Alvaro Bianchi
Nuvens carregadas preocupam aqueles que
se encontram engajados na crítica política e ideológica ao capitalismo. A
sociedade brasileira parece nos últimos anos ter se tornado mais
intolerante, autoritária e individualista. O tradicionalismo
comportamental, o conservadorismo político, o liberalismo econômico e o
fundamentalismo religioso aparentemente estão dando as cartas.
O fato dessas correntes terem se tornado
mais evidentes é também porque seus antagonistas também se tornaram
mais fortes e visíveis. É porque há greves, ocupações, passeatas pela
legalização da maconha, marchas das vadias e paradas LGBTs que a reação
se exerce. Mas a reação é muito forte e por isso mesmo seu alcance
precisa ser observado. É preciso analisar esses fenômenos de maneira
cuidadosa, evitando exageros e superficialidade.
É no terreno da cultura que as correntes
tradicionalistas, conservadoras, liberais e fundamentalistas estão
ganhando a guerra. O sistema de significações que organiza e dá sentido
aos modos de vida existentes na sociedade adquire crescentemente
características que produzem e reproduzem a heteronomia no lugar da
autonomia, a sujeição no lugar da emancipação, o consumo no lugar da
fruição. Ninguém expressa isso melhor do que a indústria cultural. O
funk ostentação, o sertanejo universitário, os livros de Paulo Coelho e
as pinturas de Romero Britto levam a mesma mensagem a diferentes
públicos.
As consequências são múltiplas e se
fazem sentir fortemente não apenas nas elites sociais, mas também nas
classes subalternas. Nestas últimas, o sistema de significações parece
estar em aguda contradição com o modo de vida realmente existente. É
entre aqueles que vivem em condições precárias que a cultura da
violência se espalha, é sobre as mulheres vulneráveis que o machismo se
faz mais presente, é nas favelas que o racismo é mais intenso, é entre
os grupos culturalmente diversificados que a intolerância religiosa
cresce.
Expressões legítimas da cultura
popular-periférica das grandes cidades convivem em tensão com
manifestações orientadas em um sentido inverso. Valores e identidades
comunitárias das favelas acomodam-se conflitivamente com a apologia de
um modo de vida estranho a estas no qual adereços de ouro que não podem
ser usados e carros que não podem circular nas ruas de terra são
símbolos desejados e cultuados. Não são raros os casos nos quais essa
cultura periférica é absorvida passivamente por uma indústria cultural
que a regurgita como objeto de consumo imediato para um público que não
partilha o mesmo modo de vida. É como se o sistema de significações
tivesse se descolado da experiência vivida, um sintoma da crise da
sociedade contemporânea.
A ofensiva reacionária
Nada disso era previsível há poucas
décadas atrás quando a sociedade brasileira parecia caminhar em direção a
formas que estimulavam a participação das pessoas na vida política, o
passado ditatorial era fortemente rejeitado e muitos acreditavam que a
marcha em direção à expansão dos direitos políticos e sociais, começando
pelos direitos trabalhistas, era contínua e ininterrupta. Mas olhando
retrospectivamente é possível afirmar que o febril ativismo dos anos
1980 não se expressou em uma nova e abrangente visão de mundo. O
classismo prático que caracterizou esse ativismo não encontrou sua forma
em uma nova cultura das classes subalternas. Nessas circunstâncias as
conquistas existentes corriam o risco de serem rapidamente confiscadas.
Foi o que aconteceu.
As derrotas mais duradouras foram,
entretanto, as menos perceptíveis: elas ocorreram no âmbito da cultura.
Um novo modo de vida foi afirmado, um no qual a competição e o
individualismo passaram a ser os valores preponderantes a partir dos
quais as pessoas atribuíam sentido às práticas sociais. O darwinismo
social, uma ideologia que muitos consideravam confinada ao século XIX,
ressurgiu com força, lado a lado com a defesa estridente da
meritocracia. Junto com esses valores e essa ideologia espraiaram-se
desavergonhadamente os discursos homofóbicos, machistas, racistas,
autoritários e elitistas, as manifestações mais abjetas de uma visão de
mundo hierárquica e preconceituosa que expressa as profundas clivagens
sociais existentes em nossa sociedade.
