Wei,
aos 19, trabalha numa fábrica em Yiwu, China, revestindo flocos de neve
de polistireno com pó vermelho. Foto: Imaginechina/Rex
Retrato da globalização: uma única cidade chinesa produz 60% dos
enfeites de Natal do mundo. Quem são os operários. Como vivem e
trabalham
Por Oliver Wainwright, no Guardian | Tradução: Antonio Martins
Há vermelho no teto e vermelho no piso, vermelho pingando dos
parapeitos das janelas e dos glóbulos salpicados nas paredes. É como se
tivessem deixado o artista Anish Kapoor
solta, com seu canhão de cera, outra vez. Mas é esta, na verdade, a
aparência de uma fábrica do Natal. Este é o coração da oficina de Papai
Noel – milhares de quilômetros distante do Polo Norte, na cidade chinesa
de Yiwu.
Nossos mitos natalinos parecem sugerir que o Natal é feito por elfos
de face rosada, martelando numa cabana de madeira rodeada de neve, em
algum lugar do Círculo Polar Ártico. Mas não. É provável que a maior
parte dos balagandãs, pingentes, lantejoulas e luzes cintilantes de LED
que você espalha generosamente, em torno de sua casa, venham de Yiwu,
uma cidade 300 quilômetros ao sul de Shangai – onde não há um único
pinheiro de verdade ou floco de neve natural.
Batizada de “cidade chinesa do Natal”, Yiwu abriga 600 fábricas que,
em conjunto, produzem mais de 60% de toda a decoração e acessórios de
Natal – das árvores incandescente de fibra ótica aos chapéus de feltro
do Papai Noel. Os “elfos” que trabalham nestas fábricas são, quase
sempre, operários migrantes, que trabalham 12 horas por dia, por um
salário que equivale a algo ente 900 e 1300 reais por mês. E eles talvez
não saibam muito bem o que é o Natal.
Wei gasta ao menos dez máscaras faciais por dia, tentando não respirar a nuvem de poeira vermelha. Foto: Imaginechina/Rex
“Talvez seja como o Ano Novo [Chinês] para estrangeiros, diz, à agência chinesa de notícias Sina,
Wei, um trabalhador de 19 anos que chegou a Yiwu este ano, vindo da
região rural da província de Guizhou. Junto com o pai, ele cumpre longas
jornadas num porão salpicado de vermelho. Pega flocos de neve de
polistireno, mergulha-os num banho de cola, coloca-os numa máquina de
revestir com pó, até que se tinjam de vermelho – e faz 5 mil peças a
cada dia.
No processo, ambos terminam encardidos da cabeça ao tornozelo, com pó
fino de carmesim. Seu pai veste um chapéu de Papai Noel (não para
celebrar, diz ele, mas para evitar que o cabelo torne-se vermelho) e
ambos gastam pelo menos dez máscaras faciais por dia, tentando não
respirar o pó. É um trabalho cansativo e eles provavelmente não o farão
de novo no ano que vem: assim que ganharem o suficiente para que Wei se
case, querem voltar para Guizhou e, se tiverem sorte, nunca mais ver uma
cuba de pó vermelho.
Embalados em sacos plasticos, seus flocos de neve vermelho-reluzentes estão expostos na imensa parafernália do Mercado Internacional de Yiwu,
também conhecido como Cidade das Commodities da China – um mundo
maravilhoso de 4 milhões de metros quadrados de quinquilharias de
plástico. É um paraíso de R$ 1,99, um show de vendas infinito de tudo
que há no mundo e você não precisa mas pode, num momento irracional
qualquer, sentir-se compelido a comprar. Há ruas inteiras, neste
complexo de labirintos, dedicadas a flores artificiais e brinquedos
infláveis. Em seguida, vêm as sombrinhas e anoraques, baldes de plástico
e relógios. É um monumento palpitante ao consumo global, em muitos
andares, como se o conteúdo de todos os aterros do mundo tivesse sido
escavado, recomposto e meticulosamente catalogado em 62 mil estandes.
Os
dois homens produzem 5 mil flocos de neve vermelhos por dia, e ganham o
equivalente a R$ 1250 mensais. Foto: China Daily/Reuters
O complexo foi considerado pela ONU o “maior mercado de atacado, de
pequenas peças, do mundo” e sua escala exige uma espécie de plano
urbano, que organiza este festival de comércio em cindo diferentes
distritos. É no Distrito Dois que se encontra o Natal.
Há corredores inteiros repletos apenas de ouropel, ruas pulsando com
shows de luzes LED que competem uns com os outros, meias de todos os
tamanhos, árvores de Natal de plástico azul, amarelo e rosa cintilante,
cones plásticos de pinheiro dourados e prateados. Algo parece perder-se
na tradução. Há carneiros com chapéus de Noel e renas bordadas em tartan
– além, é claro de inexplicáveis invenções chinesas, Papais Noéis
tocando saxofone.
Poderia ser a glória, mas os dias de apogeu do mercado parecem ter
ficado para trás. Ele está perdendo terreno para gigantes da internet,
como o Alibaba e o Made In China. Só no Alibaba, é possível escolher entre 1,4 milhão de itens
de Natal diferentes, e recebê-los em casa após alguns cliques de mouse.
O mercado de Yiwu não é páreo para isso: ele dispõe apenas de 400 mil
produtos.
Voltadas para a faixa de baixo do mercado, as vendas de Yiwu
prosperaram durante a recessão, quando o mundo desejava objetos de
consumo baratos. Mas as vendas internacionais estão baixas, este ano.
Ainda assim, segundo Cai Qingliang, vice-presidente da Associação dos
Fabricantes de Produtos Natalinos de Yiwu, o apetite doméstico anda
firme, já que a China abraçou a festa anual do consumo. Mais chineses
sabem a respeito de Papai Noel que de Jesus, diz a revista Economist.
As vendas fulgurantes do mercado de Yiwu soam sempre alegres, sugerindo um Natal eterno. Para Cheng Yaping,
co-fundador da Fábrica de Objetos Boyang, que mantém uma loja adornada
como um pequeno paraíso na neve, “sentar aqui todos os dias, poder
cercar-se de toda esta bela decoração, é excelente para o ânimo”.
É improvável que sintam o mesmo aqueles a quem restou ocupar a outra
ponta da linha de produção, resignados a mergulhar flocos de neve em
oficinas emporcalhadas de vermelho, para que possamos encontrá-las nas
prateleiras a R$ 1,99.
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