Professora
livre-docente do Departamento de Sociologia da USP e vice-coordenadora
do Laboratório de Pesquisa Social (Laps-USP), Vera da Silva Telles
apresenta em entrevista um panorama da gestão dos conflitos nas grandes
metrópoles globais e sua aplicação em atos que ocupam ruas e praças,
como o Passe Livre
|
|||
por Cristiano Navarro e Luís Brasilino | |||
Dezesseis anos após os grandes protestos durante a reunião da
Organização Mundial do Comércio, em 1999, em Seattle (Estados Unidos),
as estratégias militares de controle de multidão aperfeiçoaram-se. O
desenvolvimento das tecnologias de videovigilância, armamento menos
letal, rastreamento e a criação de uma legislação de criminalização
antiterrorista tiveram como laboratório outros confrontos semelhantes em
capitais de países centrais durante encontros de chefes de Estado,
fóruns mundiais e grandes eventos esportivos. Seu refinamento tem sido
testado por Estados Unidos e Israel nas intervenções militares na Faixa
de Gaza, Iraque e Afeganistão. No Brasil, mais do que um legado da Copa
do Mundo e dos protestos de junho de 2013, a repressão histérica e
brutal contra os movimentos sociais urbanos, especialmente no Rio de
Janeiro e em São Paulo, inaugura a estratégia de guerra de baixa
intensidade com altíssimo investimento em um sistema repressivo
totalmente militarizado. Confira a seguir entrevista sobre a violência
de Estado com a professora livre-docente do Departamento de Sociologia
da USP, Vera da Silva Telles.
DIPLOMATIQUE – Como você observa a violência e as estratégias de repressão e controle do Estado brasileiro hoje?
Vera da Silva Telles – De partida, diria que seria importante nos
desvencilharmos de um tipo de explicação que apenas evoca a atualização
de nossas tradições autoritárias, que vem do fundo de nossa história.
Por essa via, tudo já aparece previamente explicado, já codificado, sem
abertura para entender o que há de novo nisso tudo. Pois quer me parecer
que traços fundamentais dessa violência atual estão em fina sintonia
com o que está acontecendo no cenário das grandes metrópoles globais.
Então, o primeiro passo é situar esse contexto. E ver como isso
ressignifica, atualiza e potencializa as dimensões mais perversas e
truculentas da nossa tradição, como o nível de letalidade da polícia
militar, a tortura e a questão das prisões. Assim, por exemplo, vale
observar a maneira como tem sido feita a gestão do conflito nas grandes
metrópoles. A repressão contra o MPL (ver boxe) não é apenas policial,
mas também segue uma lógica e uma cenografia militarizadas, com
dispositivos militarizados, e isso tem sido a prática da gestão de
conflitos em todas as grandes cidades do Norte e do Sul globais. Essa
tem sido a marca das formas de repressão e controle dos protestos,
conflitos e manifestações contra a globalização nos anos que se seguiram
a Seattle, em 1999, mas também em outras formas do conflito urbano que
tem surgido no cenário das grandes cidades nos últimos anos. Essa é
questão que tem pautado muitas das discussões recentes, muitas delas
lançadas por ativistas militantes e/ou pesquisadores envolvidos no
ativismo urbano. Para ir direto ao ponto: tudo indica que, nos últimos
anos e mais intensamente a partir dos anos 2000, passou-se do que a
literatura sobre movimentos sociais define como gestão negociada dos
conflitos para outro padrão de controle e repressão, em grande medida
regido por uma concepção de ordem pública cada vez mais tomada –
colonizada, dizem alguns – pela chamada “guerra ao terrorismo”, a qual
se desdobra, como um de seus avatares, na “guerra contra a insurgência
urbana”. E isso envolve não apenas o aparato militarizado da chamada
contenção do conflito – tudo isso que vimos em 2013 e 2014 e agora, mais
recentemente, nas últimas manifestações do MPL: o dito envelopamento
dos manifestantes, a tática do cerco e bloqueio de vias de acesso, o
chamado policiamento desproporcional (ao que se diz, técnicas de gestão
de multidões), tudo isso acompanhado por pesado aparato militarizado
(batalhões de choque, máscaras, cães, armas ditas não letais etc.). Além
disso, prescrições legais e administrativo-burocráticas que terminam
por derrogar prerrogativas estabelecidas da atividade e manifestação
política, e também práticas, muitas delas de legalidade duvidosa, de
averiguação, prisões, controle, vigilância, rastreamentos eletrônicos
etc.
