Ideologia dominante convida: após a juventude, aceitemos o
capitalismo como inevitável. Para resistir, é preciso compreender que o
possível não se resume ao real
Por Nuno Ramos de Almeida | Imagem: Adrien Dewisme, Vanité 2/3
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Conosco quando estamos sós”
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Conosco quando estamos sós”
Natália Correia
Há um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano em que ele confessa a
humilhação que sofre no barbeiro por lhe cobrarem apenas meio corte.
Não acreditando no ditado de que é dos carecas que elas gostam mais,
Galeano deixa cair uma frase que lhe alivia um certo sentimento de
inferiorização diária: “Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da
cabeça e não fora”, e logo acrescenta convictamente: “Consolo-me
comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas
nenhuma das minhas ideias, o que é uma alegria quando penso em todos
esses arrependidos que andam por aí.”
Há uma raça de pessoas que normalmente cita, como atestado de bom
comportamento, a famosa frase de recorte autobiográfico atribuída ao
ex-chanceler alemão Willy Brandt de que “quem aos vinte anos não é
comunista não tem coração e quem assim permanece aos quarenta não tem
inteligência”.
No fundo cresceríamos com a idade.
O processo de um tipo se
tornar adulto passaria por uma juventude em que começamos por não
aceitar o mundo tal qual existe com todas as suas gritantes injustiças, e
sobretudo acharíamos que temos forças para tudo mudar. A esse estado
suceder-se-ia o choque da realidade, o bom senso e o crédito à habitação
e as prestações dos eletrodomésticos, de tal maneira que aos 40
saberíamos que temos de aceitar “as coisas” e tentar viver da forma mais
confortável no melhor dos mundos possíveis.
Neste processo de chegada à idade adulta não faríamos mais que
aceitar as nossas inevitáveis limitações e preparar-nos para viver a
realidade. A ideologia dominante não faria mais que assegurar que este
capitalismo e este mundo estariam aqui para sempre. E, como a cultura
popular e os maus filmes de ficção científica demonstram, é mais fácil
imaginar uma grande catástrofe que destruísse o planeta, ou mesmo uma
invasão de extraterrestres, que a simples mudança de um regime e modo de
produção injusto, que desperdiça recursos e destrói o planeta. O
capitalismo será, segundo este pensamento que pretendem coagir-nos a
aceitar, a realidade que sobreviveria ao fim mesmo de toda a realidade:
as máquinas automáticas venderiam Coca-Cola mesmo que os seres humanos
desaparecessem para as consumir.
O nosso principal problema está nessa mesma aceitação da realidade
como elemento estruturante do possível. Se consideramos que viveremos
sempre num regime de banqueiros, em que os lucros têm eles e os
prejuízos pagamos nós; se achamos inevitável ficarmos com uma democracia
em que, independentemente do nosso voto, os políticos fazem o que lhes
apetece; se transigimos com a continuação de um regime de corrupção
“normal”, em que o contribuinte paga os contratos ruinosos que os
políticos assinam com grupos com quem vão depois trabalhar; então temos a
realidade que merecemos e vamos deixá-la em herança aos nossos netos.
A existência de situações de injustiça não decorre de sermos adultos, mas de sermos parvos.
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