REFORMA DA PREVIDÊNCIA
Devido às características do
mercado de trabalho brasileiro, a capacidade de contribuição dos
trabalhadores é bastante limitada. Consideremos apenas o alto nível de
informalidade, a rotatividade elevada e a baixa remuneração. Isso
implica que, ao chegar aos 65 anos, parte das pessoas não terá atingido
os 25 anos de contribuição exigidos e não poderá se aposentar
"Como se a única alternativa para o nosso envelhecimento fosse trabalhar mais. Como se o prolongamento das nossas vidas não fosse algo a se comemorar, mas um fardo insustentável que temos que pagar... "
"Como se a única alternativa para o nosso envelhecimento fosse trabalhar mais. Como se o prolongamento das nossas vidas não fosse algo a se comemorar, mas um fardo insustentável que temos que pagar... "

Fica cada vez mais claro para todos que as reformas trabalhista e
previdenciária propostas pelo governo Temer se apoiam em justificativas
rasas, numa estratégia midiática agressiva e numa violência policial
desmedida e antidemocrática.
A postura do governo é consequência de um fato evidente: não há
nenhum apoio social às reformas. Nem ao governo. Num país que tenta
entender e lidar com a recente polarização na superfície da esfera
político-partidária, pesquisas de diversos vieses mostram importantes
pontos de convergência. Coxinhas, mortadelas e outros quitutes do nosso
variado espectro político-gastronômico ampliam cada dia mais a rejeição a Temer.
As pesquisas indicam ainda que o tema da Previdência, juntamente com a
corrupção, tem sido determinante no aumento da rejeição ao governo.
É nítido, também, que o governo intensifica a sua estratégia midiática para propagar o slogan falso e ameaçador de que é preciso reformar a Previdência hoje para que ela não acabe no futuro. E faz isso abandonando abertamente qualquer tipo de pudor e recheando o noticiário de absurdos éticos,
como encontros casuais no cabeleireiro com empresários da comunicação,
intermediação de amigos comuns para decidir sobre questões de interesse
público, jantares opulentos para conquistar apoio e outros expedientes.
Lembremos ainda da crescente verba pública destinada à publicidade, as
amigáveis entrevistas dadas por ministros em programas de TV e a
cobertura pasteurizada e parcial das notícias relativas à reforma.
É claro, também, como toda e qualquer forma de resistência vem sendo
sistematicamente repreendida pelas forças policiais de todo o país. Os
episódios ocorridos durante a greve geral do dia 28 de abril são apenas
amostras do papel que a polícia tem desempenhado – desde muito antes do golpeachment, é sempre necessário lembrar – na contenção da resistência às reformas impopulares.
No Rio de Janeiro, por exemplo, a polícia iniciou a agressão aos manifestantes antes mesmo que o ato tivesse início. Em Goiânia, um policial quebrou um cassetete no rosto de um cidadão durante a manifestação. Dias antes, Rafael Braga foi condenado a onze anos de prisão por uma acusação forjada.
Esses episódios são lembretes pontuais de que a violência e o racismo
da polícia e do judiciário não são casos isolados que podem ser
resolvidos apenas administrativamente, pelo “afastamento dos
envolvidos”, pela “abertura de inquérito”, pela “apuração dos fatos” ou
por outras declarações de boa intenção por parte dessas instituições.
Enquanto isso, um economista influente
reduz a complexa reforma trabalhista a uma trivialidade qualquer,
desdenha do “esperneio” da maioria da população, ao mesmo tempo que
elogia a restrição do debate público ao uso de gás lacrimogêneo.
A postura do governo demonstra que não há espaço aberto para debater
questões relativas aos direitos sociais que estão sendo retirados da
população. Apesar das justificativas rasas apresentadas na propaganda, a
reforma se apoia em argumentos meramente orçamentários. A questão
parece reduzir-se à ideia de que a Previdência é um luxo que o Brasil
não pode mais pagar. Isso se soma à ideia de que os cortes de gastos
sociais serão suficientes para reverter a crise que o Brasil enfrenta.
O debate dentro da ordem
Independentemente das sofisticadas teorias econômicas que elaboram e
divergem sobre a política econômica, o gasto público e o ciclo atual
vivido pelo país, chama a atenção a má qualidade do material apresentado
pelo governo para defender a reforma previdenciária. Veja-se, por
exemplo, as projeções grosseiras feitas pelo governo para 2060, que foi
analisada e contraposta por um estudo recente.
Os propositores da reforma apoiam-se no senso comum a respeito do
tema. Na percepção geral e entre quem estuda o tema, há grande consenso
de que a Previdência precisa ser reformada. As políticas públicas são
formuladas em contextos históricos específicos e podem deixar de
responder às transformações sociais posteriores.