Trata-se de um conjunto de práticas, técnicas de controle e
dispositivos que terminam por criminalizar o protesto urbano, agora
visto na chave da insurgência urbana e ameaça à ordem pública.1 Vimos
isso em 2014, por ocasião das manifestações em torno dos preparativos e
realização da Copa do Mundo: a lógica militarizada de contenção e
repressão dos protestos foi acompanhada por normativas jurídicas,
portarias e instrumentos judiciais, de legalidade mais do que duvidosa,
introduzindo dispositivos de exceção no ordenamento jurídico: desde a
proibição de máscaras em protestos públicos (no Rio de Janeiro) passando
pela autorização legal para prisões “para averiguação” não por conta de
alguma infração cometida, mas pela suspeita de um possível dano que se
supõe que poderá ser cometido no futuro próximo, além de alterações do
Código Penal e tipificação do crime de organização criminosa, em
formulação que claramente criminaliza protestos e manifestantes. Não é o
caso aqui, agora, de discutir os vários procedimentos e dispositivos
postos em ação em 2013 e 2014. Por ora, vale dizer que essas questões
todas não podem ser vistas apenas e simplesmente como acontecimentos
pontuais de nossa história recente. O fato é que, como tem sido notado
pelos pesquisadores e observadores-ativistas da cena urbana
contemporânea, os protestos em torno dos grandes eventos globais (sejam
as cúpulas mundiais, sejam os megaeventos esportivos e outros) parecem
se configurar como laboratórios dessa gestão militarizada dos conflitos.
E temos aí algumas pistas a serem seguidas para entender a lógica do
conflito urbano no cenário contemporâneo. De um lado, são protestos que
ocupam a praça pública e disputam os usos dos espaços urbanos, em uma
crítica aberta e prática às várias formas de privatização e
mercantilização das cidades, seus espaços, seus equipamentos, seus usos.
De outro (e concomitantemente), a lógica militarizada de repressão e/ou
contenção termina por transfigurar a cidade em “campo de batalha”,
campo de guerra, ao mesmo tempo que os repertórios da ação coletiva
tendem a ser criminalizados, no registro da “insurgência urbana”. Como
vem sendo notado por muitos – e basta observar o que vem acontecendo no
cenário contemporâneo –, a chamada “guerra ao terrorismo” vem
colonizando as noções de ordem pública e ordem urbana, cada vez mais
regidas por princípios securitários que, na prática, terminam por
introduzir dispositivos de exceção no ordenamento jurídico.
O artigo de Marta Machado e Guilherme Leite Gonçalves publicado no Le Monde Diplomatique Brasil2 sobre
o projeto de lei antiterrorismo, aprovado no Senado, é especialmente
interessante para discutir essas questões. De um lado, um texto legal
composto “de expressões indeterminadas e maleáveis capazes de comportar,
a gosto ou conforme ideologia do intérprete, condutas e contextos dos
mais diversos possíveis” – na análise cuidadosa que os autores fazem
desse texto, fica evidente que é todo um repertório da ação coletiva e
do protesto social, urbano e rural, que é posto sob suspeita, podendo
ser tipificado como atos terroristas. Além disso, boa parte de seus
tópicos criminaliza ações não por conta de alguma infração cometida, mas
por uma suspeita de algo que pode acontecer ou de um comportamento
passível de ser tipificado como tal, a depender dos contextos e
circunstâncias. Na prática, trata-se de uma derrogação de garantias
legais próprias do estado de direito. Como mostram outros artigos
publicados nesse número do jornal, isso não é uma exclusividade
brasileira, e o que vai se delineando nesse cenário são as figuras do
Estado securitário, com dispositivos de exceção sendo introduzidos nos
ordenamentos jurídicos de diversos países. Por outro lado, é importante
reter a questão que os autores comentam: o contexto em que as propostas
de lei antiterrorismo começam a circular (na proximidade de realização
da Copa do Mundo de 2014) e as injunções (e pressões) dos acordos
comerciais Brasil-Estados Unidos. Quer dizer: trata-se, a rigor, de
garantir a segurança dos negócios da cidade-mercado. Daí o lugar mais do
que emblemático dos confrontos e protestos que dizem respeito
justamente a várias dimensões dessa mercantilização das cidades e seus
espaços.
