Usou-se muito a palavra “fundamentalismo” a propósito dos terríveis
acontecimentos do 11 de setembro norte-americano , mas somente para designar o
fundamentalismo islâmico.
Esse uso é correto, mas limitado.
Se quisermos
entender a dimensão ideológica da crise, precisamos dar-nos conta de
que há três fundamentalismos envolvidos no conflito, e não apenas um: o
fundamentalismo islâmico, sem dúvida, mas também o judaico e o cristão.
Em sua acepção mais geral, o fundamentalismo islâmico prega uma volta às origens religiosas do Islã e uma reforma dos costumes e da sociedade segundo os preceitos da “sharia”, da lei do Corão. O termo recobre uma multiplicidade de tendências. Entre elas, há uma orientação radical, que recorre à violência para atingir seus fins. O fundamentalismo radical operou a princípio num quadro nacional. Foi o caso de movimentos como o Al-Jihad, baseado no Egito, responsável pelo assassinato de Anwar Sadat, em 1981, e o GIA (Grupo Islâmico Armado), da Argélia, autor de inúmeros massacres. Mas, com o tempo, o fundamentalismo radical passou a atuar num quadro internacional. O exemplo mais espetacular é o Al Qaeda, dirigido por Osama bin Laden, que quiz fundar um califado pan-islâmico e tem em seus quadros, entre outros, egípcios, jordanianos, iemenitas e sauditas, além de pontos de apoio em quase 50 países.
O fundamentalismo judaico não se manifesta sob a forma de uma
fidelidade literal ao texto sagrado, pois a interpretação rabínica da
Torá sempre foi bastante livre. Mas se manifesta na ultra-ortodoxia – e
nisso é semelhante aos demais fundamentalismos. Para o judeu
fundamentalista, a lei de Deus tem valor absoluto, valendo tanto na vida
privada quanto na pública. O casamento visa unicamente à procriação, a
educação dos filhos se esgota na educação religiosa, e devem-se evitar
contatos com pessoas alheias à própria comunidade. Contra os judeus
liberais, que propugnam a integração com a sociedade local, os
fundamentalistas cultivam uma atitude sistemática de auto-segregação,
tanto com relação aos gentios quanto com relação a outras tendências do
próprio judaísmo.
O fundamentalismo cristão tem uma vertente católica, o integrismo,
que remonta ao antiliberalismo e ao antimodernismo do “Syllabus”, de Pio
9º. No entanto foi no protestantismo norte-americano que o
fundamentalismo floresceu. O próprio nome nasceu nos EUA, a partir de
uma série de fascículos publicados entre 1909 e 1915, em que pastores de
várias denominações relacionaram os “fundamentals” ou pontos
fundamentais da fé cristã, dos quais nenhuma das igrejas poderia se
desviar. O principal desses pontos era a infalibilidade da Bíblia. O
fundamentalismo protestante expôs-se ao ridículo mundial quando um
professor secundário do Estado de Tennessee foi processado por ter
ensinado o evolucionismo na escola, contrariando uma lei estadual. Mas
os fundamentalistas continuam vivos e atuantes. Durante a Guerra Fria,
desfraldaram a bandeira do anticomunismo e hoje combatem o aborto e o
homossexualismo. Defendem um patriotismo messiânico, vendo a América
como a nação eleita. A direita religiosa fundamentalista transformou-se
numa irresistível força eleitoral. Seu poder já ultrapassa os Estados
Unidos. Muitas das seitas evangélicas e pentecostais que hoje atuam no
Brasil são ramificações do fundamentalismo norte-americano.
Direta ou indiretamente, os três fundamentalismos estiveram presentes na tragédia do dia 11 de setembro e em suas sequelas.
Na origem, está o conflito árabe-israelense, porque foi
principalmente na qualidade de “cúmplices” do Estado de Israel que os
americanos foram “punidos”. Ora, esse conflito está sendo conduzido em
grande parte por facções fundamentalistas islâmicas (Hamas, que atua nos
territórios palestinos, Hizbollah, com base no Líbano) e por
fundamentalistas judeus, alguns atuando por meio de organizações
extremistas, como o Kach Kahane Chai, que pretende restaurar o Estado de
Israel tal como descrito na Bíblia. O mínimo que se pode dizer é que
esses dois fundamentalismos dificultam o processo de paz.
A
irracionalidade do fundamentalismo muçulmano é óbvia, mas os judeus
fundamentalistas, mesmo quando não violentos, também não são exemplos de
lucidez. Suas opiniões sobre temas gravíssimos, como os limites
territoriais do Estado de Israel e a questão correlata da legitimidade
de determinados assentamentos, são mais influenciadas pelas promessas
feitas por Deus aos patriarcas que pelas realidades contemporâneas do
conflito com os árabes. É o peso eleitoral dos partidos religiosos
ultra-ortodoxos que impossibilita a formação de um governo estável de
centro-esquerda, sem o qual uma verdadeira negociação com os palestinos
não pode ser bem-sucedida.
