Major
Sebastião Curió, oficial remanescente da ditadura, abre o arquivo
secreto da Guerrilha do Araguaia, em junho de 2009 (fonte: Portal R7)
Por Edson Teles.
Punir ou
anistiar? Esta é uma das questões que hoje nos são impostas pela herança
da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Tais como as ditaduras na
Argentina e no Chile, o governo militar brasileiro se caracterizou pela
sistemática violação aos direitos de seus cidadãos por meio de um brutal
aparato policial-militar. E pior: o esquema repressivo foi montado e
mantido pelo Estado, que institucionalizou a prisão, a tortura, o
desaparecimento e o assassinato de opositores.
Hoje, o país se vê com o
problema de como conciliar o passado doloroso com o presente,
administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem
institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que
passadas décadas dos crimes parcela considerável da sociedade demanda
por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos
direitos humanos? Ou eles podem ser anistiados em nome da reconciliação
nacional?
Vimos,
recentemente, dois movimentos contrários que apontam para a questão
colocada. A apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de
Anistia foi válida para os “dois lados” (refere-se aos torturadores do
Estado e àqueles que resistiram ao regime militar); e a recente decisão e
encaminhamento do Ministério Público Federal de processo criminal por
casos de desaparecimento político durante a ditadura.
Em maio de
2010, o STF decidiu negar o pedido de reinterpretação da Lei de Anistia
de 1979 solicitado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Sob a
alegação de que a lei havia sido fruto de um amplo acordo político de
reconciliação do país, o Supremo silenciou-se sobre as graves violações
dos direitos humanos durante a ditadura militar. Considerou que um
Congresso sob o bipartidarismo, com senadores biônicos e sob leis de
exceção, com mortes e prisões ocorrendo em todo território nacional,
tinha legitimidade suficiente para representar os interesses da
sociedade brasileira. Ainda que tivéssemos produzido um acordo de saída
do regime ditatorial, qual é o empecilho de dizermos, hoje, sem a
presença marcante e forte de forças golpistas e ilegais atuando
abertamente, que vivemos em um país no qual a tortura não é aceita. É
digno de uma democracia que a suprema instituição de justiça do país
confirme anistia para funcionários públicos que torturaram, mataram e
desapareceram com pessoas que pensavam de modo diferente ou agiam para
resistir aos atos de violência? De fato, o STF, de acordo com o jogo de
forças, suspende o ordenamento jurídico criando um estado de exceção
dentro do Estado de Direito: a anistia aos torturadores.
Por outro
lado, agora, no fim de março de 2012, quase dois anos após a decisão do
STF, procuradores da República, reunidos no grupo de trabalho “Justiça
de Transição”, decidiram entrar com ação criminal contra o coronel
Sebastião Curió, comandante de forças de repressão à Guerrilha do
Araguaia, no início dos anos 1970. Curió foi apontado por diversas
testemunhas como o responsável pela prisão, tortura e desaparecimento de
cinco guerrilheiros capturados com vida. Parte das testemunhas é
formada por pessoas torturados pelo próprio Curió, enquanto outros são
militares que, em momentos diversos, assumiram oficialmente a prisão das
vítimas sob comando do coronel. A Procuradoria se vale da lógica penal
sobre o crime de sequestro (semelhante juridicamente ao
desaparecimento), o qual não se encontra finalizado enquanto o corpo não
é localizado (caindo a chancela de impunidade do STF para crimes
cometidos até 1979).
O fato é
que, independentemente da lei brasileira de 1979, o Brasil tem assinado
desde 1946 acordos internacionais – com poder de lei para os países
aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam
imprescritíveis. Ou seja, a qualquer tempo, entre a data do crime e a
abertura de investigações, o Brasil é obrigado a tomar providências em
favor da punição dos responsáveis.
Há três
condições para que um crime seja qualificado como de lesa humanidade:
ter sido autorizado por agentes ou instituições do Estado, ser cometido
por razões políticas, religiosas ou étnicas e atingir uma determinada
parte da população civil. Durante a ditadura, o governo militar criou os
departamentos de operações de informação (DOI-CODI), que funcionavam
dentro de quartéis, e institucionalizou a tortura, o assassinato e o
desaparecimento. Segundo o Ministério da Justiça, até o ano de 2011,
cerca de 65 mil brasileiros entraram com pedidos de indenização por
terem sofrido alguma violência durante o regime militar.
Além disso, o
argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar
algum dano às instituições democráticas não nos convence. De acordo com
pesquisa realizada em 20 países – incluindo os países da América do Sul
herdeiros de ditadura, como o Brasil –, pela cientista política
norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países
que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem
menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta
que a impunidade em relação aos crimes do passado implica incentivo a
uma cultura de violência nos dias atuais. Não é à toa que assistimos
frequentemente às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em
nossas delegacias, quartéis e dependências de segurança do Estado.
Enquanto os
torturadores do passado recente não forem julgados e punidos, não
teremos êxito nas políticas de diminuição da violência na democracia. É
preciso que o governo nomeie e coloque para funcionar a Comissão
Nacional da Verdade e que o judiciário assuma sua responsabilidade e
tarefa e apure as circunstâncias dos crimes da ditadura e puna os
responsáveis. Somente assim teremos como superar a presença da violência
do passado e construir uma democracia estável e respeitosa.
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Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão em ebook acaba de ter seu preço reduzido para apenas R$26. Compre nas livrarias Cultura, Saraiva e Gato Sabido.
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Edson Teles é
doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor
de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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