DIPLOMATIQUE – O que é essa gestão urbana de que você fala?
Uma referência importante nessa discussão é o [urbanista britânico]
Stephen Graham,3 que mostra, em suas pesquisas recentes, que os espaços
urbanos e a vida cotidiana nas grandes cidades vêm sendo colonizados
pela racionalidade militar – práticas, procedimentos, agenciamentos
institucionais regidos pela noção de guerra, guerra urbana. Daí essa
gramática bélica que vem regendo os modos de intervenção nos espaços da
cidade: “guerra às drogas”, “guerra ao crime” e, agora, “guerra à
insurgência urbana” associada aos protestos de rua. O fato é que cada
vez mais o governo das cidades e o governo da segurança se entrelaçam e
se confundem sob o primado da gramática bélica, que projeta a cidade
como campo de guerra, tendo em mira comportamentos, eventos,
circunstâncias vistos como ameaça à ordem e segurança, em particular
segurança dos mercados, dos negócios e seus circuitos. Vale notar: nessa
lógica e sob essa gramática, tende-se a esfumaçar as diferenças entre
crime, protestos de rua e comportamentos “indesejáveis”, tudo isso posto
como ameaça real ou potencial à segurança urbana.
A noção de “guerra urbana” não é apenas de uso retórico. Como mostram
Graham e outros estudiosos do assunto, é uma noção que faz parte do
repertório militar, de seus manuais e doutrinas, acompanhando o grande
laboratório de novas tecnologias de controle, vigilância e contenção
postos em prática nas regiões de intervenção militar – Iraque,
Afeganistão, Gaza –, tendo de lidar com o que é chamado de “guerra de
baixa intensidade”, na qual não se trata propriamente de combate entre
exércitos, mas de um combate a “forças oponentes” que se confundem com a
população civil, da mesma forma como o “campo de batalha” se confunde
com a cidade, seus meandros, seus circuitos, seus equipamentos, suas
redes. Graham mostra que esses “experimentos” militares transbordaram
para a gestão dos espaços urbanos das grandes metrópoles e, nesse caso,
os grandes eventos econômicos (os fóruns mundiais), bem como os
megaeventos esportivos (Copa do Mundo, sobretudo), se transformaram em
laboratórios privilegiados para o exercício desses dispositivos no
contexto das metrópoles globais: os chamados “perímetros de exceção” em
torno dos locais em que os eventos ocorrem, as técnicas de rastreamento,
videovigilância e outros. Aliás, tudo isso amplamente colocado em
prática por ocasião da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. Nesse
transbordamento das tecnologias militares e sua generalização na gestão
dos espaços urbanos das grandes cidades, é preciso também lembrar: tudo
isso se tornou um mais do que poderoso, expansivo e rentável mercado, o
mercado da segurança, igualmente globalizado.
DIPLOMATIQUE – O que isso gera na sociedade com relação ao medo e à desconfiança entre as pessoas?
Há dois aspectos interligados nisso. De um lado, os dispositivos de
exceção postos em prática nas formas de controle e a dita contenção do
protesto urbano, e não apenas aqui no Brasil. Nessas várias modalidades
de controle e repressão, rapidamente comentadas antes, na prática se
termina por configurar um campo muito incerto, inseguro, próprio do que
se pode definir como “espaços de exceção”, que fazem por esfumaçar a
diferença entre a lei e o extralegal, entre o direito e a força, entre a
ordem e seu inverso. Até que ponto essas formas de intervenção das
forças da ordem chegam a ter o efeito pretendido de “dissuasão” é algo
ainda a ser verificado. Mas é possível trabalhar com a hipótese de que,
para além da repressão ao protesto que estiver na mira das forças da
ordem em certo momento, essas tecnologias todas têm uma dimensão de
controle social mais amplo, cujos efeitos ainda seria preciso
averiguar.
De outro lado, colocando a questão em um registro mais geral, seria
possível dizer que a lógica securitária que parece reger as noções de
segurança e ordem pública se efetiva em boa medida por aquilo que vem
sendo definido como gestão de riscos – riscos à segurança urbana, à
segurança dos mercados, dos negócios etc. Aqui, entramos em um terreno
bem nebuloso. É o que fica patente na lei antiterrorismo. Mas é também o
que aparece em aspectos mais “triviais” da vida urbana. Trata-se de
combater uma ameaça provável – é uma probabilidade. É diferente da
punição de um crime, quer dizer, algo que é tipificado enquanto tal
(como se sabe, em termos formais, o “crime” supõe um sistema de direito,
é definido e tipificado enquanto tal, julgado e punido enquanto tal) e
remete a algo que tenha sido feito, e não a algo que pode acontecer em
algum momento. A gestão dos riscos trabalha com ameaças prováveis e,
nessa lógica, os comportamentos postos sob suspeita podem ser qualquer
coisa em qualquer momento, a depender das microconjunturas políticas, do
arbítrio das forças policiais no momento, das circunstâncias de tempo e
espaço da vida urbana. Na mira, os comportamentos “indesejáveis”. Na
prática, isso significa uma ampliação extensiva e proliferante das
situações e tipos urbanos na mira de operações de controle, dos
protestos de rua às pequenas infrações legais, passando pelo comércio
informal, populações de rua, jovens barulhentos e inconvenientes – todos
colocados sob o signo “risco e ameaça à ordem urbana”. É a lógica da
suspeita generalizada.
O fato é que essa lógica do risco, gestão do risco, é algo que vai se
introduzindo igualmente nos ordenamentos jurídicos. Isso está no projeto
e na lei antiterrorismo comentados antes. Mas também está na Portaria
de Garantia da Lei e da Ordem, editada pelo Ministério da Defesa,
publicada em janeiro de 2014, em versão ligeiramente atenuada de uma
primeira versão (de dezembro de 2013), definindo as orientações para o
emprego das Forças Armadas em operações de defesa da ordem, tendo como
alvo as chamadas “ameaças” associadas às “forças oponentes”, entre as
quais constam, junto com organizações criminosas, traficantes e
contrabandistas, os movimentos sociais e parte considerável do
repertório da ação coletiva e protesto urbano.4 No projeto de lei do
antiterrorismo, a suspeita generalizada está posta como princípio
regulador na própria (não) definição do ato terrorista e das situações
passíveis de serem assim definidas.
É o caso de pensar quanto essa lógica da suspeita não contamina o jogo
das relações cotidianas, nas várias circunstâncias e contextos da vida
urbana. Ainda: é o caso de perguntar quanto isso não alimenta a lógica
punitiva e a fúria punitiva que parece estar tomando conta das várias
situações da vida cotidiana e da vida política. Isso é corrosivo.
DIPLOMATIQUE – O número de mortes por policiais no Brasil
superou 3 mil casos em 2014, 37% a mais do que em 2013. O que influencia
esse comportamento mais letal da polícia?
Esse é um ponto importante. Permite retomar o começo desta nossa
conversa: até que ponto esse traço de nossa história e de nossas
tradições é atualizado, potencializado na configuração atual da qual
estamos falando. É uma configuração que termina por avalizar a lógica do
extermínio, do esquadrão da morte, das escolas militares, das milícias.
