Jorge Luiz Souto Maior
É importante saber que se há uma crise
econômica é porque no capitalismo as crises são cíclicas e inevitáveis,
sendo certo que se o capitalismo tem sido capaz de se reinventar na
superação de cada crise, também é certo que as crises, no processo
dialético, têm sido cada vez mais graves e profundas. Elas exigem que se
leve a sério a necessidade de se pensar na organização de um novo
modelo de sociedade, sob pena de, falseando a realidade, sermos
conduzidos à barbárie pensando que estamos fazendo algo efetivo para
melhorar as coisas, como se dá, por exemplo, com o projeto de redução da
maioridade penal.
Claro que a inevitabilidade da crise não
retira as responsabilidades de ações políticas e econômicas que podem
acelerar o ciclo ou piorar o problema. Há, por certo, várias críticas
que se podem fazer ao governo federal neste assunto, como, por exemplo,
referente ao modo como lidou com os direitos trabalhistas, tratando a
classe que vive do trabalho como mera reprodutora da lógica do capital,
propondo uma inserção social apenas por meio do consumo e não pela
realização de projetos sociais de base.
Mas não é possível concluir que sem os
erros que possam ser apontados não adviria uma crise, como se o
capitalismo fosse sempre justo, bom e equilibrado. São os governos os
culpados de algum eventual desajuste, sendo mais grave ainda querer
obter um benefício político eleitoral da crise, tentando fazer supor, de
forma absolutamente artificial, que a crise não adviria caso outros
nomes sejam conduzidos ao poder governamental.
Por outro lado, parece-me também
equivocado imaginar que não se possa interferir no percurso histórico e
que toda racionalidade só tem sentido para o desencadear de um processo
revolucionário. Mesmo com limites, muito pode se fazer quanto à
declaração e à efetivação de direitos sociais. Tanto os governos quanto
às instituições e a classe trabalhadora, na cobrança e na luta, são
responsáveis pelo incremento dessa obra, que se não é suficiente para
superar a lógica capitalista (baseada na concorrência e na exploração do
trabalho, que parte do pressuposto da acumulação do capital e da
desigualdade social) ao menos é capaz de minorar os sofrimentos
pessoais, o que é, para tantos, essencial, além de estimular a
organização política e as próprias práticas emancipatórias.
Vale perceber, também, que o tamanho
real da crise não há como ser medida e esta pode, portanto, ser bastante
aumentada por rumores e medos. Os receios e as incertezas do futuro
fazem com que muitas empresas, para não sofrerem perdas que possam, mais
adiante, ser irreparáveis, pensem em saídas como a diminuição de custos
com a redução de pessoal ou mesmo como a diminuição de salários por
meio da redução da jornada. Isso, no entanto, apenas reforça a lógica da
crise, vez que o desemprego piora o consumo, seja pela perda mesmo de
consumidores, já que os desempregados perdem os seus ganhos, seja pelo
medo que aqueles que ainda estão empregados têm de consumir, preferindo,
em atitude responsável, poupar o dinheiro. Essa redução drástica do
consumo causa prejuízo às próprias empresas, mesmo àqueles que buscaram
soluções por meio de demissões.
O que se percebe no noticiário de boa
parte da grande mídia é que muita gente, infelizmente, está apostando na
crise, isto é, incentivando os sentimentos que a agravam.
A quem interessa isso? As respostas não
são óbvias. No entanto, a hipótese mais visualizável é a de que a crise
econômica interessa a quem deseja estimular o advento de uma crise
institucional.
Claro que os fatos noticiados na grande
imprensa são relevantes e devem mesmo ser veiculados, apurados, para que
os responsáveis sejam efetivamente punidos. No entanto, se os casos
estão sendo noticiados, se as instituições (Justiça Federal, Ministério
Público Federal e Polícia Federal) estão funcionando, com políticos e
empresários de grandes corporações presos, parece-me que o propósito
dessa desintegração social vai além de trocar os nomes dos governantes e
do partido no poder.