Por essa razão, muitos países do mundo estão rediscutindo seus
regimes previdenciários para dar respostas a questões como a
desigualdade entre beneficiários, o envelhecimento populacional, o
aumento da expectativa de vida e as mudanças no mercado de trabalho.
Mas reformar a Previdência não implica necessariamente reduzir
direitos. Se houver o interesse em mantê-los, é preciso pensar em como
garanti-los na prática: não apenas definindo suas regras de acesso, mas
também sua estrutura de financiamento. A sociedade deve decidir quem é
que paga a conta.
Mais do que isso, para nós, coloca-se o desafio de pensar num sistema
adequado à realidade brasileira. Não apenas copiando parâmetros e
tendências de outros países, mas considerando nossas desigualdades
sociais e regionais, a realidade do nosso mercado de trabalho, nossa
estrutura tributária, entre outros elementos. No contexto atual, isso
passa por contrapor os argumentos do governo sobre esses temas, como tem
sido o esforço de muitos especialistas.
O governo, ainda que ilegítimo, optou por cumprir os ritos formais da
nossa democracia representativa no encaminhamento da reforma. Note-se,
por exemplo, a realização de audiências públicas sobre o tema, em que
importantes contrapontos e denúncias foram apresentados. Como era previsível, esta fase encerrou-se com alguns recuos do governo em pontos marginais da proposta, sem que o essencial fosse revertido.
Assim conclui-se formalmente a participação direta da sociedade nas
mudanças, deixando claros os limites da ordem estabelecida. A partir de
agora, o destino da reforma depende da articulação parlamentar –
amplamente favorável ao governo – e da capacidade de enfrentamento e
resistência nas ruas.
A velhice que nos espera
Entre as lacunas deixadas pelo material que o governo apresenta, a
que mais chama a atenção é a ausência completa de alternativas aos
direitos sociais que serão retirados. O texto demonstra a falta de
preocupação com as consequências esperadas da reforma e uma profunda
insensibilidade com a situação que grande parte da população deve
enfrentar quando envelhecer.
As mudanças propostas dificultam o acesso à aposentadoria.
Consideremos apenas as quatro principais: 1) a imposição da idade mínima
de 65 anos; 2) o aumento da carência mínima de 15 para 25 anos; 3) as
mudanças na aposentadoria rural; e 4) as mudanças no BPC.
A imposição da idade mínima de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres extingue a Aposentadoria por Tempo de Contribuição.
Hoje, essa modalidade abrange um terço dos 30 milhões de aposentados
brasileiros. Ela afeta principalmente aquelas pessoas que conseguem, ao
longo da vida de trabalho, contribuir por 35 ou 30 anos e que hoje
conseguem se aposentar em torno dos 55 anos. Além disso, as mudanças na
regra de cálculo dos benefícios impõem um fator previdenciário que deve
reduzir ainda mais o valor dos benefícios.
Atualmente, quase 70% dos beneficiários do INSS recebe apenas um
salário mínimo. Para o governo, esses são os “privilegiados” do mercado
de trabalho brasileiro e a reforma teria o grande mérito de promover a igualdade
entre os trabalhadores, já que todos se aposentarão com a mesma idade
mínima. Num país onde as pessoas entram no mercado de trabalho, em
média, antes dos 17 anos, isso significa prolongar a vida de trabalho de
todos. Em vez de melhorar as condições dos mais prejudicados pelo
sistema, fazemos a opção de nivelar os direitos por baixo. Mas essa não é
a mudança que terá o maior impacto sobre a população idosa.
O aumento da carência mínima afeta a maior parte dos trabalhadores brasileiros, que se enquadram na modalidade de Aposentadoria por Idade,
cerca de dois terços dos aposentados hoje. Com as regras atuais, os
trabalhadores que chegarem aos 65 anos podem solicitar a aposentadoria,
desde que tenham contribuído com 180 mensalidades (15 anos) ao longo de
toda a sua vida de trabalho. O governo propõe aumentar essa exigência
para 300 mensalidades (25 anos).
Na prática, essa mudança deve impedir que um grande contingente de
pessoas se aposente. Devido às características do mercado de trabalho
brasileiro, a capacidade de contribuição dos trabalhadores é bastante
limitada. Consideremos apenas o alto nível de informalidade, a
rotatividade elevada e a baixa remuneração. Isso implica que, ao chegar
aos 65 anos, parte das pessoas não terá atingido os 25 anos de
contribuição exigidos e não poderá se aposentar.
