Reconstituição
do crime, em 27/5. Malabarismo processual parece sugerir existência de
dupla moral, da qual se compreende que “pode executar, mas tem que
justificar”...
Absolvição sumária de PMs que liquidaram doze pessoas em Salvador
confirma: parte do Judiciário está contaminada pela lógica que legitima
execuções
Por
Mariana Possas, na
Ponte
Saiu na imprensa que na madrugada do dia 6 de fevereiro de 2015, no
bairro do Cabula, em Salvador, após um suposto cerco e intensa troca de
tiros com guarnições da Rondesp (Rondas Especiais, da Polícia Militar da
Bahia), doze indivíduos supostamente envolvidos com crimes de assalto e
arrombamento a instituições financeiras foram alvejados e, mesmo tendo
sido socorridos, acabaram morrendo.
Essa foi a primeira versão, da Polícia Militar, que virou a versão
oficial da Polícia Civil: na madrugada do dia 6 de fevereiro, três
guarnições da Rondesp atendendo a um chamado da Central de Policia,
verificavam a denúncia da existência de indivíduos armados, conhecidos
localmente como traficantes, e reunidos no bairro do Cabula para
explodir caixas eletrônicos. Ao entrar no local, os policiais teriam
sido recebidos com disparos de armas de fogo e teriam respondido à
injusta agressão de forma proporcional. Dessa reação resultaram
ferimentos em quatorze indivíduos, que foram socorridos pelas guarnições
policiais e levados para a unidade hospitalar mais próxima. Doze deles,
não resistindo aos ferimentos, acabaram morrendo. Neste confronto, um
policial militar também foi atingido de raspão na cabeça.
Pouco tempo depois, o governador Rui Costa manifestou publicamente a
aprovação a esta ação da polícia e disse a seguinte frase em uma
entrevista, claramente se referindo à ação da polícia: “É como um
artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é
que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol […] Depois que a
jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada
irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão.
Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse
chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado” .
Vamos a uma outra primeira versão dos fatos: moradores da região e
parentes das vítimas, na condição de testemunhas, contaram à imprensa
que as viaturas de polícia chegaram junto com os disparos de arma de
fogo. Alguns dos moradores teriam corrido e conseguido se salvar,
entrando em um matagal próximo ou invadindo residências. Outros se
renderam à abordagem policial e foram posicionados lado a lado em uma
área descampada, em frente às viaturas policiais, e ali mesmo
executados. Apesar da alegação da polícia de que seriam as vítimas
traficantes de drogas, nenhuma da vítimas tinha registros de
antecedentes criminais. De acordo com as testemunhas, a ação da polícia
teria sido uma retaliação a uma troca de tiros que ocorrera dias
anteriores entre uma viatura da própria Rondesp e traficantes da
localidade. Nessa ocasião, um policial da corporação teria sido ferido
no confronto.
Alguns policiais postaram nas redes sociais vídeos dos corpos, nos
quais pareciam celebrar o evento. Os vídeos rapidamente se espalharam
pelas redes internas dos policiais e mais rapidamente ainda vazaram para
redes mais amplas, sendo postados nos diários eletrônicos locais quase
ao mesmo tempo em que o governador dava seu apoio e suas explicações
para ação policial. Tal sequência de versões gerou uma sensação muito
estranha para quem acompanhou esses dois eventos quase simultâneos, como
eu.
Os vídeos já foram provavelmente retirados da rede, mas ainda
encontramos fotos em que se vê claramente o tiro nas costas de uma das
vítimas. E tiro nas costas é um sinal, razoavelmente claro, de execução.
Essa combinação de fatos repercutiu negativamente em alguns meios,
reverberando nos grupos e movimentos sociais de proteção aos direitos
humanos, que de forma contundente cobraram um posicionamento da OAB e do
Ministério Público em acompanhar de perto a apuração dos fatos. A
Anistia Internacional se apropriou do caso, iniciando uma campanha
mundial para chamar atenção para as mortes e cobrar uma resposta das
autoridades competentes.

Seis meses depois, em 30 de junho de 2015, o jornal A Tarde
noticiou a conclusão, pela Polícia Civil da Bahia, do Inquérito Policial
e reitera aquela primeira versão (da Polícia Militar) e confirma que
houve um “confronto sem qualquer evidência de ação abusiva da PM.” A
tese foi sustentada principalmente por duas constatações apontadas pelo
Departamento de Policia Técnica da Polícia Civil: primeiro, as lesões
apresentadas nos corpos das vitimas não apresentavam características de
execução, com lesões típicas de tiros de curta distância. Segundo, a
polícia ainda que dispusesse de 870 munições, somente fez uso de 16%
desse total, ou seja 143 disparos. O governador preferiu não comentar
mais o caso.
O Ministério Público, por sua vez, decidiu instaurar um
procedimento investigatório criminal e realizou investigação paralela à
conduzida pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da
Polícia Civil. Este procedimento do MP-BA teve duração de três meses e
resultou no oferecimento de denúncia ao Judiciário, por homicídio
qualificado, contra nove policiais militares participantes da operação. O
argumento do MP-BA orientou-se pela convicção de que tinham sido
praticadas execuções sumárias, afastando a hipótese de “resistência” e
“confronto”, defendida pelas polícias e pela Secretaria de Segurança
Pública.
Pare que fique claro, então: chegamos em julho de 2015 com duas
“verdades oficiais” sobre o evento, e absolutamente distintas. A verdade
das polícias (aceita e provavelmente apoiada pelo Secretário de
Segurança Pública e pelo Governador), que interpreta publicamente os
fatos como legítima defesa, e a do MP, para quem os fatos devem ser
interpretados como execução sumária.
