O PT aumentou sua influência na direita ao conquistar a confiança dos ricos com a promessa de não mexer nas fortunas e dos conservadores de baixa renda ao se comprometer com a reforma social. Mas foram os programas sociais que cimentaram a predominância petista. Tal situação gerou uma crise colossal no PSDB e no DEM.

por Lincolm Secco




Fundado em 1988, às vésperas da promulgação da Constituição, o PSDB era uma dissidência à esquerda do PMDB e contra as “oligarquias decrépitas”, como rezava seu programa político.
Embora o símbolo partidário fosse um tucano, para se aproximar de uma imagem naturalmente brasileira, o partido apresentava orientação e pretensão social-democrata tipicamente europeia. Seu programa expressava uma leve linguagem socialista: “A propriedade privada dos meios de produção constitui a base do sistema econômico brasileiro, devendo ser garantida na medida em que atenda ao princípio da sua função social e se harmonize com a valorização do trabalho e do trabalhador. Nem por isto se pode desconhecer a multiplicidade das formas de organização da produção, mesmo no setor privado da economia, como é o caso das formas cooperativistas, que merecem reconhecimento e estímulo” (Diário Oficial da União, 6 jul. 1988).
Embora o novo programa de 2007 apresente leve inclinação à direita, ele é só um programa. No Brasil, raramente somos tentados a levar a sério o que os partidos escrevem. Em sua origem, o PSDB apresentava-se, em verdade, bifronte: uma face voltada à questão social e à social-democracia dos intelectuais que aderiam ao partido; outra voltada à reforma do Estado e ao liberalismo desenfreado. Naquela época se costumava dizer que um verdadeiro Estado social-democrata moderno (de terceira via à laBlair) deveria ser economicamente mínimo e socialmente máximo. Era um prenúncio da combinação de privatizações de empresas estatais e políticas sociais compensatórias.
O aglutinamento dos tucanos originais se deu também por questões meramente conjunturais. Lideranças paulistas como Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso perdiam espaço para Orestes Quércia no PMDB e divergiam quanto ao aumento do mandato do presidente José Sarney.
A natureza bifronte do PSDB leva a uma infinda discussão sobre se ele nasceu neoliberal ou se tornou depois. 
Se ele estava no espectro de centro-esquerda ou já era de direita. 
A discussão perde sua importância quando situamos a evolução partidária na história. Nenhum programa partidário é uma camisa de força. Os tucanos apresentavam um conjunto de valores que os aproximava de parcelas do PT: uma direção com pessoas oriundas da luta (armada ou não) contra a ditadura; defesa da democracia; discurso contra a corrupção; modernização do Estado.
É preciso lembrar que, até 1994, setores (minoritários) do PT (como José Genoino, Eduardo Jorge, Augusto de Franco) defenderam abertamente a aproximação com o PSDB e alguns até abandonaram o partido, apoiaram a ideologia liberal e praticaram privatizações como símbolo da “modernização do Estado”. Esse foi o caso de Antonio Palocci como prefeito de Ribeirão Preto (mas não só ele).
A tensão interna do PSDB levou, por outro lado, figuras gradas de sua direção a optar pela moda liberalizante que tomava conta da América Latina já no mandato de Fernando Collor de Mello. É sabido o quanto Mário Covas atuou para impedir a aproximação de Fernando Henrique Cardoso com o governo. Este teve a fortuna de só ser impelido para a máquina federal no governo de Itamar Franco. Ungido pela estabilização monetária, fez-se presidente da República.
É no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso que ocorreu a conversão formal do PSDB ao neoliberalismo e sua passagem à direita. Primeiro ao aliar-se ao Partido da Frente Liberal (PFL) e, depois, ao comandar políticas públicas de viés claramente privatista e liberalizante sem freios. É verdade que, por ser um partido de “estrutura organizacional fraca” (como revelou uma pesquisa de Celso Roma), a cúpula pôde impor seu liberalismo ao conjunto de um partido que acalentava valores originalmente de centro-esquerda.

