
Por Ruy Braga.
Que el miedo cambie de bando,
Que el precariado se haga visible,
Que no se olviden de tu alegría.
Ismael Serrano, La Llamada
Que el precariado se haga visible,
Que no se olviden de tu alegría.
Ismael Serrano, La Llamada
Os sismos
causados pelo movimento dos Indignados espanhóis ameaçam se transformar
em um terremoto político devastador para o neoliberalismo. De acordo com
uma pesquisa eleitoral divulgada na última semana pelo jornal El País,
o Podemos, partido recém-criado pela aliança entre o jovem precariado
espanhol e intelectuais de esquerda, alcançou 28% das intenções de voto
para as eleições legislativas de novembro de 2015. Este resultado
coloca-o dois pontos à frente do oposicionista Partido Socialista
Operário Espanhol (PSOE) e oito adiante do Partido Popular (PP) do atual
primeiro-ministro, o conservador Mariano Rajoy. Apenas para efeitos
comparativos, nas eleições legislativas de maio de 2011, o PP havia
conquistado 45% dos votos…
Herdeiro da
auto-mobilização da juventude e dos trabalhadores precarizados, o
Podemos coroa a indignação social de toda uma geração de jovens
espanhóis que, apesar de seus diplomas, agoniza entre o subemprego e a
exclusão social. Apoiando-se na crítica a um sistema plasmado por políticas austeritárias impostas pela Troika
(isto é, a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco
Central Europeu), os Indignados insurgiram-se contra o regime
bipartidário (PP/PSOE) que há trinta e dois anos domina o país. E
conquistaram uma rara vitória organizativa por meio de um modelo de ação
coletiva cujo eixo gravita em torno da ocupação de espaços públicos e
da organização de assembleias populares.
Além de
potencializar a defesa radical dos direitos sociais da cidadania sob
fogo cerrado da Troika, este método favoreceu a resistência às formas
tradicionais de cooptação política. Mesmo quando certa desmobilização
abateu-se sobre a onda de ocupações iniciada em 15 de maio de 2011, o
movimento soube se reaglutinar em torno de coletivos dedicados a
inúmeros temas sociais aos quais se somaram intelectuais e ativistas da
Esquerda Anticapitalista (um pequeno agrupamento de origem trotskista).
Estavam lançadas as bases de um projeto cujos 8% dos votos na eleição
europeia de 11 de março deste ano já haviam surpreendido muita gente.
Tendo em
vista a composição social do movimento, não é estranho que suas
lideranças sejam cientistas sociais da Universidade Complutense de
Madri, tais como Pablo Iglesias, recém-eleito deputado europeu, e Íñigo
Errejón, coordenador-geral da campanha do partido para o parlamento
europeu. Da crise de financiamento das universidades às condições
degradantes do mercado de trabalho, uma geração de estudantes que
trabalham e trabalhadores que estudam tem estimulado o diálogo das
ciências sociais com públicos extra-acadêmicos.
Assim,
reflexões sociológicas acerca da ação coletiva pós-nacional (Iglesias)
ou da luta pela hegemonia na América Latina contemporânea (Errejón), por
exemplo, tanto alimentam a crítica ao totalitarismo econômico imposto
pela Troika, quanto advertem para os estreitos limites participativos da
democracia representativa. Não por outra razão, um reconhecido líder do
Podemos, também professor de sociologia da Universidade Complutense de
Madri, Juan Carlos Monedero, afirmou recentemente:
“[Antonio]
Gramsci dizia que os tempos de crise são tempos em que o velho ainda
não morreu e o novo ainda não nasceu. As instituições vinculadas à
Constituição espanhola de 1978 estão aí, mas já não funcionam e as novas
instituições estão por construir. [...]. A conclusão é que o
esgotamento da democracia representativa, a perda de credibilidade de
uns políticos que se converteram em burocratas do neoliberalismo,
transformou-se na necessidade de inventar novas soluções. Era preciso
gente que viesse de fora da política, de fora do sistema, que tivesse a
sua profissão e que falasse uma linguagem que as pessoas entendessem.
[...] Não viemos do nada. Viemos de muitas lutas, de muita participação
em diferentes movimentos sociais. Também de partidos. E estamos num
momento histórico em que, como diz o meu mestre, Boaventura de Sousa
Santos, é muito importante pensar de outra maneira para que seja
possível construir de outra maneira. É preciso romper o marco político
em que entregamos aos especialistas a gestão do político, porque os
cidadãos perdem a possibilidade de controlar as metas coletivas. [...].
Há que romper a hegemonia de um modelo capitalista que nos transforma a
todos em mercadoria e que mede a vida em termos de rentabilidade. [...].
Costumo dizer que vivemos tempos em que precisamos de um ‘leninismo
amável’. [...]. [Necessitamos de] um leninismo que enfrente o que
chamamos a ‘casta’ [financeira] de uma maneira dialogada e deliberativa.
