O
rebelde Benzema, Pogba e Sakho, astros da França. Lógica empresarial do
futebol aceita negros e árabes entre os astros, mas converteu estádios
em espaços para elites
Equipes multirraciais expressam potência dos
fenômenos migratórios. Mas pobres e não-brancos estão ausentes nas
arquibancadas e nas comissões técnicas
As maquiagens étnicas dos 32 times da Copa do Mundo refletem as
camadas sedimentares da migração global, nos últimos 500 anos. A
destruição colonial, pelos europeus, dos indígenas na América nos dá os
times quase inteiramente europeus no Chile, Argentina e México; a
Austrália poder considerada uma versão deste fenômeno na Oceânia.
Em grande parte do Novo Continente, a conquista foi seguida pela
importação maciça de trabalho escravo africano, o que está expresso na
mistura afro-europeia do Brasil, Equador, Honduras, Costa Rica,
Colômbia, Uruguai e Estados Unidos; embora neste último país os latinos
constituam uma categoria étnica própria. Em todo o continente, o futebol
continua a ser um território de mobilidade social para jovens pobres e
imigrantes. No Equador, os afro-equatorianos representam apenas 6% da
população, mas quase todo o plantel do time.
A mesma lógica acabou funcionando na Europa Ocidental, onde as
equipes foram moldadas por duas ondas de movimentos mais recentes.
Durante as migrações que acompanharam a descolonização e o longo boom econômico
do pós-guerra, a Inglaterra formou uma comunidade africana-caribenha; a
Alemanha recebeu trabalhadores turcos e a França absorveu os africanos
francófonos; os congoleses representam o mesmo para a Bélgica; os
surinameses, para a Holanda.
Em todos esses países, a mudança física da seleção tem servido tanto
como um emblema otimista de integração bem sucedida e como um pára-raios
para acusações de falta de autenticidade; quem canta ou não o hino
nacional antes dos jogos tornou-se uma referência de cidadania para
muitos comentaristas de extrema-direita.
Nas últimas duas décadas, novos fluxos de refugiados e migrantes
econômicos deixaram sua marca no futebol europeu. Ela apresenta-se no
negro Balotelli, o astro indiscutível da Itália; no time suíço, onde
quase dois terços dos jogadores têm ascendência imigrante; em jogadores
afro-alemães e afro-espanhís. Por outro lado, as equipes mais ao leste –
Bósnia, Croácia, Rússia e Grécia –, apesar de suas próprias
complexidades étnicas internas, são majoritariamente brancas.
As seleções mais etnicamente homogêneas da competição são Japão e
Coreia do Sul, ambos países com pequenas populações imigrantes. No
entanto, nas arquibancadas, há evidências abundantes de suas próprias
comunidades migrantes – brasileiros japoneses que partiram para as
plantações de café de São Paulo no final do século 19 e os
coreano-americanos. Estas diásporas, que permanecem em diálogo emocional
e pratico com seus países de origem, são melhor representadas pelo Irã e
Argélia. O treinador Carlos Queiroz convocou iranianos nascidos na
Suécia, Holanda e Alemanha. Dezesseis jogadores da equipe argelina
nasceram na França, mas optaram pelo norte da África.
Seja lá o que representem, os jogadores de futebol raramente se
reconhecem como imigrantes. Eles fazem parte de um mercado global de
trabalho de alta habilidade e remuneração — algo semelhante o que pode
ser encontrado em serviços financeiros e profissionais. As quatro
equipes da Africa Ocidental – Camarões, Nigéria, Gana e Costa do Marfim –
têm apenas seis de seus 92 jogadores em clubes nacionais e quatro deles
são goleiros.
A cidadania é negociável. A Croácia e Espanha “adquiriram”
respectivamente os brasileiros Eduardo e Diego Costa. Apenas os ingleses
e os russos, sem histórico de sucesso na migração futebolística, jogam
principalmente em casa, nas ricas ligas domésticas.
Se os campos da Copa do Mundo 2014 são um quadro vivo da diversidade e
da complexidade étnica do mundo, não é certo que o mesmo possa ser
dito sobre as torcidas ou as comissões técnicas. O holandês Patrick
Kluivert é um dos poucos rostos negros entre as comissões europeias.
Nenhum time latino-americano tem um técnico de origem africana ou
indígena. Gana e Nigéria optaram por técnicos locais, mas Camarões e
Costa do Marfim têm europeus no comando.
A Fifa tem investigado pequenos incidentes envolvendo cantos racistas
em meio às torcidas da argentina e mexicana e a presença de cartazes de
extrema-direita, até mesmo fascistas, entre as torcidas croatas e
russas. Mas o mais significativo é que nenhum grupo das arquibancadas
compartilha a diversidade étnica de seus respectivos times. É difícil
conduzir uma pesquisa demográfica a partir da cobertura televisiva
altamente seletiva dos jogos no Brasil, mas a torcida anfitriã parecia
incrivelmente branca e a maciça presença colombiana também. Suspeito que
o mesmo possa ser dito dos europeus.
Obviamente, a mesma lógica étnica e divisão classes que explica a
over-representação de grupos minoritários no futebol profissional
explica também sua relativa ausência no caríssimo turismo futebolístico e
nos altos comandos da partida.Quando a poeira baixar sobre a Copa do
Mundo, a Fifa – muito preocupada com o comportamento das torcidas em
relação ao racismo – poderia voltar sua atenção aos mundos privados do
racismo institucional e ao dilema mais amplo de tentar organizar um
festival universal em que apenas os ricos podem participar.
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