O que se pretende, segundo se anuncia na
já divulgada Agenda Brasil, é justificar demandas de redução de
direitos trabalhistas, pressionando o governo para encampar as medidas
políticas necessárias para tanto. Este percurso é facilitado por uma
suposta dificuldade de resistência da classe trabalhadora, que se vê
diante do dilema de se opor à desestabilização institucional e com isso
favorecer a preservação de um governo que tem partido para cima,
literalmente, dos direitos trabalhistas, tendo encampado, inclusive, o
nefasto projeto de ampliação da terceirização e de privatização das
instituições públicas ligadas à educação, saúde, ciência, tecnologia,
desporto e meio ambiente, por meio da terceirização e da entrega da
administração de serviços públicos nas áreas mencionadas a OSCIPs e OSs,
ou de não fazer nada, para não se aliar aos propósitos de sustentação
do governo, e com isso ver seus direitos perecerem sem sequer ter lutado
por eles.
O mais grave é que a lógica de
diminuição do Estado e do ataque frontal aos direitos sociais, criada no
governo Collor, aprofundada no governo FHC e continuada nos governos
petistas, serviu para fragilizar a classe trabalhadora e ao mesmo tempo
aumentar o poder e a influência de alguns setores econômicos,
favorecendo a promiscuidade entre o interesse público e o interesse
privado da qual se alimenta a corrupção. Assim, quando se pensa em
mudanças na sociedade para a correção da corrupção, da forma como o tema
tem sido tratado, na linha da pessoalidade, não se está cuidando, nem
perifericamente, da reversão desse estado de coisas. Com isso, mesmo o
movimento pela moralidade está a serviço de interesses privados não
revelados, não sendo apto para a correção dos problemas da corrupção.
À classe trabalhadora é essencial
perceber que está em curso, de forma extremamente forte, um grande golpe
engendrado para a destruição de garantias sociais historicamente
conquistadas: MPs 664 e 665 (já convertidas nas leis n. 13.134/15 e n.
13.135/15) que ampliaram os requisitos para obtenção de benefícios
previdenciários; MP 680, que apresentou para os trabalhadores a conta da
crise, absolvendo empresas que obtiveram enormes lucros nas duas
últimas décadas; PLC 30/15, que trata da ampliação da terceirização; PL
8.294/14, que propõe a eliminação do direito do trabalho quando: “I –
o empregado for portador de diploma de nível superior e
perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o
limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social; II
– o empregado, independentemente do nível de escolaridade,
perceber salário mensal igual ou superior a três vezes o
limite máximo do salário-de-contribuição da previdência social”,
retomando, mais uma vez, de forma indireta, a ladainha do negociado
sobre o legislado; e dois esdrúxulos Projetos de Decreto Legislativo
(PDL), um com trâmite no Senado Federal, n. 43/15, e outro com trâmite
na Câmara dos Deputados, n. 1408/13, que visam sustar a aplicação da
NR-12, do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata da Segurança no
Trabalho em Máquinas e Equipamentos[1].
Em paralelo a isso, como forma mesmo de
se conseguir enfim levar às últimas consequências o projeto neoliberal
se está produzindo uma destruição das instituições públicas que seriam,
ao menos em tese, responsáveis pela aplicação do direito social e de sua
racionalidade.
Para a classe trabalhadora há uma
necessidade, paradoxal, portanto, de sair em defesa das instituições
democráticas, sem, com isso, legitimar tudo o que os governos, nos
últimos 20 anos têm realizado, e que ainda prometem realizar, no que se
refere ao ataque a direitos trabalhistas.
É importante afastar-se dos dilemas
políticos partidários e das chantagens da crise, que só servem para
mascarar a realidade e para evitar a produção de um raciocínio voltado
ao enfrentamento dos efetivos problemas que nos impedem de possuir uma
sociedade sem corrupção, sem desigualdades, sem opressões de toda
espécie, sem miséria e justa.
Aliás, ao falar isso já antevejo
comentários, vindos de todos os lados, acusando-me de sonhador, iludido
ou utópico. Mas o problema desses burocratas, que querem manter suas
regalias ou tentar assumir as regalias dos outros, pautando-se na
inexorabilidade ou na lógica do mal menor, é exatamente o de vedarem a
toda uma geração a possibilidade de ter sonhos e de lutar por um mundo
melhor, buscando mergulhá-los na individualidade egoísta.
