Tivesse vindo ao mundo por obra e arte de Alexandre Schwartsman, o ex-diretor do BC, baluarte da old fashioned
ortodoxia, seria o caso de dizer como o poeta que não havia nada de
novo sob o sol. Mas não foi assim, e daí a origem da polêmica que há
algumas semanas agita, discretamente é verdade, os corredores do
Instituto de Economia da Unicamp, berço da chamada escola campineira de
pensamento econômico.
O combustível da fogueira, para surpresa e mal-estar de “campineiros”
ilustres, foi um artigo publicado há algumas semanas pelo sociólogo e
economista José Luís Fiori, parceiro de longa data de Maria da Conceição
Tavares, com quem divide espaço na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), o outro polo da mesma matriz heterodoxa, contrária à
ortodoxia monetarista e ao liberalismo, que caracteriza a turma paulista
de João Manuel Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga Belluzzo, Wilson Cano e
Luciano Coutinho.
Publicado originalmente no jornal Valor, o artigo de Fiori causou estranheza. Intitulado O “desenvolvimentismo de esquerda”,
com aspas, o texto volta aos anos 1930 de Getúlio Vargas, onde localiza
as raízes de um programa desenvolvimentista “militar e conservador”. A
partir dos anos 1950, teria nascido sua versão “de esquerda”, segundo
Fiori, no momento em que as ideias desenvolvimentistas foram encampadas
pelo Partido Comunista Brasileiro, que apoiou Juscelino Kubitschek e seu
projeto dos 50 anos em cinco. A genealogia inclui o Instituto Superior
de Estudos Brasileiros (Iseb), criado em 1955 para projetar uma saída
“nacional-desenvolvimentista” para o País. E ainda a Comissão Econômica
para a América Latina (Cepal), sediada no Chile.
A
"Escola de Campinas" reage à provocação de ter se tornado tecnocrática e
obtusa. Foto: "A Provacação", ilustração de autor desconhecido, de 1776
A ruptura política de 1964, contudo, mudaria o rumo dessa história,
como é sabido. “Três dias depois do golpe, o Iseb foi fechado; o PCB
voltou à ilegalidade e a própria Cepal fez uma profunda autocrítica de
suas antigas teses desenvolvimentistas. Mesmo assim, apesar dessas
condições políticas e intelectuais adversas, formou-se na Universidade
de Campinas, no final dos anos 1960, um centro de estudos econômicos
capaz de renovar as ideias e as interpretações clássicas – marxistas e
nacionalistas – do desenvolvimento capitalista brasileiro”, anota Fiori.
“Hoje parece claro que a ‘época de ouro’ da Escola de Campinas foi da
década de 1970 até a sua participação decisiva na formulação do Plano
Cruzado, que fracassa em 1987. É verdade que logo depois do Cruzado, e
durante toda a década de 1990, a crise socialista e a avalanche
neoliberal arquivaram todo e qualquer debate desenvolvimentista. (…) Mas
parece claro que a própria escola recuou, nesse período. E dedicou-se
cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas, e para a
formação cada vez mais rigorosa de economistas heterodoxos e de quadros
de governo”.
Em seguida o sociólogo ajusta a sua pontaria. “Com
raras exceções, depois do Cruzado, a ‘escola campineira’ perdeu sua
capacidade de criação e inovação dos anos 1970, e a maioria das suas
ideias e intuições originárias acabaram se transformando em fórmulas
escolásticas. Por isso, não é de estranhar que neste início de século
XXI, quando o desenvolvimentismo e a escola campineira voltaram a
ocupar- um lugar de destaque no debate nacional, a sensação que fica da
sua leitura é que o ‘desenvolvimentismo de esquerda’ estreitou tanto o
seu ‘horizonte utópico’ que acabou se transformando numa ideologia-
tecnocrática, sem mais nenhuma capacidade de mobilização social. Como se
a esquerda tivesse aprendido a navegar, mas ao mesmo tempo tivesse
perdido a sua própria bússola”, provoca Fiori.
Coordenador da Rede Desenvolvimentista e representante ativo da “nova
geração campineira”, o economista Ricardo Carneiro, professor do
IE/Unicamp, ao ler o trecho final do artigo de Fiori, enviou seu e-mail
de protesto ao autor. “Eu disse a ele que se o debate relevante ao País
não está no desenvolvimentismo, onde está então? Quem está fazendo isso?
É o PSOL? É alguma ONG? Não é na UFRJ, que na verdade tem menos
expressão do que aqui. E se ele acha que não está em nenhum lugar, então
vá pra casa, se aposente. Para mim existe e está nesse burburinho
desenvolvimentista que junta contribuições de governos, universidades e
da sociedade civil. Propusemos trazer essa discussão para dentro da
universidade, mas ele não quis participar.”
Um fórum adequado seria a Rede Desenvolvimentista, criada em dezembro
passado, hoje com 52 participantes, a maioria da Unicamp e UFRJ, entre
os quais o próprio Fiori, mas também outros “medalhões” associados ao
pensamento heterodoxo, como Carlos Lessa e Luiz Carlos Bresser-Pereira.
“Concordo com a crítica da fragmentação das análises
mais recentes, mas esta é uma constatação que não dependeu das pessoas,
mas das conjunturas. Curioso é que o Fiori não vê que o próprio
desenvolvimento recente do País favorece uma retomada da discussão mais
ampla”, acrescenta Carneiro. “E não vejo qual o problema de ter um
pensamento que resulte em quadros para trabalhar no governo, apesar de
eu e vários outros terem preferido permanecer na academia. O
desenvolvimentismo não é uma concepção teórica. É uma estratégia de
desenvolvimento. E claro que é possível dar ao desenvolvimentismo um
conteúdo na direção do socialismo, mas para isso é preciso ampliar a
oferta de bens públicos para reduzir as desigualdades no longo prazo. A
história nova foi colocar o social no eixo do desenvolvimentismo.”
Fernando Nogueira da Costa, colega de Carneiro na Unicamp, segue a
mesma linha de análise: “Podemos dizer que a tradição aqui é, sim,
desenvolvimentista, ao contrário da USP de Fernando Henrique Cardoso,
que sempre foi anti-Vargas. E hoje, participando dos governos de Lula e
Dilma, estamos seguindo essa tradição”. E acrescenta: “A crítica do
Fiori é válida, provocadora de todo um debate e não deve ser descartada.
Mas ele atacou quem ele não leu, já que a minha geração pôde publicar
pouco, mas tem produção eletrônica e de pesquisa muito relevante. O IE
começou com nove professores, nos anos 1960, mas já teve 110 no total. E
ganhou escala com centros de pesquisa especializados, núcleos de
excelência em várias áreas. É uma geração especialista porque aquela
visão sistêmica já tinha sido feita, o diagnóstico geral, então
precisávamos aprofundar as análises.”
Procurado por CartaCapital, Fiori respondeu que preferia não se manifestar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário