Entre
universidades públicas, USP (na foto) e Unicamp concentram resistência
às cotas anti-racistas. Unesp, outra instituição estadual paulista, já
aderiu parcialmente
Por Amanda Fonseca, no ReporterUnesp
Affirmative action foi o termo, em inglês, criado no governo
Kennedy (1963) para designar ações que pretendiam promover a igualdade
de oportunidades trabalhistas para negros e brancos nos Estados Unidos.
No Brasil, a expressão, traduzida literalmente, ganhou o nome de ação
afirmativa ou ações afirmativas, por terem sido consideradas em um
contexto mais amplo, que busca diminuir desigualdades raciais e sociais presentes no país.
A consolidação desta política no âmbito da educação superior ocorreu
em 2012 com a aprovação da lei 12.711. Tal decreto determinou que as
universidades federais deveriam destinar 50% de suas matrículas para
estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas de baixa renda que
tivessem cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. A
chamada Lei de Cotas seria implementada a partir do ano seguinte em
todas instituições federais de ensino superior.
As pioneiras
Nove anos antes da Lei de Cotas ser aprovada, a Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) decidira autorizar que pretos, pardos e
indígenas (PPI) autodeclarados solicitassem vagas por meio do sistema de
inscrições do vestibular. Assim, 20% das matrículas ficariam destinadas
para negros, 20% para alunos de escola pública e 5% para pessoas com
deficiência.
Os dados referentes ao então vestibular mostram que entre os 4909
inscritos, mais de 1900 se declararam negros ou pardos e quase metade
deles provinha da rede pública de ensino. Já em 2004, a Universidade de
Brasília se tornou a primeira universidade federal a implementar o
modelo de cotas raciais, reservando a mesma porcentagem de vagas que a
UERJ para quem se autodeclarasse como PPI.
Em 2011, 125 instituições já possuiam políticas de ações afirmativas.
Unesp e as cotas
Enquanto USP e Unicamp resistem a adotar o sistema de cotas raciais, a
Unesp, em seu último vestibular, tornou-se a única universidade
estadual paulista a implementar o modelo. Assim, 15% das matrículas de
candidatos que ingressaram no ensino superior neste ano foram destinados
a alunos negros e pardos. A meta é que este percentual chegue a 50% em
2018.
Um questionário a respeito do assunto foi elaborado especialmente
para esta matéria e publicado em grupos da Unesp em redes sociais. O
resultado, você pode conferir no link a seguir: Questionário sobre as cotas raciais na UNESP de Bauru
Nada mais desigual do que tratar a todos igualmente
Em 2009, o sistema de cotas raciais foi tido como inconstitucional
pelo Partido Democratas (DEM) em processo contra a Universidade de
Brasília. Partidários usaram o argumento de que todos são iguais perante
à lei para deslegitimar a política inclusiva. Mas se esqueceram de um
fator importantíssimo: o negro nunca esteve em posição de igualdade.
Os negros foram escravizados por mais de 300 anos e continuam
tentando diariamente validar sua cultura, suas crenças e sua identidade
em um país que nega o racismo que tem. “O racismo no Brasil tem uma
particularidade perversa, é o que Darcy Ribeiro chama de ‘tolerância
opressiva’. O negro é tolerado desde que esteja no seu lugar, quando
invade um espaço majoritariamente branco, como a universidade, passa a
incomodar. Quando o negro está na periferia, na escola de samba, ele é
tolerado. Mas se vai para outros lugares, passa a ser um incômodo”,
afirma Dennis de Oliveira, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e
membro do Neinb (Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro
Brasileiro).
As cotas raciais não estão sendo implementadas para desfavorecer uma
elite branca privilegiada, elas fazem parte de uma iniciativa para
tentar compensar e reparar as desigualdades sofridas por um povo ao
longo do tempo. Para Maria José de Jesus Alves Cordeiro, doutora em
educação pela PUC-SP, a entrada do negro na universidade é um processo
recente: “a partir de 2002 com as políticas de ação afirmativa, ou seja,
as cotas. Nesse sentido, a luta do movimento negro teve uma conquista
importantíssima depois de séculos”, declara.
Já Pedro Borges, membro do Coletivo Negro Kimpa, da Unesp de
Bauru, revela: “As cotas são mais do que as cotas. Elas representam uma
estratégia muito eficiente do movimento negro. As universidades públicas
são o último serviço público utilizado pela elite branca. Essa ação
afirmativa foi proposital, o movimento sabia que isso causaria um
alvoroço. A estratégia era tornar o racismo um debate público”.