Além disso, os ajustes de
sustentabilidade já firmados pelo governo com o setor econômico, à
revelia do debate popular, notadamente com a classe trabalhadora,
carregam consigo, em razão do próprio modo como estão sendo
concretizados, uma carga autoritária muito forte, sendo certo que a
sensação de um poder quase absoluto, percebida pelos setores que estão
conseguindo acuar o governo (que, de todo modo, não pode ser visto como
vítima), não verá limites para promover ações persecutórias, de índole
ideológica, no âmbito de instituições públicas e mesmo privadas.
Veja-se, por exemplo, a publicação, em 20/08/15, da Carta Aberta de Professores Eméritos da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
nenhum deles ligados ao Direito, direcionada ao Ministro da Educação,
pedindo a este que tome providências contra o Reitor da Universidade,
Prof. Eduardo Serra, precisamente porque este Reitor, enfim, após longos
anos de negação da ordem constitucional, resolveu respeitar o direito
de greve e sua lei reguladora (Lei n. 7.783/89), que determina que a
continuidade dos serviços essenciais deve ser deliberada de comum acordo
com os trabalhadores em greve. A Carta dos Eméritos em questão
representa, claramente, a tentativa de supressão das instâncias
institucionais, judiciais, para solução de conflitos, buscando uma
“solução” autoritária, ditada pelo império das próprias razões e com uso
da força do Estado impulsionada pela pessoalidade, ferindo, inclusive,
os princípios constitucionais do ato administrativo (art. 37).
A Carta serve, portanto, para demonstrar
como as articulações para um golpe fazem escola e para advertir quanto é
importante defender as instituições democráticas em momentos de pouca
tolerância e escassa racionalidade como o que vivemos.
Há, pois, uma emergência na defesa das
instituições democráticas e dos direitos sociais e humanos, não
representando isto uma defesa do governo e muito menos da impunidade.
O fato é que a quebra da
institucionalidade seria, por certo, um problema imediato para toda a
sociedade e, em especial, para a classe trabalhadora. Claro que não
seria o fim da história e pode até ser que deixar a crise do capitalismo
chegar ao extremo, como pretendem mesmo alguns setores do grande
capital, conduza a um processo dialético mais intenso, sendo
compreensível, por isso, que parte da esquerda também aposte na crise e
até mesmo que parte do setor econômico, também percebendo isso, comece a
reduzir seus impulsos para estimular o aprofundamento da crise
econômica, política e institucional.
Mas não me parece que seja racional e
mesmo humano apostar no caos. O processo histórico dialético,
certamente, é complexo e imprevisível. De concreto mesmo o que se tem
até agora é um ajuste entre o governo e alguns setores da economia para
fazer com que os trabalhadores paguem a conta da crise, haja vista o
advento abrupto, de cima para baixo, de uma tal “Agenda Brasil”, que
massacra os trabalhadores e esfacela as instituições públicas.
Ocorre que sem uma oposição a tudo isso,
com a pretensão de corroborar a Agenda ou com o objetivo de apostar no
caos para incrementar uma ação revolucionária mas sem uma agenda
concreta, ou seja, não se apresentando ao menos uma racionalidade
pautada pela fundamentalidade da democracia e dos direitos sociais e
humanos, que, bem ou mal, trazem algum projeto, o que resta é apenas a
sensação de uma completa desordem, que elimina utopias. Isso não apenas
atrai um individualismo pragmático, mas também gera intolerância,
alimentando ódios, violências, linchamentos, reações xenófobas e até o
advento de seitas fundamentalistas ou, simplesmente, desesperança,
desilusão e desânimo[2]. Não se trata, pois, de proposições que favorecem a avanços, e sim a graves retrocessos.
É urgente, pois, tentar estabelecer uma
racionalidade sobre as complexidades que envolvem o ponto central da
vida na sociedade capitalista que é a relação capital-trabalho,
inclusive para aproveitar a força que está nas ruas, que não deixa de
ser, ainda, um reflexo de junho de 2013.