Pós-neoliberalismo
fracasso socialdo neoliberalismo aos olhos da maioria da população latino-americana levou às sucessivas vitórias de candidatos de oposição, como Luiz Inácio Lula da Silva. O que veio depois foi rotulado com o afixo “pós”, já que ninguém ousou definir um período que não é idêntico ao anterior, posto que dirigido por novas forças políticas; e que também não se apresentou como uma ruptura.
Ao chegar ao governo, Lula encontrou problemas de várias idades históricas que não podiam ser resolvidos por uma simples decisão política. Os dinamismos internos de uma economia estrutural e funcionalmente subordinada ao capital oligopolista internacional não podiam ser alterados a curto prazo.
O ex-presidente foi sagaz o suficiente para manter o essencial da política econômica liberal do governo anterior, embora isso seja discutido ainda hoje. Ele herdou uma situação de grave dependência externa do Brasil aos capitais voláteis, ao mercado financeiro em geral e ao FMI. Como um líder operário, ele provocava o medo dos investidores e a esperança de seus eleitores. Daí seu lema: “A esperança precisa vencer o medo”. Mas essa dura realidade o obrigou a manter as metas de déficit primário impostas pelo FMI e sacrificar investimentos sociais e recursos que deveriam ser dirigidos à reforma agrária, por exemplo. O que o Brasil pagou de juros da dívida interna é infinitamente maior do que os gastos sociais que alçaram a popularidade de Lula aos píncaros da glória eleitoral.
Assim, o PT se credenciou pela primeira vez a representar o povo em lugar de querer representar uma classe. Mas não esqueceu os que mais precisam. Programas como Bolsa Família e ProUni se tornaram tão importantes quanto a geração de emprego e salário mínimo. O governo petista unificou os programas Bolsa Escola, Gás e Cartão Alimentação já existentes. Mas eles atendiam 3,6 milhões de pessoas, enquanto Lula quase quadruplicou o número de beneficiados. Além disso, suas políticas promoveram a habitação popular, o salário mínimo, a predominância da mulher no acesso a benefícios estatais, a eletrificação rural e tantas outras medidas que compuseram uma rede social ampla e reconhecida pela população mais pobre.
Mas note-se que, simultaneamente a tais políticas sociais, a primeira reforma importante que Lula fez não foi a tributária, mas a da Previdência. Não visou confrontar o capital. Mas o trabalho. Tais táticas eram compreensíveis. Um governo que pudesse causar temor nos investidores precisava ser mais realista que o rei e manter os juros altos para debelar a inflação que se anunciava.
O movimento fundamental do governo Lula foi, portanto, o de amparar as classes desprotegidas sem incomodar as classes de cima. Ao ser bem-sucedido no atendimento de carências sociais básicas e que “custavam pouco”, ele não deixou de alimentar a voracidade dos especuladores. Foi por isso que Lula e o PT passaram a ocupar um novo espaço político ampliado à esquerda e à direita.
 Hegemonia
No espectro esquerdista, o PT já havia obtido suas credenciais ao longo de vinte anos de hegemonia nos movimentos sociais e nos principais sindicatos. No campo direitista, o partido aumentou sua influência ao conquistar a confiança dos mais ricos com a promessa de não tomar medidas contra as grandes fortunas e dos conservadores de baixa renda ao se comprometer com a reforma social sem rupturas com a ordem. Ajudou-o nessa tarefa a proximidade com valores conservadores católicos e a aproximação mais recente com setores evangélicos. Mas foram especialmente os programas sociais de Lula que cimentaram a predominância do PT.
Tal situação gerou uma crise colossal no PSDB e, mais recentemente, no DEM (Democratas). Eles perderam espaço programático. Quando criticaram o Bolsa Família em 2006 como se fosse uma “esmola” para pessoas que não trabalham, eles só mantiveram o apoio dos setores médios que já os apoiavam e perderam definitivamente a população mais pobre, que se viu ofendida e ameaçada por um hipotético governo tucano. O DEM isolou-se na extrema direita ideológica e abriu espaço para que seus políticos descontentes e oportunistas buscassem no PSD de Gilberto Kassab uma saída eleitoralmente viável.
Se foi louvável a atitude de lideranças “democratas” assumirem uma posição ideológica explícita, elas cometeram suicídio político a médio prazo. O Brasil não gosta de extremos, mesmo à direita. O DEM mimetizou um partido montanhês(ainda que de sinal trocado) quando sua base no Congresso era o pântano. Isso para remeter o leitor à “geografia política” da Revolução Francesa.
Depois de 2006, a oposição a Lula cometeu seu segundo e mortal erro. Passou a criticar o PT por ter lhe roubado sua política econômica. Mais recentemente vimos uma retomada da mesma ladainha quando a grande imprensa ligada ao PSDB atacou as privatizações de aeroportos no governo Dilma Rousseff. Ora, nessa lógica de raciocínio, se o PT ésocialmentemais eficiente e ainda por cima mantém o que de “melhor” o PSDB tinha (a estabilidade da moeda), por que deveriam os eleitores escolher os tucanos?
Se aprofundarmos o argumento, o próprio eleitorado tradicional dos tucanos deveria escolher o PT, já que a melhoria social dos mais pobres deveria levá-los a imaginar maior paz social. Mas é claro que a política é mais o reino irracional da paixão do que da razão. Embora seja fundamentalmente o reino dos interesses materiais.
O PSDB reduziu-se a um partido de classe(média). Os grandes cartéis e trustes não têm partido e apoiam qualquer governo que não toque neles.
O PT tentou firmar-se ao longo de sua história como um partido de classe (trabalhadora, é claro). E tornou-se um partido de massas policlassista. Já o PSDB, que recentemente propôs uma nova central sindical, fracassou nesse campo e era uma agremiação que tendia a ser um “partido pega tudo”. Hoje, o PSDB é muito mais um partido regionalmente concentrado no Sul, Sudeste e Centro-Oeste e socialmente baseado em áreas de classe média tradicional, pequena burguesia do campo e clientela do agronegócio. Além de ter algum respaldo na indústria nacional pequena e média e numa gigantesca massa de profissionais liberais do mundo corporativo, embora não de funcionários públicos. É claro que me refiro às bases sociais, e não aos membros do partido.
Curiosa inversão. Nas eleições para a prefeitura paulistana de 2012, o candidato do PT, Fernando Haddad, foi escolhido pela tradicional forma mexicana do “dedaço”. Lula acabou com as prévias e impôs seu candidato. Curiosamente, o PSDB resolveu fazer prévias para escolher seu candidato, ainda que elas tenham se tornado incertas com a entrada de José Serra na disputa. Embora em 1992 o PSDB paulistano tivesse realizado prévias para escolha de seu candidato à prefeitura, o partido nunca teve instâncias internas democráticas.
Mas a inversão é uma forma de aparência. É claro que o PT continua mais democrático; tem maior vida interna fora de períodos eleitorais; maior vínculo com movimentos sociais; e é mais orgânico e “ideológico”.

