
[Eduardo
Bolsonaro, do Partido Social Cristão, discursa em manifestação
anti-Dilma no dia 1/11/2014 em São Paulo. O Deputado Federal, eleito com
82.224 votos, foi armado ao protesto.]
As eleições
de 2014 foram palco de um acirramento discursivo sem precedentes no
país. A disponibilidade de meios e a facilidade dos fins desencadeou uma
espécie de loucura coletiva que dividiu famílias, amigos e comunidades.
Nunca se falou tanto em política nos divãs e os conflitos se alastram
catalisando o tencionamento de relações entre professores e alunos,
médicos e pacientes, empregados e funcionários. Transfigurações e
epifanias se sucediam quando se descobria um novo colega “aecista” ou
quando um pequeno gesto deixava farejar um “dilmista” nas redondezas.
A coisa já
vinha se anunciando desde que as manifestações de junho de 2013
anunciavam, ao lado da renovação da esquerda, a emergência de um novo
discurso conservador, cujo traço mais significativo é a suspensão do seu
tradicional universalismo. Lembremos aqui que o apóstolo Paulo é conhecido como inventor do universalismo
ao interpretar que a chegada do cristianismo significa uma suspensão da
antiga lei, que dividia as pessoas entre “gregos e judeus, entre
mulheres e homens, entre escravos e livres”.* Diante da nova lei, com a
qual podemos nos medir e comparar, somos todos iguais e dissolvemos
nossas particularidades de nascimento, de origem cultural, de gênero ou
de condição social.
Discordo dos
que pensam que a política deveria ser o espaço do debate neutro de
ideias, sem a degradação representada pelo “Fla-Flu” eleitoral. O
“Fla-Flu” está aí desde que há política e o antagonismo que ele
representa constitui a política como ocupação do espaço público, não sem
violência. Há interesses e há diferença de interesses. Ocorre que a
nomeação dos “times” já é um ato político. Dividir as coisas entre direita e esquerda, entre progressistas e conservadores, ou entre liberais e revolucionários,
exprime não só o lugar de quem propõe a geografia do problema, quanto a
teoria da transformação que este pressupõe. Mas então o que teria
mudado nesta última eleição de tal maneira que o ódio e o ressentimento
parecem ter assumindo o controle discursivo da situação?
Paulo Arantes argumentou que esse fenômeno corresponde ao surgimento de uma polarização assimétrica,
na qual há um lado que não está interessado em governar, mas em impedir
que haja governo. O outro lado, o da esquerda moderada, está um tanto
esgotado quanto a definir que Brasil interessa ao conjunto paulíneo dos
brasileiros. Teríamos assim um agrupamento que não quer mais esperar,
que alterou a relação da política com o tempo, e que não está
interessado nas próximas eleições como ponto de mudança. Do outro lado,
uma esquerda incomodada por ter que apostar em uma plataforma de
continuidade. Para quem conhece a expressão vergonha alheia, adapte-se ao contexto definido por uma espécie de inveja alheia. Situação e oposição vivendo um drama de sinais de identidade trocados.
É o caso da
madame que despede sua empregada servindo-se do discurso de que virão
tempos de crise, nos quais ela não poderá arcar com os custos fixos de
uma funcionária. Sabendo que a tal havia votado em Dilma, a demissão
transforma-se em uma descompostura moral contra o voto mal feito. Como
se a empregada, ao eleger Dilma, tivesse levado a patroa ao ato de
demissão. O medo do declínio social, a incerteza identitária que
caracteriza a classe média, transforma-se cinicamente em um ato de
bravura vingativa e afirmação de força política feita por outras vias.