As primeiras reações oficiais e populares aos atentados nos Estados
Unidos deram a impressão de que entrara em cena um terceiro
fundamentalismo, o cristão. Os valores seculares que sempre
caracterizaram a democracia americana pareciam estar sendo erodidos com
um fervor bíblico digno dos puritanos que chegaram à América no
Mayflower. O presidente da maior potência bélica da Terra disse que o conflito
que se aproximava será uma guerra monumental do bem contra o mal, e que
Deus, cujo direito à neutralidade o presidente contestou, estava do lado
dos americanos. Os aiatolás do Pentágono não fizeram por menos:
batizaram a operação antiterrorista de Justiça Infinita, termo de origem
claramente bíblica, porque só a justiça divina pode ser considerada
infinita. Em suma, a direita religiosa americana, sempre influente na
vida política do país, parecia ter tomado o poder. Talvez houvesse o
dedo dos fundamentalistas até no superpatriotismo com que a nação
inteira reagiu à crise, porque vimos que para eles a América é a nação
eleita: amar Deus e amar a América são virtudes equivalentes.
Os três fundamentalismos têm em comum o tradicionalismo em questões
morais e uma posição retrógrada quanto ao estatuto da mulher. São
puritanos e misóginos.
Mas esse tradicionalismo não implica uma rejeição
em bloco da modernidade.
Todos eles aceitam a modernidade técnico-econômica. Os
fundamentalistas islâmicos vêm de estratos sociais urbanos, muitos têm
formação universitária, conhecem a fundo todos os segredos do
capitalismo financeiro (têm contas na Suíça e jogam na Bolsa) e manejam a
tecnologia militar mais sofisticada. Os pregadores fundamentalistas
cristãos dominam todas as técnicas da comunicação de massas, falam em
estádios gigantescos e alcançam audiências inimagináveis por meio do
rádio e da televisão. Os fundamentalistas judeus podem usar roupas e
barbas do tempo do gueto, mas muitos estão plenamente ligados aos
circuitos financeiros do capitalismo moderno.
Em compensação, todos dão as costas à modernidade política, cujas
características de pluralismo e de respeito aos direitos humanos são
incompatíveis com a estrutura autoritária do fundamentalismo. E todos
repudiam a modernidade cultural, caracterizada pelo advento da visão
secular do mundo, pelo deslocamento da religião para a esfera do foro
íntimo, da vida privada, tendências que não podem se conciliar com a
natureza teocrática do fundamentalismo.
Quais as causas do fundamentalismo?
Alguns fatores são específicos.
No caso do fundamentalismo islâmico e do fundamentalismo “pentecostal”
brasileiro, por exemplo, podemos apontar a anomia resultante do processo
de urbanização, a dissolução dos vínculos tradicionais de
solidariedade, a discriminação étnica, a marginalidade social e a perda
de prestígio do marxismo como religião laica. Mas há também fatores
comuns, aplicáveis a todas as variantes do fundamentalismo, como a
dificuldade de inserção na economia, numa fase em que o capitalismo tem
características estruturalmente excludentes, e a desorientação diante do
desaparecimento dos valores tradicionais, em consequência do processo
de globalização.
Com sua capacidade de recriar nexos de solidariedade grupal, de dotar
a vida de sentido e finalidade, de inventar um passado mítico em que
não existiam as tensões e as incertezas do mundo contemporâneo, de
alimentar a esperança numa vida futura que possa compensar todas as
humilhações do presente e de fazer da religião uma trincheira de
resistência cultural, capaz de enfrentar as pressões niveladoras
provocadas pela globalização, o fundamentalismo parece constituir uma
resposta para todas as frustrações da vida moderna.
É uma falsa resposta. O fundamentalismo impede o homem de pensar por
si mesmo, desativa sua razão e simplifica realidades complexas. Esse
tríplice déficit corresponde exatamente ao perfil dos fanáticos que
perpetraram os atentados nos Estados Unidos. Podemos não saber sua
identidade, mas conhecemos sua personalidade: deformados pelo
fundamentalismo, esses homens eram sem sombra de dúvida heterônomos,
irracionais e simplificadores. Nunca houve missão mais urgente que
combater o fundamentalismo. E nunca houve tarefa mais difícil, porque,
se as causas do fundamentalismo forem realmente as apontadas acima, ele
não é nem um erro teórico nem uma perversão moral, mas o efeito objetivo
de fatores cuja eliminação requer nada menos que uma correção de rumos
na estrutura de nossa modernidade.
* SERGIO PAULO ROUANET é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília.
É autor de, entre outros, “As Razões do Iluminismo” e “Mal-Estar na Modernidade” (Cia. das Letras).
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