Em vez da classe que vive do trabalho
ficar acuada e temerosa quanto às possibilidades de retrocesso, precisa
retomar as ruas e colocar as suas pautas, que devem ser: a defesa da
democracia, das instituições públicas e dos direitos trabalhistas e
sociais. É totalmente pertinente, portanto, os lemas que correm entre os
trabalhadores: “nenhum direito a menos” e “os trabalhadores não vão
pagar pela crise”.
Do ponto de vista jurídico, impõe-se a
defesa da ordem constitucional vigente, que instituída a partir da noção
de Estado Democrático de Direito, prevê, em seu artigo 3º, como
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir
uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento
nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.
Esta mesma Constituição, ademais,
fazendo menção às relações internacionais, deixa claro que o Estado
brasileiro se rege pelos princípios da prevalência dos direitos humanos
(inciso II, art. 4º); da defesa da paz (inciso VI, art. 4º); da solução
pacífica dos conflitos (inciso VII, art. 4º); e da cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade (inciso IX, art. 4º). A propriedade
possui, necessariamente, uma função social (conjugação dos incisos XXII
e XXIII do artigo 5o e incisos II e III do art. 170 e art. 184).
A economia, por sua vez, deve pautar-se
pelos ditames da justiça social (art. 170) e os direitos sociais, no
projeto constitucional, foram alçados ao Título dos Direitos e Garantias
fundamentais. O artigo 6º garante a todos os cidadãos “a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados”. O art. 7º consagra o postulado da melhoria da
condição social aos trabalhadores. E o art. 9º confere aos trabalhadores
o direito de lutar por meio da greve.
Desses dispositivos todos decorre o
princípio do não-retrocesso, que impede, concretamente, a redução de
direitos, sobretudo como fórmula para sair da crise. Além disso, impedem
dispensas coletivas e garantem aos trabalhadores os direitos de
resistência e de greve, para se oporem contra os ataques aos seus
direitos e para lutarem por melhores condições sociais e econômicas, que
adviriam com a eliminação da terceirização[3],
a garantia contra a dispensa arbitrária, a redução da jornada sem
redução salarial, a proibição do trabalho em horas extras de forma
habitual[4],
o respeito ao concurso para acesso ao serviço público, a reversão dos
efeitos da ADI 1923 (dos convênios no serviço público), a revogação das
leis n. 13.134/15 e n. 13.135/15 etc.
Sem a necessidade de qualquer advento
futuro, cumpre verificar que a jurisprudência trabalhista atual, que
começou a ser construída por ocasião da crise de 2008 para impedir que
as ameaças de desemprego fossem utilizadas como argumento para a
diminuição de direitos, já se posicionou claramente no sentido de que as
dispensas coletivas, que requerem comprovação dos motivos técnicos e
econômicos por parte dos empregadores, devem ser definidas em negociação
coletiva com o sindicato dos trabalhadores, considerando exercício
abusivo do direito a dispensa que não atenda a essa condição. Vide, a
respeito: TRT 2ª R., SE 2028120080000200-1, AC. SDC 00002/2009-0, j.
22.12.08, Relª Juíza Ivani Contini Bramante, LTr 73-03/354; TRT 15ª R.,
DC 309-2009-000-15-00-4, AC. 333/09, DO de 30.03.09, Rel. José Antonio
Pancotti, LTr 73-04/476 e PROCESSO Nº TST-RODC-309/2009-000-15-00.4,
Rel. Ministro Maurício Godinho Delgado.
E mesmo essa negociação não pode servir
como mero instrumento de legitimação das dispensas vez que os
fundamentos da normatização coletiva são: a) fixar parâmetros
específicos para efetivação, em concreto, dos preceitos normativos de
caráter genérico referentes aos valores humanísticos afirmados na
experiência histórica; b) melhorar, progressivamente, as condições
sociais e econômicas do trabalhador.