A chamada
“elite branca” jamais havia sido confrontada tão abertamente quanto
nessa combinação de cinismo, auto-complacência e complexo de adequação,
que veio a carregar semanticamente a palavra “coxinha”. O nosso rico
típico deixou de ser o ostentador consumista cuja autoridade depende da
capacidade de impor humilhação e inveja ao outro, assim como petista não
é mais o pobre engajado na aliança operário-camponesa-estudantil. O
novo discurso do ódio generalizado começa pela interpretação de que até
mesmo nossos inimigos são farsantes, dissimulados, pessoas que escondem o
que “realmente são”. Os petistas viraram “esquerda caviar” e os ricos
viraram “coxinhas”. Neste novo mundo, não se pode confiar nem mesmo em
nossos inimigos, estes corruptos e dissimulados, black ou yellow blocs, mascarados.
Isso é muito evidente nos epígonos desta nova era de ressentimento na política, que já vinha sendo anunciada pela nova direita
conservadora. Figuras visionárias que perceberam com clareza que,
diante dos perigos representados pela diminuição da exclusão social e da
desigualdade, seria preciso construir uma reação representada pela
exclusão discursiva e por novas retóricas da diferença. Como quem
diria: “os que pensam diferente de nós não representam apenas outro
ponto de vista, mas são pessoas doentes que precisam ser corrigidas como
indivíduos desviantes”. E o ponto comum nesta exclusão é a redução de
seus adversários a uma figura de irracionalidade.
Não há que se argumentar com os “petralhas” porque eles “são” pessoas moralmente indignas. E por petralhas
inicia-se uma associação englobante que vai do governo a todos os que
votam no partido e termina em todos aqueles que se recusam a “ver o
óbvio” – inclusive a pobre empregada doméstica demitida. Estes estão
possuídos por um estado de excepcionalidade na qual foram destituídos de
sua razão, do uso livre da vontade, revelando assim seu verdadeiro
caráter.
Ora, como
psicanalista, interessado na psicopatologia, salta aos olhos o uso
sistemático e recorrente que este discurso faz da noção de doença
mental. Isso me faz retomar o debate interrompido com Rodrigo Constantino
sobre o uso da destituição da racionalidade do outro, pelo seu
rebaixamento ao estado de loucura. Para tanto remeto o leitor a
afirmações como:
“A verdadeira desordem psiquiátrica é justamente esse esquerdismo doente, que relativiza tudo e não encontra mais parâmetro algum de comportamento decente.”
(Rodrigo Constantino. “Pedofilia: uma orientação sexual?”. Veja, 31.10.2013. Página visitada em 20.11.2013.)
(Rodrigo Constantino. “Pedofilia: uma orientação sexual?”. Veja, 31.10.2013. Página visitada em 20.11.2013.)
Questionado, nesta coluna,
sobre o fato de que nenhuma orientação política ou religiosa pode ser
considerada imediatamente um transtorno mental, percebe-se, na resposta
do autor, que o uso de expressões como “esquerdopatia” não é alegórico,
metafórico ou um exagero retórico, mas representa uma crença real de que
as pessoas que pensam e votam à esquerda são “portadoras de um problema
mental”. Elas estão realmente sancionando os milhões de mortes
ocasionados pelos ditadores cubanos, chineses ou cambodjanos. Os
eleitores de Dilma são psicopatas, como eles. Em escala reduzida, elas
são tão corruptas quanto a turma do Lava a Jato da Petrobrás.
Confrontado com o fato de que a associação entre orientação política e
diagnóstico de transtorno mental é repudiada explicita e veementemente,
até mesmo pelos manuais mais conservadores em psicopatologia, como o
DSM-V e o CID-X, Constantino responde que:
“O
psiquiatra Lyle Rossitter, por exemplo, sustenta que esse esquerdismo é
sim um desvio de personalidade. Você não diria que os nazistas sofrem
de certa patologia? Então orientação política não pode jamais ser
patologia? Não tem nada a ver com comportamento decente? Nem mesmo no
caso dos nazistas? Ou será que você, agora, vai adotar um critério
seletivo para conviver com esse discurso relativista e hipócrita?”
