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sábado, 8 de dezembro de 2012

O império do consumo





A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial.

A explosão do consumo no mundo atual é mais ruidosa do que todas as guerras e faz mais alvoroço que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, quem bebe demais se embebeda em dobro. A folia aturde e distorce a visão; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo e no espaço. Porém, a cultura de consumo sonha muito, como o tambor, porque está vazia; e à hora da verdade, quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado desperta, sozinho, acompanhado por sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar.

A expansão da demanda se choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam de ar e, por sua vez, necessita que caminhem pelo chão, como andam os preços das matérias primas e a força humana de trabalho. O sistema fala em nome de todos, a todos dirige suas imperiosas ordens de consumo, entre todos divulga a febre compradora, porém, desta forma: para quase todos esta aventura começa e termina na tela do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, termina possuindo nada mais do que dívidas para pagar dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que às vezes materializa delinquindo.

O direito a esbanjar, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diga-me o quanto consomes e lhe direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. No inverno, as flores ficam submetidas à luz contínua, para que cresçam mais rápido. Nas fábricas de ovos, as galinhas também têm a noite proibida. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e a angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, porém é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EEUU consomem a metade dos sedativos ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vende ilegalmente, o que não é “moco de pavo” se se tem em conta que os EEUU somam apenas cinco por cento da população mundial.

“Gente infeliz, a que vive comparando-se”, lamenta uma mulher no Bairro Del Buceo, em Montevidéu. A dor de já não ser que outrora cantava o tango, deixou lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas, e vivem suando gotas para pagar as contas”.

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas as partes suas obrigatórias pautas de consumo.

Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que qualquer ditadura de partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida de seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
O consumidor exemplar é um homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a “obesidade severa” cresceu quase 30% entre a população jovem dos países desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou em 40% nos últimos dezesseis anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado.

O país que inventou as comidas e bebidas Light, os diet food e os alimentos fat free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel para trabalhar e para olhar a televisão. Sentado diante da bela tela, passa quatro horas diárias devorando comida de plástico.

Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está conquistando os paladares do mundo e está destruindo a cozinha local. Os costumes da boa alimentação, que vem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, e são um patrimônio coletivo que de alguma maneira está nos fogões de todos e não somente na mesa dos ricos. Essas tradições, essas ceias de identidade cultural, essas festas da vida, estão sendo apunhaladas, de maneira fulminante, pela imposição do sabor químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra de McDonald`s, Burger King e outras fábricas, viola exitosamente o direito à autodeterminação da cozinha: sagrado direito, porque na boca tem na alma uma de suas portas.

O campeonato mundial de futebol do ano 98 nos confirmou, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda a eterna juventude e que o cardápio do McDonald`s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e de adultos no planeta inteiro. O duplo arco dessa M... serviu de estandarte, durante a recente conquista dos países do Este Europeu. As filas diante do McDonald`s de Moscou, inaugurado em 1990 com tambores e pratos, simbolizam a vitoria do Ocidente com tanta eloquência como o desmoronamento do Muro de Berlim.

Um signo dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega a seus empregados a liberdade de se afiliar a nenhum sindicato. O McDonald`s viola, assim, um direito legalmente consagrado em muitos países nos quais opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamilia, tentaram sindicalizar-se em um restaurante de Montreal no Canadá: o restaurante fechou. Porém, em 98, outros empregados do McDonald`s, em uma pequena cidade perto de Vancouver, conseguiram essa conquista, digna do Guia Guinness.

As massas de consumidores recebem ordens em um idioma universal: a publicidade tem conseguido o que o esperanto quis e não pode. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto do século, os gastos de publicidade se têm duplicado no mundo. Graças a isso, as crianças pobres tomam cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de ócio se vai fazendo tempo de consumo obrigatório. Tempo livre. Tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, porém tem uma televisão, e a televisão tem a palavra.

Comprado a prazo, esse animalzinho prova a vocação democrática do progresso: a ninguém escuta, porém fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis de último modelo, e pobres e ricos se inteiram das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece.

Os expertos sabem converter as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam; o perfume lhe beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo tem feito da solidão o mais lucrativo dos mercados. Os vazios do peito são preenchidos de coisas, ou sonhando com fazê-lo. E as coisas não somente podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessas lãs aduanas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te elegem e te salvam do anonimato da multidão. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou raramente o faz. Isso é o de menos. Sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem quer você se converter comprado esta loção de afeitar?

O criminólogo Anthony Platt tem observado que os delitos de rua não são somente fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre tenho escutado dizer que o dinheiro não produz a felicidade; porém qualquer televidente pobre tem motivos de sobra para crer que o dinheiro produz algo tão parecido, que a diferença é assunto de especialistas.

Segundo o historiador Eric Hosbawm, o século xx terminou com sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial se urbaniza, os campesinos se fazem cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosão de suas terras, os campesinos invadem os subúrbios. Eles creem que Deus está em todas as partes, porém por experiência sabem que atende nas grandes cidades. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um porvir para os filhos. Nos campos, os esperadores olham o passar da vida, e morrem bocejando; nas cidades, a vida ocorre, e chama. Amontoados em choças, o primeiro que descobrem os recém-chegados é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é grátis e que os mais caros artigos de luxo são o ar e o silêncio. Enquanto nascia o século XIV, o frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam “porque as pessoas têm o gosto de se juntar”. Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem encontra a quem? A esperança se encontra com a realidade? O desejo se encontra com o mundo? E as pessoas se encontram com as pessoas?

Se as relações humanas têm sido reduzidas a relações entre coias, quanta gente se encontra com as coisas?

O mundo inteiro tende a se converter em uma grande tela de televisão, onde as coisas se olham, porém não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de ônibus e de trens, que até a pouco eram espaços de encontros entre pessoas, estão se convertendo agora em espaços de exibição comercial. O shopping Center, o shopping mail, vitrine de todas as vitrines, impõe sua presença avassaladora. As multidões acodem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtases, as coisas que seu bolso não pode pagar, enquanto a maioria compradora se submete ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. O gentio, que sobe e baixa as escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas sonham como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos dos povos do interior, ou das cidades que ainda não tem merecido estas bendições da felicidade moderna, posam para a foto, ao pé das marcas internacionais mais famosas, como antes pousavam AL pé da estátua de prócer na praça.

Beatriz Solano tem obervado que os habitantes dos bairros suburbanos dirigem-se ao Center, AL shopping Center, como antes se dirigiam ao centro. O tradicional passeio do final de semana ao centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados y penteados, vestidos com suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, porém poder ser espectadores. Famílias inteiras empreendem a viagem à cápsula espacial que recorre o universo do consumo, onde a estética do mercado tem desenhado uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo ao desuso midiático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta a serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem em um pestanejar, para ser substituídas por outras coias de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam tão voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potência.

Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais exitosa ilusão de segurança. Eles existem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, existem fora do espaço, mais além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota como se esgotam, logo após nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem trégua, ao mercado. Porém, a quê outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditarmos no conto de que Deus tem vindo ao planeta a algumas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma fraude caça-bobos. Os que têm a manivela simulam ignorá-lo, porém qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquíssimo ou nada necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos fica. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial.

Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.


Texto - Eduardo Galeano
Trad. Vera Vassouras

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