Somos uma força que conjuga uma altíssima participação popular com a
capacidade de decisão popular.”
Maria João Morais e Filipe Pacheco. “Número dois do Podemos diz que ‘linha que separa direita da esquerda esgotou-se’”. Jornal de Notícias, Lisboa, 4 nov. 2014.
Maria João Morais e Filipe Pacheco. “Número dois do Podemos diz que ‘linha que separa direita da esquerda esgotou-se’”. Jornal de Notícias, Lisboa, 4 nov. 2014.
Muitos dirão que o Podemos não advoga uma saída socialista para a crise europeia. O “Documento final do programa colaborativo”
elaborado em assembleias cidadãs que atraíram milhares de ativistas ano
passado é, na verdade, uma agenda para a democratização do Estado
social de direitos. Além de várias concessões à pequena propriedade, as
medidas econômicas apresentadas são de natureza socialdemocrata,
concentrando-se na criação de empregos por meio da redução da jornada de
trabalho, na regulação social das empresas públicas, na democratização
do Banco Central Europeu e no reforço à proteção trabalhista.
As medidas
políticas propugnadas pelo documento denotam igualmente a adesão a um
reformismo forte. Além de exigir a auditoria cidadã da dívida pública, o
Podemos propõe o fortalecimento dos mecanismos de controle popular do
orçamento de Estado, a democratização dos meios de comunicação, a defesa
e a ampliação dos direitos das mulheres, dos grupos LGBTs e dos
trabalhadores imigrantes. Em princípio, nenhuma dessas bandeiras é
verdadeiramente incompatível com as relações de produção capitalistas.
No entanto, nos marcos da crise que atualmente devasta o sul da Europa, a
simples defesa do Estado social já configura um sério desafio à
reprodução de um capitalismo financeirizado incapaz de realizar
concessões aos subalternos.
Neste
sentido, uma eventual vitória de Pablo Iglesias para o cargo de
primeiro-ministro seria um duríssimo golpe na Troika. Considerando que
Iglesias foi o único dos sete dirigentes políticos citados pela pesquisa
do El País a receber uma avaliação positiva do eleitorado, sua
eventual eleição é bastante plausível. E como na canção de Ismael
Serrano, o medo parece estar mudando de lado: preocupado com os
resultados da sondagem eleitoral, o tradicional banco inglês Barclays
divulgou um relatório afirmando que o “forte crescimento” do Podemos
ameaça a política de austeridade espanhola (ver Katy Barnato, “Why a pony-tailed academic could rock Spain”). Contra
este tipo de ataque, Iglesias e seus companheiros têm se empenhado em
construir alianças internacionais com forças afins como, por exemplo, o
Bloco de Esquerda de Portugal (ver Rita Brandão Guerra, “Bloco e Podemos trocam contributos entre Lisboa e Madrid”. Público, Lisboa, 3 nov. 2014).
Infelizmente,
o movimento português de protesto social intitulado “Que se Lixe a
Troika!”, cujas duas manifestações, ocorridas nos dias 15 de setembro de
2012 e 2 de março de 2013, reuniram cada uma mais de 1 milhão de
pessoas nas principais cidades do país não evoluiu, até o momento, rumo a
uma organização à la Podemos. Há inúmeras razões para isso que
vão desde a forte hegemonia do Partido Comunista (PCP) sobre o
movimento sindical português à massiva emigração de jovens que fragiliza
a militância dos novos movimentos, como, por exemplo, a Associação de Combate à Precariedade Precários Inflexíveis.
No entanto, tendo em vista o aprofundamento da crise no sul da Europa, é
de se esperar que os sismos do terremoto espanhol sejam logo sentidos
também em Lisboa.
Evidentemente,
há ainda um bom tempo até as eleições legislativas de novembro de 2015.
Não devemos menosprezar a possibilidade do PSOE liderado pelo jovem
secretário-geral Pedro Sanchez Perez-Castejon restabelecer no próximo
ano uma posição majoritária entre os eleitores espanhóis. Além disso,
parte importante do excelente desempenho do Podemos nas enquetes advém
da atração exercida por seu “leninismo amável” sobre os eleitores que
votam nulo. Trata-se de uma base de votos um tanto ou quanto fluída.
Este fato aumenta a necessidade de que o partido estreite os laços com a
classe trabalhadora tradicional e seus sindicatos. No entanto, apesar
de todas estas precauções, é indubitável que a aliança entre o jovem
precariado espanhol e intelectuais de esquerda inventou uma alternativa
politicamente sedutora.
Ao menos por enquanto, a sobrevivência do Estado
social na Europa depende do devir deste projeto.
***
Ruy Braga,
professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro
de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre
outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003).
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