(Rodrigo Constantino, “A esquerda dissimulada“, Veja, 08/07/2013)
(Rodrigo Constantino, “A esquerda dissimulada“, Veja, 08/07/2013)
Uma
determinada orientação de personalidade, circunstanciada em um contexto
social, mediada por alternativas politicamente definidas, pode favorecer
a adesão a certas ideologias, mas aí – e este é o ponto – há
personalidades autoritárias de direita e personalidade autoritárias de
esquerda. O erro aqui é pensar que a personalidade autoritária, a
psicopatia, ou a personalidade anti-social, liga-se necessariamente a um
tipo de partido, religião, gênero ou raça. Todavia o erro segundo, e
mais importante, é inverter esta relação imaginando então que pessoas de
tal partido ou orientação política ou religiosa – que coincidentemente
não é a sua própria – têm uma determinada compleição patológica
específica. É assim que se engendra, discursivamente, um processo como a
homofobia. É assim que se desdobram os fenômenos de preconceito contra
grupos e classes.
Quem leu o excelente estudo de Daniel Goldhagen, Os Carrascos Voluntários de Hitler, (Cia. das Letras), ou passou por Eichmann em Jerusalém
de Hanna Arendt (Perspectiva) sabe que as atrocidades nazistas não
foram causadas pelo repentino nascimento de milhões de alemães
acometidos subitamente pela psicopatia. Os carrascos voluntários que
trabalharam em Auschwitz e Treblinka eram, no geral, banais funcionários
de Estado, interessados em valores como conformidade, adequação e
obediência. Pessoas que se sentiam irrelevantes, mas que podiam
substituir esta irrelevância por um grandioso projeto coletivo se
obedecessem ao discurso correto.
Ou seja,
eles não se distinguiriam de todos nós por sofrerem de patologias
específicas, simplesmente teriam sido “mobilizados” por um discurso. Um
discurso que, como o do bom burocrata, os fazia adivinhar a vontade do
mestre, produzindo uma escalada de violência institucionalizada. Um
discurso que suspendia o universal pela divisão entre espécies: loucos e
normais, homens e mulheres, bons e maus, judeus e arianos. Em outras
palavras, os carrascos voluntários não eram pessoas indecentes, mas personalidades excessivamente orientadas para o que eles julgavam ser a decência do momento. Passar de categorias clínicas e disciplinas psicológicas ou psiquiátricas para categorias morais como decência e indecência
não é um acidente. Isso remonta a uma antiga e errônea convicção de que
transtornos mentais implicam rebaixamento cognitivo (expressões como idiota e imbecil
nasceram no alienismo psiquiátrico), ou desvios de caráter que pactuam
de uma moral duvidosa. Nada mais errado e nada mais preconceituoso.
Aliás, vejamos como o psiquiatra supracitado, Lyle Rossiter, caracteriza
a esquerda antes de patologizá-la:
“Para salvar-nos de nossas vidas turbulentas, a agenda esquerdista
recomenda a negação da responsabilidade pessoal, incentiva a
autopiedade e autoconsideração, promove a dependência do governo, assim
como a indulgência sexual, racionaliza a violência, pede desculpas pela
obrigação financeira, justifica o roubo, ignora a grosseria, prescreve
reclamação e imputação de culpa, denigre o matrimônio e a família,
legaliza todos os abortos, desafia a tradição social e religiosa,
declara a injustiça da desigualdade, e se rebela contra os deveres da
cidadania.”
(Lyle Rossiter. The Liberal Mind: The Psychological Causes of Political Madness. Free World Books, U.S.A, 2011)
(Lyle Rossiter. The Liberal Mind: The Psychological Causes of Political Madness. Free World Books, U.S.A, 2011)
O curioso
neste retrato, no qual nenhum esquerdista real consegue se reconhecer, é
que ele não contém nenhum elemento clínico, apenas ilações morais,
semelhantes às que são mobilizadas na onda de ódio que precedeu e
sucedeu as eleições. O segundo elemento estranho é que o livro em
questão chama-se The Liberal Mind, ou seja, a mente liberal e não a mente esquerdista (Leftist Mind). Devemos tomar isso como uma confissão de que a mente liberal tem agendas esquerdistas?