Uma guerra cultural estava sendo travada
sem que um dos lados do conflito se desse conta. Think tanks liberais
foram criados na década de 1980 para difundir as ideias e os valores do
livre mercado e forjar os intelectuais da reação. Nos anos seguintes a
grande imprensa passou a acolher de braços abertos colunistas cada vez
mais tradicionalistas e conservadores. Por fim, o fundamentalismo
cristão decidiu entrar de vez na briga e travar uma batalha em defesa de
uma visão de mundo que considerava ameaçada por uma frente única
formada por comunistas, feministas e gays.
Não faltaram recursos para essa guerra
na qual só um exército se encontrava organizado e preparado. Fundações
norte-americanas passaram a financiar projetos e institutos foram
criados no Brasil para defender os valores do mercado, os quais
geralmente se confundem com o mercado de valores. Não eram ideias muito
sofisticadas ou filosoficamente consistentes. As iniciativas editoriais
foram apenas esporádicas, mas em um país onde se lê cada vez menos e a
leitura é de qualidade cada vez pior isso pode ter sido simplesmente uma
escolha.
Se a literatura que tradicionalistas,
conservadores e liberais publicavam era escassa ou rala, não eram por
isso menos ativos: faziam campanhas nas escolas, promoviam cursos para a
formação de novas lideranças, arregimentavam apoio na grande imprensa,
organizavam jantares com personalidades da política e da cultura
nacional, criavam lobbies e estimulavam a criação de bancadas e blocos
parlamentares afeitos às suas ideias. Atuavam preponderantemente ao
nível das elites e das camadas médias da população, formando
molecularmente uma opinião pública reacionária.
A projeção dessa ideologia nas camadas
populares coube, principalmente, aos monopólios de televisão, que
apostaram cada vez mais em personalidades reacionárias. Aos antigos
programas policiais do final da tarde, nos quais criminalidade e pobreza
são sinônimos, somaram-se âncoras e comentaristas reacionários nos
jornais nacionais. Logo depois vieram os fundamentalistas evangélicos, o
quais ocuparam espaços cada vez maiores e atingiram audiências cada vez
mais amplas entre aqueles que não encontravam mais esperança no mundo
temporal. Embora simples, os argumentos mobilizados nessas ocasiões
apelavam para os medos mais irracionais da população. Eram instrumentos
eficazes para os objetivos pretendidos.
A cultura como um campo de batalha
O corporativismo sindical e o
possibilismo parlamentar não ofereceram resistência nessa guerra
cultural porque não tinham outra cultura a oferecer. A estratégia da
pequena política alimentada pela esquerda nas últimas décadas é, na
verdade, uma renúncia a toda estratégia. Por meio dos fundos de pensão e
das cooperativas imobiliárias os grandes sindicatos entraram no mercado
de valores e assimilaram os valores do mercado. Os parlamentares dos
partidos de esquerda, muitas vezes eleitos com o apoio desses sindicatos
e movimentos sociais, acomodaram-se nas comissões do Congresso e
reproduziram os salamaques de seus pares.
Com vidros espelhados e fachadas com
grandes painéis de aço, as sedes dos partidos e sindicatos passaram a
mimetizar bancos e empresas e seus dirigentes a se vestir como seus
adversários. Em seus congressos berram como pastores evangélicos
procurando atrair fieis. Suas práticas políticas não se diferenciaram
muito daquelas que afirmavam querer combater. Aceitaram as regras do
jogo e se autoconfinaram à defesa de interesses econômicos imediatos, na
rotina dos projetos de lei, das votações irrelevantes e na gestão dos
aparelhos.
Para travar de modo eficiente a batalha
no campo da cultura é preciso recolocar a estratégia em seu lugar e
passar para o terreno da grande política, coordenando esforços e
dirigindo-os em uma mesma direção. É necessário perceber que a cultura é
importante espaço do conflito de classes, aquele no qual as visões de
mundo se organizam e enfrentam. Sem transformações profundas nesse campo
não são possíveis mudanças radicais e duradouras. Aqueles que vêm a
luta cultural apenas de modo instrumental e relegam as batalhas
decisivas a um futuro distante estão preparando seu próprio fim. A luta
por uma nova cultura que difunda os valores coletivos e solidários, que
promova a autonomia e a emancipação começa hoje.
Fonte - Blog Junho
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