Menos de um mês depois de oferecida a denúncia, no dia 24 de julho, a
juíza substituta Marivalda Almeida Moutinho surpreendeu a todos ao
decidir em curtíssimo lapso de tempo pela absolvição sumária de todos os
nove réus policiais denunciados (e outro ainda, que nem fazia parte da
denúncia, resultando 10 absolvições). Na sentença, há toda uma
argumentação sobre a importância de proteger os acusados dos “abusos da
acusação”, daí a pertinência de encerrar logo o processo. Afirma-se,
além disso, que a prova pericial técnica é superior às demais, por isso,
não há nenhuma necessidade de ouvir as testemunhas no processo, porque o
convencimento dela já estaria formado. Nas palavras da juíza: “Assim,
não há obstáculo ao julgamento antecipado da lide e consequente
absolvição sumária dos acusados, por se mostrar irrelevantes,
impertinentes e protelatórias as provas de inquirição de testemunha em
Juízo”.
Valeu então, para o Judiciário, a “verdade” da polícia, baseada na
“prova” técnica que a Polícia Civil apresentou e o afastamento de toda a
prova testemunhal . A perícia, que aparentemente não considerou
os tiros nas costas, por exemplo, é tratada na sentença como chancela
de verdade: “sobre a ótica de profissional técnico especializado, não
concluiu de forma induvidosa de que os modos de execuções ocorreram nos
termos pronunciados na denúncia, ou seja, que foram disparadas armas de
fogo a curta distância”. Aqui, curiosamente, a avaliação técnica é
limitada à distância dos tiros; a quantidade de tiros, o local em que
atingiram as vítimas, a quantidade de tiros que acertaram os PMs (um, de
raspão!), não entraram como elementos “técnicos” relevantes. E
acrescenta-se que “O conjunto de circunstância empresta forte colorido
de legitimidade à conduta dos acusados, que agredidos moral e
fisicamente, viram-se na contingência de defender-se, o que fez, aliás,
de modo moderado.”. Lembremos, quanto a este último aspecto, que foram
desferidos no total 143 tiros, sendo 88 encontrados nos corpos!
É muito difícil não ver um problema na verdade das “verdades
policiais” que viraram, finalmente, uma “verdade judicial”. Neste caso,
tanto a polícia, ao lado da Secretaria de Segurança Pública, quanto o
Judiciário, na figura da juíza que decidiu o caso, parecem ter afastado
do conceito de verdade a ideia de “descrição dos fatos o mais próxima
possível da realidade”. Assume-se explicitamente que a verdade jurídica
pode ser construída sem nenhum grande apego ao que “realmente
aconteceu”.
Dito de outra maneira, a PM, a Polícia Civil (DHPP), a Secretaria de
Segurança Pública e, portanto, o Governo do Estado, além do Judiciário
(num ato possivelmente ilegal em si) , dizem que tudo o que aconteceu
foi absolutamente legal: um caso de legítima defesa. Construíram uma
justificativa para tanto, buscando demonstrar sua “verdade”. O MP e as
testemunhas do evento, por sua vez, sustentam que tudo foi ilegal:
execução sumária não entra no rol (legal) de ações que a polícia pode
realizar. As imagens encontradas na Internet ajudam a fortalecer esse
lado.
O que temos aqui (além de constatar que mesmo a percepção mais comum
de “verdade” está ficando confusa)? Do ponto de vista de uma sociologia
do direito (e não do próprio direito!), podemos dizer que uma
movimentação bastante arbitrária está acontecendo, a qual parece
confundir as ideias de legal/ilegal. A explicação mais básica para o
malabarismo processual me parece ser a existência de uma dupla moral: de
um lado, existe uma mensagem muito clara, da qual se compreende que
“pode executar”. De outro, “mas tem que justificar”.
Ou seja, é aceito que a PM execute sumariamente pessoas (suspeitas ou
não de práticas de crimes), com a condição de justificar a ação como
“legítima defesa” ou qualquer outra categoria (jurídica) deste tipo.
Nesse caso, portanto, o ato ilegal (a execução) quando acompanhado de
categorias legais, é artificiosamente legalizado e neutralizado entre os
domínios do socialmente permitido e do proibido. Temos assim uma
espécie-híbrida “ilegal-legal”. Isso mostra, como, na vida real, o
ilegal e o legal, no domínio do direito, não têm a força necessária para
qualificar moral ou politicamente as ações.
Na minha opinião temos que aprender a lidar com o problema – uma
polícia que tem autorização oficial para executar pessoas sumariamente –
no nível da comunicação. A polícia é parte do sistema político, cuja
organização está vinculada à política estadual, representada pelo
governador. O sistema político está comunicando de modo claro para a
polícia que executar sumariamente pessoas faz parte da atividade
policial . Uma, dentre muitas, mostras disso é o fato do policiais do
caso continuarem trabalhando normalmente em suas funções depois do
ocorrido. E o Judiciário confirmou a comunicação. Em outras palavras, do
ponto de vista interno do sistema político (e não somente da polícia),
executar sumariamente é uma política oficial. Nesse contexto
comunicacional, seria até estranho se os policiais agissem de outra
maneira.
E enquanto escrevia este texto, na sexta feira, dia 7 de agosto, mais
seis pessoas, sendo um adolescente de 15 anos, foram mortas pela
polícia, em operação conjunta da Polícia Civil e Militar, nos bairros
Valéria e Fazenda Couto. Bairros de periferia, é claro…