Pequena política
O PT exerce uma hegemonia aparente. 
No plano eleitoral, sua direção política parece imbatível pelas razões já expostas. Ele fez sacrifícios corporativos ao deixar de lado algumas demandas importantes dos movimentos sociais e sindicatos. Mas não em nome de alianças em torno de seu programa político. Logo, sua hegemonia não é uma direção intelectual e moral sobre os aliados. Ele não mudou valores fundamentais e abdicou de uma grande política.
Quando Antonio Gramsci falou em grande política, ele imaginava ações estratégicas que visavam mudar estruturas da sociedade civil. Mas ele também concebeu a possibilidade de um grupo “fingir” deter-se na pequena política (aquela dos cargos, das querelas parlamentares e das questões menores) para obrigar o adversário a limitar o alcance estratégico de suas aspirações. Ora, dizia Gramsci, isto é, em verdade, fazer a grande política. Logo, esta pode servir para manter intocadas as estruturas, e não para mudá-las.
A política do PT no governo não é a do partido que se construiu por longos anos na luta social. É óbvio que muita coisa que o PT queria se realizou ou tem sido feita. Mas basta pensar na tutela militar, na estrutura agrária, na igualdade de gêneros no mercado de trabalho, no problema ambiental e na questão da Previdência para lembrarmos demandas radicais parcialmenteabandonadas pelo partido.
Se não é o PT, então quem faz a grande política? 
Convido o leitor a imaginar quais grupos sociais se mantiveram intocados antes e depois de Lula. Se tal classe ou conjunto de classes puder ser identificado, a resposta terá sido achada. A novidade de nosso tempo é que as classes dominantes (ou seus setores centrais) não aparecem nem precisam ter seus interesses verbalizados pelos órgãos de comunicação de massa ou partidos. É melhor que não apareçam, pois enquanto a polarização política se estabelece em torno do PT, do apetite fisiológico de seus “aliados” no Congresso e da oposição, as autênticas polarizações sociais adormecem sob uma democracia eleitoral que gira em falso e não muda a sociedade.
É claro que podemos invocar todas as inúmeras diferenças entre Lula e Fernando Henrique Cardoso. 
E elas são reais e importantes. 
Mas a conciliação operada pelo petista só terá sucesso enquanto as lutas de classes puderem ser amortecidas por crescimento econômico e benefícios sociais. Se os ganhos do pré-sal forem reais e significativos, a hegemonia dos donos do poder econômico poderá persistir intocada por muitos decênios, qualquer que seja o governo.
Para os interesses imediatos dos mais pobres continuará sendo mais importante que esse governo seja do PT ou de alguma alternativa à sua esquerda. Além disso, não é impossível (embora seja improvável) que a militância petista volte a ter algum poder de veto sobre a cúpula partidária.
O PSDB enquanto partido social-democrata já deixou a cena histórica. Seu futuro (assim como o do PT, é claro) dependerá da disputa dos valores da nova classe trabalhadora (ou média?). 
Fernando Henrique Cardoso defendeu o abandono do “povão” em favor da velha classe média. 
E como bem sabe o sociólogo da USP, não há escolha. 
O “povão” é que o abandonou há muito tempo.

Lincolm Secco
Professor de História Contemporanêa na Universidade de São Paulo e autor do livro História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011)