de escape para sua miséria humana. Inclusive, podemos dizer que a tríplice teologia do neodesenvolvimentismo no Brasil, possui, de certo modo, a mesma legalidade ontológica do sentimento religioso. Disse Karl Marx numa brilhante passagem da introdução de 1844 a sua Crítica à filosofia do direito de Hegel:
“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.” (Crítica à filosofia do direito de Hegel, p.145)
Na verdade, o “choque de capitalismo” no Brasil neodesenvolvimentista – que incorporou o espírito do capitalismo global –, explicitou, de modo candente, a impossibilidade da vida plena de sentido nas condições históricas do sociometabolismo da barbárie. Por isso o apego às teologias do neodesenvolvimentismo, que podemos denominar, teologias do grotesco (ou teologias da caricatura). As teologias do neodesenvolvimentismo podem ser denominadas “teologias do grotesco” na medida em que o grotesco obstaculiza o sentimento de tragédia (que possui um elemento catártico).
Mas o século XXI, tal como o século passado, pode ser considerado o “século de Franz Kafka”, como diria o filosofo Karel Kosik no texto “O século de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do trágico no nosso tempo”. Disse Kosik:
“Kafka chegou à conclusão – e essa, a meu ver, é a sua descoberta mais significativa – de que a nossa época moderna é hostil ao trágico, trata de exclui-lo, e em seu lugar institui o grotesco. Por isso, o século de Franz Kafka é, ao mesmo tempo, o século cuja quintessência se acha corporificada numa de suas figuras: a personagem Grete Samsa, uma espécie de anti-Antígona do século XX”.
O capitalismo global (1980-2014) inaugurou uma nova era da desmedida do capital, que exacerbou – e elevou a um patamar superior – o sociometabolismo da barbárie que marcou o breve século XX. As vias grotescas de escape às inquietações existenciais e carecimentos radicais do século XXI, expõem a natureza do grotesco como caricatura ou imitação pobre (pode-se dizer, por exemplo, que as teologias da prosperidade são uma imitação pobre das religiões); e, ao mesmo tempo, impossibilidade de catarse ou auto-transcendencia. Como disse Kosik, a tragédia nasceu com a pólis grega:
“A pólis se funda, perdura e renova no conflito (“pólemos”) entre o humano e o divino, o passageiro e o duradouro, o banal e o elevado. Se o humano suprime o divino, o passageiro elimina o duradouro e o banal acaba com o elevado, a comunidade se desintegra, a pólis desaparece e com ela desaparece também a tragédia”.
Portanto, a era do grotesco tornou-se a era da banalização universal, era da corrosão do caráter (Sennett) ou era da “vida líquida” (Baumann); era do isolamento e da atomização; e as vias grotescas de escape, esvaziam o conflito ideológico, desintegrando, no plano ideal, a dimensão da pólis (política) e da própria tragédia como expressão do caráter contraditório do tempo, que expressa o que passa e o que perdura (o que significa que a “presentificação crônica” constada por Eric Hobsbawn é um sintoma lúgubre da era do grotesco); ou ainda, suprimindo o sentido de tragédia como expressão da própria percepção de possibilidade de auto-transcendência da inquietação existencial. A rigor, a inquietação existencial e seus carecimentos radicais na era do capitalismo global são apreendidos como normalidade – isto é, a “normalidade” é a banalidade, a superficialidade, a pequenez. O ensimesmamento faz com que a pessoa não tenha mais disponibilidade ou vontade para sair dessa situação degradante.
Podemos dizer que as teologias do consumo de marca, teologias do empreendedorismo e teologias da prosperidade, com suas vias de cariz neopentecostalista ou vias do espiritualismo da Nova Era (as gnoses, crenças carismáticas, esotéricas e antroposóficas, etc), são expressões efetivas do fenômeno social da crise do trabalho vivo e da “vida reduzida”; traços do sociometabolismo da barbárie na época histórica da crise estrutural do capital, que obstaculizam a autotranscendencia do existir humano; e, por conseguinte, impedem as pessoas ensimesmadas de encontrarem um sentido pleno para a vida. Ao mesmo tempo, a “vida reduzida” (categoria social que discutimos no livro “Trabalho e neodesenvolvimentismo”), produz homens imersos em atitudes e comportamentos intimistas e “particularistas”, construídos (e incentivados) pelas instituições (e valores) sociais neoliberais. No caso da espiritualidade espúria, o culto de Deus interverte-se no culto de dEUs, isto é, culto narcísico do Eu. Estas são as condições de existência social que surgem do metabolismo social do trabalho reestruturado no capitalismo global, contribuindo para a exacerbação do fenômeno do “estranhamento” na sociedade burguesa.
Finalmente, podemos dizer que o neodesenvolvimentismo como modernização conservadora no Brasil nos projetou historicamente para um novo campo de possibilidade do pensamento crítico, capaz de elaborar um entendimento radical da civilização planetária do capital. O Brasil – quinta economia do mundo – está hoje no centro das misérias do capitalismo global, articulando, em si e para si, as contradições sociais da ordem metabólica do capital. Instigados pelo choque de capitalismo da década de 2000, procuramos exercer a critica do modo de civilização burguesa, que encontra no Brasil do século XXI, sua feição grotesca.
Estamos hoje na era de crise irremediável do neodesenvolvimentismo, que expressa em si e para si – e não poderia deixar de ser diferente – a crise rastejante do padrão civilizatório do capitalismo hipertardio nas condições históricas do declive civilizatório do capital. Mais do que nunca, o capital nas condições históricas do capitalismo global, se explicita como contradição viva, disseminando ilusões sobre suas possibilidades civilizatórias, principalmente na borda periférica da civilização do capital, como é caso do Brasil. Na verdade, existem contradições candentes entre promessas civilizatórias (postas como ideologia) e a efetividades da barbárie social como manipulação reflexiva do sujeito-que-trabalha.
O resgate da critica radical do capital, implica não apenas elaborar um tertium datur entre o social-reformismo e o esquerdismo político, pólos antitéticos e unilaterais que dilacera a esquerda brasileira; mas principalmente elaborar um pensamento critico e radical capaz de discutir a problemática do novo sociometabolismo do capital, apreendendo, por exemplo, as dimensões da precarização do trabalho vivo como precarização do homem como ser humano-genérico; e colocando como tarefa crucial, a construção da nova hegemonia socialista no país por meio da formação humana para além do dogmatismo e sectarismo que caracterizaram a esquerda marxista no século XX. 


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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org.

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