O terceiro acaso, absolutamente irônico, é que o grande caso de uso
político da doença mental, historicamente denunciado, ocorreu na União
Soviética dos anos 1950, onde se diagnosticava massivamente a
“esquizofrenia progressiva” nos que discordavam de Stalin, antes de
enviá-los aos Gulags. Ou seja, esta história de achar que esquerdista é
doente mental, é uma invenção de… esquerdista, mascarado de liberal, que
não consegue separar clínica de moralidade preconceituosa. Diria mesmo,
que dentro de cada “aecista” sanguinário, mora uma pequena Dilma, que à
noite, quando ele deita a cabeça no travesseiro, lhe sussurra
obscenidades indecorosas, mas ainda assim irresistíveis.
Contudo, o verdadeiro problema do discurso da nova direita conservadora
e injustificadamente intitulada “liberal” não é o clamoroso erro de uso
de categorias indevidas, em contexto de desqualificação do adversário.
No caso da “esquerdopatia” isso é simplesmente ignorância. O
problema é que este discurso possui efeitos de incitação,
desencadeamento e estimulação sobre nossas formas habituais de
sofrimento e seus sintomas associados. O que este discurso faz é nomear nosso mal-estar,
atribuindo-lhe uma causa precisa e localizável: “os esquerdistas e suas
mentes doentias”. Ele nos faz pensar nosso sofrimento como sendo
causado por um determinado objeto intrusivo que veio, não se sabe de
onde, perturbar nossa paz e harmonia.
Podemos não
acreditar nesta bobagem de que a esquerda é uma patologia mental, mas
mesmo assim somos expostos a (e absorvemos) esta lógica discursiva. A
lógica que suspende o universal, a lógica anti-São Paulo, não se faz em
nome de nossa singularidade, mas em nome de nossas particularidades
adesivas, do grupo que garante e certifica minha identidade.
Contudo, a
novidade nesta onda de ódio é que ela não age em nome da identidade de
cada qual, ela não fala sobre a certeza de “quem somos nós”, mas da
certeza de quem é o outro. Surge assim a crença de que somos o que
somos, não porque pertencemos a este ou aquele clube, mas porque não
somos do clube do vizinho.
Clube, aliás, que não deveria ter direito a
existência.
Passamos a acreditar que a palavra não é mais um meio de
transformação – afinal, ‘quem vai discutir com loucos?’ –, que a
negociação de interesses não é mais possível – afinal, são desonestos,
e não podemos confiar neles –, e que como o Outro está a jogar um “vale
tudo fora das regras”, nós também seríamos autorizados a fazer o mesmo…
certo?
Eis a atualização da lei de Gérson versão 2014.
Ou seja, a
nossa percepção da Política, ainda que parcial ou equivocada, muda nossa
relação com o mundo e a interpretação de quem são estes outros com quem
vivemos. Um discurso que pregue que só existem homens e mulheres, loucos e normais, judeus e gregos, ricos e pobres, nordestinos e sulistas, para em seguida perguntar “de que lado você está?” incidirá em todas as psicopatologias, transversalmente extraindo de cada uma delas o que há de pior. Este efeito soma de todos os males
acontece porque identificamos nossa própria divisão subjetiva com uma
divisão objetiva, no mundo, de tal forma que se torna tentador eliminar
um dos polos do conflito, que tanto nos assedia e nos faz sofrer.
Silenciando o
outro, tornando-o irracional, louco e desprezível, nós nos
“normalizamos”. Aderindo a um dos dois lados no qual o mundo se
simplificou, nos demitimos do trabalho e da incerteza de ter que
escolher, como meros indivíduos, dotados de almas inconstantes, em meio a
uma geografia indeterminada. E assim esquecemos que o universal que nos
constitui é exatamente esta divisão, que nos torna pauliniamente seres
capazes de loucura.
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Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise.
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