As maiorias têm todo o direito de reivindicar acesso ao ensino superior
Por Myriam Bahia Lopes
A greve quase geral das universidades federais coloca-nos a
necessidade de recuperarmos o tema do papel da universidade para a
sociedade. Podemos destacar três pontos de um mesmo processo. Seguindo
as formulações de M. Gauchet (1), temos a emergência da sociedade da
informação, a mudança do perfil da universidade e o neoliberalismo. Esse
autor nos chama a atenção para a mudança da noção de conhecimento no
neoliberalismo. Assistimos a uma desintelectualização do saber que é
acompanhada pela ascensão do que passou a ser denominado de capitalismo
cultural e de sociedade da informação.
Se no presente a informação relaciona-se a um fluxo e está associada
ao instante, ao imediato, à moda, o saber da universidade esteve ao
longo de séculos ligado a um saber cumulativo e à transmissão do
conhecimento entre gerações. Presenciamos na sociedade contemporânea a
inversão do sentido e do papel que foi historicamente atribuído à
universidade. Passamos do modelo da universidade entendido como espaço
de autonomia de produção e reprodução do conhecimento para o modelo da
universidade prestadora de serviços. Esse movimento é acompanhado pela
expropriação do conhecimento científico, artístico e tecnológico
produzido pelos professores universitários, aceleração do ritmo da
produção acadêmica e desvalorização do papel social do professor.
A institucionalização da pesquisa pelas agências de fomento como
Capes, CMPQ, Fapemig e Finep, e o impacto sobre a rotina do trabalho
universitário tornou cada vez mais difícil articular a pesquisa e o
ensino na universidade. A natureza dos investimentos dessas agências,
resposta a uma política de ciência e tecnologia que visa direcionar a
produção a partir de editais de fomento, também criou indiretamente um
novo grupo, os detentores da bolsa de produtividade.
Esses professores-bolsistas do CNPQ, que conseguiram complementar
parcialmente o salário erodido pela não recomposição da carreira com a
bolsa, passaram a concentrar o poder de avaliar os seus pares e de
organizar os grupos de pesquisa que compreendem docentes, discentes e
técnicos. O aporte financeiro trazido pelas agências de fomento
reforçou, em muitos casos, a antiga estrutura de clientelismo local, com
o acesso restrito e a concessão personalizada de bolsas (individuais ou
para grupos de estudantes), equipamentos e até mesmo insumos como
papel.
Os grupos de pesquisa, por sua vez, passaram a atender a um novo
calendário, que se somou ao da universidade e conduziu a um trabalho sem
férias, que responde simultaneamente à diversos “patrões” – tantos
quantos forem os órgãos investidores nos projetos. O quotidiano do
trabalho de pesquisa passou a ser pautado por uma tirania administrativa
de fundações. Ela impõe uma rotina burocrática aos coordenadores,
exigindo-lhes um sobre-trabalho de natureza alheia à atividade
acadêmica. Sem férias, e pressionados pela exigência produtivista,
muitos professores adoecem e o saber produzido na universidade muda.
Crescimento e investimentos insuficientes?
A universidade sofreu nas últimas décadas uma pressão de ordem
demográfica sem precedentes. De um lado, houve alongamento do período de
formação, que passou a ser o da formação continuada e está ligado ao
aumento da expectativa de vida da população. De outro, ampliação de
cursos e de vagas, que cresceram para absorver e corrigir as
desigualdades sociais no acesso à educação superior brasileira. Essa
pressão demográfica pode produzir um efeito perverso – ou seja, a
imposição de uma fórmula segundo a qual seria preciso adaptar o saber
produzido na universidade para o seu novo público.
Duas pressões são exercidas sobre a universidade nos dias de hoje.
Ainda segundo M. Gauchet, do alto ela se massifica e de baixo é-lhe
solicitada uma eficiência redobrada. No quadro do neoliberalismo e do
produtivismo, a universidade passou a ser um dos índices de competição
entre os países.
Limite ou solução?
De um lado a universidade precisa enfrentar essa pressão demográfica,
o que implica por parte do governo elaborar um plano bem articulado;
investir de forma contínua e progressiva na melhora das condições de
trabalho para os seus profissionais. No quadro da greve, a discussão
sobre o programa Reuni passa por essas questões. A demanda da sociedade
por progressivo acesso à universidade, em especial para atores para os
quais ela se apresenta como percurso de mobilidade social, pressupõe que
a educação seja assumida como uma política de Estado, contínua,
não-sujeita às oscilações da economia ou de pressões de grupos políticos
que se alternam no poder.
Sem essa estabilidade, o processo de democratização do acesso pode se
transformar em uma armadilha. Vemos essa questão emergir na greve. O
que esperar de um governo eleito com a promessa de investir na sociedade
que tem por lema o “Brasil, um país para todos”? Governo que respondeu
aos grevistas alternando o silêncio e a propaganda enganosa, fingindo
desconhecer a demanda dos professores, que foi amadurecida ao longo dos
últimos 25 anos de reflexão (2) sobre a reformulação da carreira
universitária e recomposição da malha salarial?
Por outro lado, cabe à sociedade exigir seus direitos, garantindo que
a educação seja consolidada como uma política de Estado. Desejamos que a
energia proveniente da indignação de professores, alunos e funcionários
em greve – e de parte significativa da sociedade que apoia o movimento –
converta-se na afirmação de um lugar de destaque da educação pública e
de qualidade no orçamento federal.–
Myriam Bahia Lopes é professora da Escola de Arquitetura da UFMG, doutora pela Université Paris 7, pós-doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e coordenadora do Núcleo de História da Ciência e da Técnica.
(1) M Gauchet, diretor de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales, da França, produziu uma reflexão no âmbito do debate sobre a reforma da universidade francesa em 2009. O texto citado intitula-se “Vers une société de l´ignorance?” (Rumo à uma sociedade da ignorância?) e foi publicado na coletânea Refonder l´université.Pourquoi l’enseignement supérieur reste à reconstruire. Paris, La Découverte, 2011.
(2) O sindicato dos professores APUBH promoveu no contexto da greve um debate sobre as propostas de carreira propostas ao governo federal cujo vídeo podem ser vistos no site.
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