As desigualdades, portanto, podem se manter ou se acentuar, pois
aqueles que têm uma inserção mais precária no mercado de trabalho
tenderão a prolongar sua vida de trabalho ou, eventualmente, não
conseguirão se aposentar de forma alguma. Isso significa, na prática,
dificultar o acesso ao direito de aposentar-se para uma população que
começa a trabalhar muito cedo, trabalha por muito tempo, com muita
intensidade e chegará à velhice totalmente desamparada. Se somarmos a
isso os efeitos da reforma trabalhista, as condições de acesso à
aposentadoria deverão ser ainda mais prejudicadas.
O desprezo pelos direitos sociais fica mais explícito quando se trata das mudanças propostas para a Aposentadoria Rural.
Esse direito foi inicialmente pensado para atender a um grupo grande de
trabalhadores, que executa um trabalho socialmente necessário e árduo e
que, por não ter um rendimento constante na sua atividade, tinha baixa
capacidade de contribuir nos moldes dos trabalhadores urbanos
assalariados. Por isso, sua contribuição é feita no momento da venda de
sua produção e, ao atingir a velhice, aqueles trabalhadores que
comprovarem ter trabalhado por quinze anos em atividade rural têm o
direito de solicitar uma aposentadoria no valor de um salário mínimo. A proposta do Governo
para essa modalidade é igualar as regras de acesso ao do trabalhador
urbano, exigindo contribuições mensais por longos períodos de tempo, sem
considerar a irregularidade da renda das famílias atingidas pela
mudança. Na prática, a mudança inviabiliza a aposentadoria de um grande
contingente de pessoas que atualmente trabalham nessas condições.
Por fim, aqueles que, hoje, não conseguem se aposentar, podem solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC),
popularmente conhecido como LOAS, que oferece um salário mínimo para
maiores de 65 anos ou deficientes físicos cuja renda domiciliar per capita
não ultrapassa um quarto do salário mínimo. O governo propôs – e recuou
levemente – que a idade para acessar o BPC subisse para 70 anos e, além
disso, que o valor dos benefícios deixasse de acompanhar a valorização
do salário mínimo.
A seletividade e o “déficit”
O aspecto mais perverso das reformas previdenciárias talvez seja o fato de que, nos termos em que se coloca a questão, elas nunca
resolverão os problemas para os quais supostamente são realizadas. Isso
fica explícito no debate sobre o déficit da Previdência.
Desde que respeitemos a Constituição Federal, é evidente que as
contribuições e tributos que arrecadamos para financiar a seguridade são
mais do que suficientes para pagar os benefícios. Na prática, é o INSS
quem transfere recursos para que o governo gaste com outras finalidades.
Mesmo considerando os gastos previdenciários totais, que incluem
servidores públicos, fica claro que os maiores responsáveis pelo tal
“rombo” na Previdência são precisamente as categorias que não serão
afetadas por essas reformas. É preciso parar de referir-se aos
aposentados do setor público como uma grande massa homogênea de
privilegiados, uma vez que a maior parte deles é composta por pessoas
com remunerações baixas e médias: professores, enfermeiros, assistentes
sociais, policiais, escriturários em geral e outras ocupações. Esses
serão afetados pelas reformas.
Por outro lado, um grupo pequeno de funcionários de alto escalão, do
Poder Judiciário, das Forças Armadas, recebe benefícios suficientes para
pagar dezenas de salários mínimos. Além disso, conseguirão
provavelmente aposentar-se mais cedo que a maioria.
Vida que segue?
Portanto, não é possível aceitar os argumentos apresentados pelo
governo sem nenhum questionamento sobre a seletividade das reformas, à
falsa ideia de que não há alternativas de financiamento – por exemplo, o
imposto sobre grandes fortunas –, e de que o Brasil deve acompanhar os
“parâmetros internacionais”, desconsiderando a sua realidade.
Não faltam propostas e discussões sobre como a Previdência Social – e
cada um dos direitos sociais por ela garantidos – poderia ou deveria
ser. Poderíamos ainda pensar, de forma radical, em como explorar as
muitas possibilidades de combinação entre o trabalho e o tempo livre,
considerando os avanços que nos permitem produzir cada vez mais riqueza e
viver vidas cada vez mais longas.
Porém, o que está colocado nesse momento é a retração dessas
possibilidades, como se não houvesse alternativas a seguir. Como se a
única alternativa para o nosso envelhecimento fosse trabalhar mais. Como
se o prolongamento das nossas vidas não fosse algo a se comemorar, mas
um fardo insustentável que temos que pagar. Que pelo menos possamos
envelhecer resistindo de todas as formas possíveis.
*Lucas Salvador Andrietta é economista, mestre em Economia Social e de Trabalho pela Unicamp e doutorando pela mesma instituição.
Fonte - Le Monde Diplomatique Brasil
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