Por Izaías Almada.
“Hoje, no Brasil, ninguém é inocente”
No momento em que desenvolvo uma
interessante pesquisa sobre um dos maiores homens de teatro do Brasil,
falecido em 2009, tenho lido não só sobre ele, como é natural, mas,
sobretudo, os seus próprios textos. E nesse aspecto a produção de Boal
tem bastante fôlego. É consistente.
No momento, entre outras, estou lendo sua obra O teatro como arte marcial
(Ed. Garamond), livro editado em 2003 e que contem uma série de
reflexões do mestre sobre a arte de Sófocles, Shakespeare e Brecht, para
ficarmos apenas em três nomes sonantes.
Em nome de um teatro político, de
intervenção social, Boal fala sobre tudo e escarafuncha o individual e o
social com as lentes da dialética, muitas vezes não deixando pedra
sobre. Escreve com impagável ironia e rigorosa linha de raciocínio. Sua
tese: todos nós somos atores, ou, espect-atores, como gosta de dizer. O
teatro não é uma atividade para iluminados.
Vejam, por exemplo, sua opinião sobre o
deserto de idéias que é a televisão. À página 125 do livro citado, Boal
escreve um artigo com o título acima e que passo a reproduzir:
“É ‘disso que o povo gosta’ – assim
justificam os canais de televisão a qualidade execrável de muitos dos
seus piores programas.”
“Fosse válido esse argumento, estariam
nossas escolas autorizadas a substituir as difíceis matemáticas, a
última flor do Lácio e a filosofia kantiana por fáceis aulas práticas do
sensual Kama Sutra, porque é disto que o povo gosta…”
“Nossos museus exibiriam, em lugar de obras primas da pintura renascentista, as esculturais coelhinhas da Play Boy, ao vivo, porque disto a máscula metade brasileira sempre foi ávida – disto o povo gosta, e com apetite.”
“Nossos hospitais, em vez de médicos e
medicamentos, empregariam homens de terno e gravata operando histéricos,
descarregos, sacerdotes de variadas religiões eletrônicas, porque,
infelizmente, as curas milagrosas são o refúgio de boa parte da nossa
ingênua população, que disto gosta ou isto teme: das televisivas bocas
pastorais jorram labaredas do ameaçador diabo tridentino, rouco e fanho,
exigindo o dízimo, em horário nobre!”
“Outro argumento, falaz como primeiro,
diz que a TV deve mostrar a crua realidade tal como é, sem grinaldas nem
guirlandas. Para este efeito, proliferam policiais perseguindo bandidos
em alta velocidade; casais acusando-se de caleidoscópicas infidelidades
e promovendo físicas violências diante das ávidas câmeras; portadores
de exóticas deformidades lamentando a sorte ingrata e o cruel destino.
Realidades são: existem! Quem duvida? Realidades banais, vidas vazias,
sem rumo, sem sal. É assim mesmo, dizem, é a vida como ela é…”
“Mas – cabe a pergunta – a vida de quem? Não existem outras vidas neste Brasil imenso? Seremos todos reles idiotas?”
“Nestes últimos anos, no Brasil, seguindo
a trilha de vários outros países do mundo, assistimos à proliferação do
pior e mais nefasto dos programas que já surgiram nessa fábrica de
vacuidades que é a TV: os reality-shows.”
“Neles, pessoas insossas – sem o menor
interesse intelectual, sem que se destaquem artística, política ou
socialmente, nem sequer pelas tatuagens impregnadas em seus ombros,
costas, nádegas e cóccix – ficam encerradas em uma casa sem nada dizer o
fazer, nenhum objetivo a perseguir a não ser o de permanecer em cena o
maior tempo possível atraindo a atenção dos camera-men, esperançosos de um close-up.”
“As telenovelas – mesmo de trama
inverossímil e flácida, mesmo superficial e anódina – mostram relações
humanas estruturadas segundo certos valores morais e políticos… mesmo
discutíveis. Já os reality-shows, ao optarem pela ausência
(aparente) de qualquer trama preconcebida, ao deixarem que tudo aconteça
ao sabor do acaso, e pela total falta de lucidez de pensamento, nada
oferecem a não ser o despropósito daquelas vidas psiquicamente
vegetativas.”
“Vidas fragmentadas e míopes, sem metas
em longo prazo, nas quais a maior preocupação ontológica dos personagens
é abrir a geladeira e a reclamar da falta de uma boa pizza; sua maior
angústia, o telefone que não toca.”
“Essa fragmentação se assemelha ao
cotidiano igualmente fragmentado da maioria dos telespectadores que são,
assim, confortados em suas vidas despropositadas.”
“Qual o universo vocabular desses reality-shows?
Talvez não alcance as básicas duzentas ou trezentas palavras usadas
comumente na TV, mesmo se incluirmos artigos e pronomes, interjeições e
nomes próprios e as freqüentes onomatopéias. Que idéias inteligentes
poderá gerar esse esquálido repertório léxico? Talvez somente uma:
desliguem suas TVs.”
O texto de Boal é longo e continua a
tratar o tema com fina ironia. Peço licença aos leitores para um salto
no texto e ir para a sua parte final onde se pode ler:
“Mas a TV – para quem é isso que o povo quer!
– só nos mostra um casal vestido de nudez caçando sabonetes na banheira
de meia água ou fornicando atrás da porta; mostras socos, tiros,
explosões, e nos faz pensar que as torres gêmeas fazem parte do enredo
das Aventuras do Homem Aranha – filme que, aliás, foi banido
depois do 11 de setembro, porque as semelhanças eram chocantes, e o
sádico prazer de alguns espectadores seria bem maior do que o
recomendável patriotismo.”
“Na pequena tela, a vida vã e
fútil importa mais do que a destruição da camada de ozônio ou da
floresta amazônica: o fogo, de longe, não se vê; na tela luzem
sorrisos.”
“Hoje, no Brasil, ninguém é inocente”
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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