Mas também nesse ponto ainda será preciso entender melhor esse avanço
conservador, de direita (uma direita não liberal), não apenas no Brasil,
mas em muitos outros países; quanto isso tem a ver com essa “política”
que se faz pela gestão dos medos, fabricando medos urbanos, medos
sociais, medos políticos.
DIPLOMATIQUE – No Brasil, a população carcerária tem crescido
muito, ao contrário de países como Estados Unidos, China, Rússia, que
possuem o maior número de presos do mundo, mas estão diminuindo a
quantidade de encarcerados. Qual é o papel das prisões nessa gestão?
Uma questão que está posta no cenário atual, não apenas no Brasil, mas
também nas grandes metrópoles globais: a prisão, o encarceramento, como
dispositivo de gestão de população. No Brasil, em São Paulo em
particular, mas também em outras cidades do chamado Norte global, ao que
parece essa é uma prática que está se tornando corrente: o uso de
prisões temporárias, algumas delas em circunstâncias de legalidade bem
duvidosa, com o objetivo de tirar certas populações da rua – populações
indesejáveis. Quer dizer: o encarceramento também funciona ou pode
funcionar como um dispositivo de gestão de espaços urbanos. Muitas
vezes, isso inclui gente que simplesmente transgride certos códigos
urbanos de conduta, em pequenos deslizes que não chegam a configurar
crime, mas caem justamente no campo dos “comportamentos indesejáveis”.
Aqui, claramente temos uma questão ainda a ser mais bem trabalhada e
entendida: a prisão como dispositivo de gestão de espaço e populações.
Nesse sentido, vale recuperar uma pesquisa importante da Pastoral
Carcerária e do ITTC [Instituto Terra, Trabalho e Cidadania] sobre o
aumento da prisão provisória,5 pessoas ainda sem julgamento, que
totalizavam, em 2012, um terço da população carcerária – parte
considerável de craqueiros, prostitutas, população de rua, que passam
uns meses presos e são liberados, porque não cometeram crime nenhum. Mas
nesse meio-tempo já estão fichados e sob a mira do controle. Não sei
dimensionar isso, mas o aumento da população carcerária tem a ver com
controle de população. Isso é um traço da gestão urbana das grandes
cidades globais. Com certeza, a prisão por tráfico de drogas tem muito a
ver com isso. Como se sabe, o controle se faz justamente nesse terreno
incerto entre o tráfico e o consumo, e o que parece prevalecer, de fato,
é a estratégia de tirar essas populações da rua, sob a lógica da
incapacitação e da segregação.
****
BOX
Alckmin, qual é o trajeto?
Eram 9 horas da noite quando o secretário de Segurança Pública de São
Paulo, Alexandre de Moraes, anunciou em coletiva de imprensa no Centro
de Operações da Polícia Militar (Copom): “Para que se evite a
necessidade do confronto pessoal, para que se evite a necessidade do uso
da força pessoal, que isso pode deixar os manifestantes machucados,
foram usadas as bombas para dispersar. [...] A manifestação, quando não
for previamente avisada, o traçado será acordado na hora e ele será
cumprido. Hoje, a estratégia utilizada pela Secretaria de Segurança
Pública vai ser a estratégia usada em todas as manifestações” (G1.com,
12 jan. 2016).
Menos de duas horas antes, por meio de sua página no Facebook, o padre
Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, exclamava: “Estou na
[Avenida] Paulista. Acabo de presenciar um massacre pela PM, muitas
bombas e truculência. Estamos em meio a uma guerra! [...] Liberdade de
manifestação não existe em SP, foi suprimida pela força e pelas bombas,
fui alvo de várias, não há diálogo possível, tentamos tudo!”.