Assim, não cumpre aos instrumentos
coletivos, fruto das negociações coletivas, apenas autorizar as
dispensas de trabalhadores. Uma negociação coletiva neste sentido é
juridicamente inválida. O requisito jurídico, estabelecido pela
jurisprudência relacionada, não é formal, mas de conteúdo. Exige, pois,
que se estabeleçam compensações para que se chegue ao sacrifício dos
trabalhadores, sacrifício este que deve atingir, igualmente, a diretores
e a acionistas da empresa. A negociação, além disso, deve ser
necessariamente precedida de demonstração da dificuldade econômica e de
estudos que demonstrem o resultado positivo da diminuição de empregos,
garantindo aos que ficam condições de trabalho em padrões de quantidade,
para que não se tente compensar a produção da saída de trabalhadores
com o aumento da produção dos que ficam. Além disso, a situação deve se
regular como temporária, fincando-se o compromisso da retomada da
situação anterior, já que o princípio do direito do trabalho é o da
melhoria da condição social dos trabalhadores e não o de se adaptar às
deficiências do modelo econômico.
O projeto constitucional é o da justiça
social e o que vem a ser justiça social? Nada mais é do que a
consideração valorativa de que todos os seres humanos estão integrados a
uma “família humana”, como consignado, aliás, na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, sendo certo que essa consideração faz com
todas as pessoas, pelo simples fato de terem nascido, devem ter acesso
aos meios necessários que lhes assegurem uma existência digna, isto é,
sem passar por privações que lhe impeçam a sobrevivência e a elevação
moral, intelectual, física, psíquica, econômica, social e política da
sua condição humana, tomando-se esse acesso como um direito, ou seja,
como obrigação do Estado e de todos os demais cidadãos nas suas
correlações subjetivas, e não como mero favor.
A fórmula jurídica básica para se
estabelecer esse valor nas relações sociais emerge da fixação do
princípio de que “o trabalho não deve ser considerado como simples
mercadoria ou artigo de comércio, mas como colaboração livre e eficaz na
produção das riquezas” (art. 427, da Constituição da OIT). Ora,
lembrando-se que o capitalismo é um sistema pelo qual a sociedade de
classes se organiza polarizada em duas classes sociais mais evidentes,
uma que ostenta o capital e os meios de produção e outra que para
sobreviver precisa vender seu trabalho para a produção de mais valor em
benefício da primeira, o que só foi possível com a transformação
histórica do trabalho humano em força de trabalho, qual seja, em uma
mercadoria como outro qualquer que se comercializa com obediência da lei
da oferta e da procura, de modo a favorecer a reprodução do capital, ao
se dizer que o “trabalho humano não é mercadoria” estabelece-se um
mecanismo com o qual se busca distribuir de forma mais equânime a
riqueza socialmente produzida, visando à satisfação dos objetivos
relacionados.
A função do Direito Social (em especial,
o Direito do Trabalho, por lidar com a relação básica da sociedade
capitalista, que é a relação trabalho-capital) é, portanto, distribuir a
riqueza coletivamente produzida, para fins não apenas de eliminar, por
benevolência, a pobreza, mas para compor o projeto de uma sociedade na
qual todos possam, efetivamente, adquirir, em sua significação máxima, o
sentido da cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo
certo que um dos maiores problemas que agridem a humanidade é a
injustiça.
A defesa concreta da dignidade humana é a
expressão máxima do Direito Social, na medida em que vislumbra a
formalização das bases existenciais necessárias para que esses valores
humanos sejam efetivados, sendo de se destacar que a maior relevância do
direito neste assunto diz respeito às pessoas que estão em posição
inferiorizada na sociedade dos pontos de vistas político, cultural,
social e econômico. A racionalidade imposta pelo Direito Social deve
permitir que se vislumbrem as angústias, as dificuldades e as restrições
que atingem todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as
que são mais vulneráveis economicamente, incentivando a prática de atos
voltados à efetiva defesa dos seus direitos.
Do ponto de vista normativo, a
Declaração e Programa de Ação, fruto da Conferência Mundial dos Direitos
Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993, estabelece, em seu item
15, que “o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem
distinções de qualquer espécie, é uma norma fundamental do direito
internacional na área dos direitos humanos”.
Conforme consta dos “considerandos” da
Declaração de Viena, de 1993, repetindo diretriz já traçada na Carta das
Nações Unidas, os Estados devem implementar políticas necessárias para
“preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, de estabelecer
condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações emanadas de
tratados e outras fontes do direito internacional possam ser mantidos,
de promover o progresso social e o melhor padrão de vida dentro de um
conceito mais amplo de liberdade, de praticar a tolerância e a boa
vizinhança e de empregar mecanismos internacionais para promover avanços
econômicos e sociais em benefício de todos os povos”.
A mesma Declaração destaca que “todos os
direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e
inter-relacionados”, estabelecendo que “a comunidade internacional deve
tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de
igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e
regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos
contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados
promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.”
Além disso, como signatário da
Declaração Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica, de 1969), o Estado brasileiro deve responder à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos pelos seus atos e omissões que digam
respeito às normas do referido Tratado, podendo ser compelido pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos a inibir a violação dos direitos
humanos e até a reparar as conseqüências da violação desses direitos
mediante o pagamento de indenização justa à parte lesada (art. 63, Pacto
São José da Costa Rica).
De fato, com todos esses instrumentos
normativos, válidos no âmbito nacional e internacional, nas mãos de
instituições que estejam em regular funcionamento, não é preciso se
submeter aos interesses eleitorais de alguns partidos políticos que se
preocupam mais com sua estrutura interna do que com as políticas
públicas e que para se preservarem fazem ajustes com segmentos
econômicos específicos, em quatro paredes, sem qualquer participação
popular.
O funcionamento adequado dessas
instituições não é, de todo modo, uma questão de formalidade. É preciso
que busquem realizar uma atividade com a racionalidade do serviço
público, comprometendo-se, pois, com as causas e os interesses das
pessoas em situação fragilizada nos arranjos sociais, como, ademais,
consta do projeto constitucional, sendo que para que isso efetivamente
ocorra é necessário que os movimentos sociais, trabalhistas e populares
estejam mobilizados e em luta constante, porque é da força desses
movimentos que a democracia social se produz concretamente.
Não há a mínima possibilidade de se
realizar um projeto de Estado Social, conforme previsto na Constituição,
sem que se confira uma real possibilidade de mobilização dos segmentos
da sociedade mais diretamente interessados na conclusão dessa obra. Há
uma urgência nesta reivindicação do reconhecimento da legitimidade dos
movimentos sociais, que inclui, necessariamente, um claro direcionamento
dos próprios poderes públicos, que devem agir sob o comando da ordem
jurídica, pois a incompreensão das instituições acerca da vigência do
Direito Social tem provocado uma situação de intolerância frente aos
movimentos sociais extremamente prejudicial à democracia.
É essencial para a efetivação do Estado
Democrático de Direito Social que os movimentos sociais se mobilizem
para exigir das instituições, que até se beneficiam pela atuação popular
em sua defesa, que se empenhem de forma concreta para levar adiante o
compromisso internacionalmente assumido pelo respeito aos direitos
humanos de índole social, reconhecendo, sobretudo, os direitos de
liberdade de expressão e de reivindicação dos segmentos em situação de
vulnerabilidade na sociedade: sem-teto, sem-terra, desempregados,
trabalhadores e trabalhadoras, estudantes, mulheres, população LGBT,
negros e negras, indígenas, pessoas com deficiência, repudiando-se todas
as práticas opressivas e repressivas, antissindicais, antidemocráticas,
discriminatórias e preconceituosas, pois só assim se pode evitar o
autoritarismo e caminhar em direção concreta na construção de uma
sociedade sem desigualdade social e econômica e que garanta as
diversidades.
O momento, portanto, é de defesa
incondicional da ordem constitucional, dos direitos sociais e
trabalhistas, como forma de evitar retrocessos políticos, econômicos e
sociais, de modo a proporcionar meios para que se prossiga no avanço da
realização do projeto inacabado da condição humana.
[1]. http://reporterbrasil.org.br/2014/07/mais-de-55-mil-trabalhadores-sofreram-acidentes-com-maquinas-em-2013/
[2]. Vide, a propósito, a crônica de Denise Fraga, Chacina, Faxina e Lava Jato, publicada na Revista da Folha, em 30/08/15, p. 98.
[3]. http://reporterbrasil.org.br/2012/04/terceirizado-esta-mais-sujeito-a-acidente-de-trabalho-diz-mte/
[4]. http://reporterbrasil.org.br/2012/04/caminhoneiros-sao-os-trabalhadores-que-mais-morrem-no-brasil/
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