As cotas, por si só, não garantirão que o negro tenha seu espaço
inteiramente reconhecido. O racismo está em todos os setores, é o que
Dennis chama de “fenômeno estrutural” e considera que somente um mix de políticas públicas pode ajudar a desvendar o racismo e fazer com que a sociedade discuta o tema de forma mais explícita.
Se continuarmos discorrendo sobre o espaço universitário, podemos
enxergar que a inserção do negro passa por um processo de negação por
parte de alunos e docentes. Desde o discurso de que o nível do ensino
cairia até a mentalidade sobre a necessidade de “limpar a universidade”,
embranquecê-la novamente.
Docentes de cursos como medicina, engenharia civil e direito parecem
ser os mais resistentes em relação às cotas. É o que mostra o estudo
“Quatro anos de políticas de cotas: a opinião docente” do programa de
Políticas da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. A
pesquisa, feita entre 2005 e 2006 em 4 universidades (UERJ, Nacional de
Brasília, Federal de Alagoas e Universidade do Estado da Bahia), acaba
também por destacar o posicionamento favorável de professores que já
tiveram alunos cotistas. Este fator pode ser sustentado pela tese de
doutorado de Maria José, que também é professora na Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul. Seu estudo sobre o desempenho acadêmico
de alunos negros e indígenas na Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul desmente a crença de diminuição do nível de ensino e relata que o
desempenho dos cotistas chega a ser igual ou até superior se comparado
ao de alunos não-cotistas. Segundo a pesquisadora, os negros se sentem
desafiados e lutam para permanecer na universidade. Afinal, ingressar no
ensino superior não basta para os negros, é preciso conseguir
permanecer em um ambiente elitizado, que não pensa na classe de baixa
renda e, portanto, não oferece uma estrutura de serviços adequada. É o
exemplo do campus de Bauru da Unesp, com suas 32 vagas na moradia
estudantil e seu restaurante universitário aberto só para o almoço. Além
disso, o ambiente pode incitar o ódio racista, como visto em episódio
recente ocorrido também na Unesp de Bauru.
Porém, a presença negra não incomoda só na universidade. A partir do
momento que o negro ocupa o ensino superior, ele vai ter mais chances de
ocupar outros lugares e quanto mais conquistas sociais o movimento
negro alcançar, mais vai incomodar e exigir que sua raça seja aceita e
respeitada. Um processo que pode beneficiar negros e não negros: uma
sociedade, talvez, mais igualitária.
Um outro lado das cotas raciais: seu subproduto
Um artigo publicado na edição n° 237 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos
intitulado “O subproduto social advindo das cotas raciais na educação
superior do Brasil” soa como uma crítica ao modelo de ações afirmativas
no país. A análise afirma que das 125 instituições que adotaram ações
afirmativas em 2011, ou seja, antes da implementação da Lei de Cotas,
apenas cinco instituições tinham cotas raciais, em que negros e
indígenas eram os únicos beneficiários: Universidade de Brasília (UnB);
Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat); Universidade Estadual do
Maranhão (Uema); Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). As cotas exclusivamente
para indígenas estavam presentes em nove instituições, sendo que nenhuma
delas adotara esta política apenas para os negros. Ao todo, só 14
instituições implementaram as cotas raciais.
Entende-se que o principal subproduto das cotas raciais seriam as
cotas sociais, que estariam tornando-se o produto da política de ações
afirmativas. A seguir segue transcrito um trecho do estudo:
“(…) a reivindicação de uma ação
afirmativa de cunho etnicorracial – que era o produto almejado a
princípio – acabou proporcionando mais de 2/3 (69%) das vagas
preenchidas a um critério diferente do proposto; fenômeno que neste
artigo foi denominado subproduto social das cotas raciais. O subproduto
social das cotas raciais tem como pano de fundo uma questão de cunho
ideológico: o que dificulta o acesso democrático à instituição pública
de ensino superior é a condição social dos candidatos, contrariando a
tese do movimento social negro que tem na história racial do indivíduo a
marca que justifica a ação afirmativa. A rigor, cabe questionar se
essa “cota social” deveria ser considerada uma política de ação
afirmativa, a qual conceitualmente requer a existência de desigualdades
históricas acumuladas contra aqueles que devem se beneficiar da
iniciativa”.
É certo que a população negra brasileira está associada às classes
mais baixas; por isso, unir iniciativas de cunho racial e social pode
parecer o modo mais fácil de resolver dois problemas simultaneamente.
Contudo, para os estudiosos, o problema racial não pode ser comparado à
questão social. Esta é decorrente de um sistema econômico que gera e
aumenta desigualdades, tendo por trás uma ideologia, justificável ou
não. Já o racismo, mesmo que parta de um pensamento de superioridade de
uma raça perante a outra, não tem sustentação, a história de injustiças
sofridas por um povo seria a justificativa para as ações afirmativas.
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