Era dia 12 de janeiro de 2016, data do 2º Grande Ato do Movimento Passe
Livre pela redução das tarifas de transporte público em São Paulo (SP),
que haviam subido de R$ 3,50 para R$ 3,80 três dias antes. A
manifestação, que reuniu cerca de 5 mil pessoas, estava marcada para a
Avenida Paulista e, de acordo com assembleia realizada durante a
concentração, deveria descer a Avenida Rebouças e terminar no Largo da
Batata. A Polícia Militar, entretanto, cercou o protesto e avisou que
deixaria a passeata seguir somente no sentido da Rua da Consolação, com
dispersão no centro antigo da capital.
Após aproximadamente uma hora de impasse, a PM, que havia envelopado o
protesto numa tática condenada até mesmo pelo manual da corporação,1 a
panela de Hamburgo, começou a atirar bombas e balas de borracha contra
os manifestantes cercados. Foi uma bomba a cada sete segundos, durante
seis minutos, totalizando 49 artefatos. Ao menos 24 pessoas ficaram
feridas pelos estilhaços de granadas ou golpes de cassetete.2
Estava inaugurada a nova modalidade de criminalização dos movimentos
sociais em São Paulo: a exigência de divulgação prévia do trajeto das
manifestações. O MPL então passou a anunciar o percurso dos atos, até
que, em 21 de janeiro, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) emitiu
nota rejeitando o caminho do 5º Grande Ato e apresentando a alternativa a
ser seguida. A PM fez valer o trajeto do governo. Porém, ao chegar à
Praça da República, mais uma vez a manifestação foi reprimida, deixando
ao menos nove feridos. Em 37 segundos, foram 21 explosões de bombas
jogadas pela polícia (Folha de S.Paulo, 22 jan. 2016).
Como o MPL recusou-se a definir com antecedência o percurso do ato
seguinte, realizado no dia 26 sem maiores incidentes, a secretaria
decidiu por si própria qual seria o trajeto. “A SSP lamenta que, mais
uma vez, o Movimento Passe Livre negou-se a comunicar previamente as
autoridades sobre o trajeto e destino da manifestação [sic]. A
comunicação prévia é uma exigência constitucional”, comunicou em nota
oficial.
O coletivo Advogados Ativistas reitera, no entanto, que a Constituição
não prevê a obrigatoriedade de uma manifestação popular anunciar às
autoridades públicas seu trajeto, “tanto é assim que, de 1988 até 2016, a
divulgação do trajeto nunca foi exigida”. (L.B.)
1 Ver:
http://justificando.com/2016/01/13/tatica-policial-utilizada-em-repressao-de-protesto-e-condenada-pelo-proprio-manual-da-pm/.
2 Ver: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,pm-explodiu-uma-bomba-a-cada-sete-segundos-na-paulista,10000006953.
****
Cristiano Navarro e Luís Brasilino
Cristiano Navarro e Luís Brasilino são editores do Le Monde Diplomatique Brasil
Ilustração: Daniel Kondo 1 Uma boa discussão, apoiada em um inventário bem documentado disso tudo, seguindo a cronologia dos protestos altermundialistas desde 1999, pode ser encontrada em Amory Starr, Luis Fernandez e Christian Scholl, Shutting down the streets: political violence and social control in the Global Era [Fechando ruas: violência política e controle social na Era Global], New York University Press, Nova York/Londres, 2011. 2 “Por uma lei antiterrorismo de Estado. Ou não sobrará ninguém”, Le Monde Diplomatique Brasil, dez. 2015. 3 Ver Cities under Siege [Cidades sitiadas, em tradução livre], no prelo pela Boitempo. 4 Ver Beatriz Macruz, Cristiano Navarro, Guilherme Zocchio e Luís Brasilino, “O Estado brasileiro contra os movimentos sociais”, Le Monde Diplomatique Brasil, nov. 2014. 5 Ver Patrícia Benvenuti e Cristiano Navarro, “Provisoriamente condenados... até que se prove o contrário”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2013. |
Sindicato dos Servidores Públicos do Judiciário Estadual na Baixada Santista, Litoral e Vale do Ribeira do Estado de São Paulo
Pesquisar este blog
segunda-feira, 21 de março de 2016
A violência de Estado em guerra contra a população civil
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário